“...não sou
digno de que entres em minha casa; mas ordena com a tua palavra, e o meu
empregado ficará curado” (Lucas 7,6-7)
Neste belo relato do Evangelho de Lucas nos é
apresentado, com simplicidade, a força e a intrepidez que se revelam numa
pessoa de fé. Podemos imaginar o que significou para aquele centurião romano o
gesto de ter que acudir a alguém do povo a quem dominava, buscando a cura de
seu empregado. Teve de superar muitas barreiras e impedimentos e esvaziar-se de
seu orgulho e amor próprio para realizar aquele gesto humilde de solicitar
ajuda a um judeu.
Cultivar a humildade é uma das maiores e mais difíceis virtudes humanas. Ela
está vinculada ao amor à verdade. "Ser
humilde é amar a verdade mais que a si mesmo", escreve o filósofo Comte-Sponville.
Em outras palavras, é assumir tudo o que a
pessoa é, reconhecer-se diante de Deus e dos outros, ativando seus recursos e
capacidades e acolhendo suas limitações, sua fragilidade e seus medos, com a
disposição de viver o caminho do crescimento.
A humildade não deve ser entendida como
humilhação, mas como a capacidade de ser verdadeiro, transparente em
nossa vida, reconhecendo-nos necessitados dos outros e de Deus.
Humildade,
dizia S. Teresa, é andar na verdade. Não se trata de atrofiar e esconder nossas
próprias capacidades ou de desvalorizar-nos. Trata-se de reconhecer e expressar,
com simplicidade, quem somos. Humildade é agradecer as capacidades e talentos e
superar as limitações e fragilidades. É a virtude que mais humaniza, pois nos
faz descer em direção à nossa própria humanidade e, a partir desta perspectiva,
entrar no movimento que nos leva para além de nós mesmos.
A radicalidade que o Evangelho nos
propõe é a radicalidade de ser radicalmente humanos. E a humildade nos despoja de tudo o que é ilusão, falsas imagens de
nós mesmos, vazias pretensões de poder, prestígio e vaidade... fazendo emergir
o que há de mais humano, portanto, mais divino, em nosso interior.
Na história da humanidade e da Igreja grandes
homens e mulheres deixaram transparecer em suas vidas a marca da humildade; e a humildade se expande no
coração daquele que vive sinceramente sua existência.
O
termo latino “humilis” deriva-se de “humus”, a terra ou o solo.
Todos surgimos
deste fecundo húmus fundamental,
onde “humildemente”
acolhemos o dom da vida, onde toda existência funda suas raízes que a nutrem e
se faz “humilde” e verdadeiramente “humana”.
Nós somos o solo, o húmus, onde o Deus-semente pode germinar, criar raízes e florir.
Só admitindo nossa
própria fragilidade e limite e descendo ao fundo de nossa realidade, podemos
retornar transformados e com abundantes riquezas descobertas no garimpo do
nosso coração.
O caminho de descida ao nosso próprio “húmus”, à nossa própria condição terrena onde Deus plantou sua
tenda, nos revela quem realmente somos, nos preserva de considerarmos como “deuses”
e nos liberta do orgulho e do auto-centramento que nos destroem.
À medida que, verdadeira e completamente, nos aceitamos e nos acolhemos
como húmus, mergulhamos na graça de Deus, pois ela já fala dentro
de nós desde nosso nascimento.
Todas as grandes correntes
espirituais, tanto do Oriente como do Ocidente, conduzem à humildade.
Reconhecer nossa realidade humana é a condição não apenas para a
humanização autêntica, mas também para a verdadeira experiência de Deus. Sem
humildade, facilmente corremos o
risco de nos apossarmos de Deus; sem humildade,
facilmente procuraríamos nos identificar com Deus.
“Sereis como deuses” (Gen. 3,5): este é o grande pecado de origem. A humildade é a virtude do ser humano que
reconhece não ser “deus”. Nesse sentido, ela é a virtude dos santos e santas.
“Onde está a humildade, está também a caridade” (S. Agostinho). É que a humildade leva ao amor, e todo amor verdadeiro a supõe;
sem a humildade, o eu
ocupa o espaço disponível, e só vê o outro como objeto ou como inimigo. A humildade é essa atitude pelo qual o eu se liberta das ilusões que tem sobre
si mesmo. Nesse sentido, a humildade significa adotar uma atitude gratuita e receptiva, de um
amor agradecido que dirige tudo a Deus e entrega-se por completo à Sua Vontade.
Podemos, portanto, dizer que ser
humilde é ser humano simplesmente, com a capacidade de amar. A
humildade é o contrário do orgulho, soberba, prepotência... que abrem a porta
para todas as injustiças: o desprezo do fraco, a exploração do pobre, a exclusão
do marginalizado e o ferido da vida.
Só podemos aceitar o presente da graça
divina quando temos consciência de nossa própria condição humana. Por isso,
aqueles que mais avançaram no caminho espiritual foram os que mais viveram a humildade. Eles passaram pela
experiência de que só podemos nos aproximar de Deus com humildade.
A humildade
é o pólo terreno em nossa caminhada espiritual. Para permitir que Deus atue nas
profundezas de nosso ser faz-se necessário o auto-esvaziamento, para ser
preenchido por Sua presença. Agora, sim, podemos escutar a voz de Deus e sentir
a sua presença em nosso próprio coração, em nossos sonhos e desejos, em nossas
paixões, em nosso corpo e .nossos sentimentos
Nós “subimos” a Deus quando “descemos”
à nossa humanidade. Este é o caminho da liberdade,
este é o caminho do amor e da humildade, da mansidão e da misericórdia; é o
caminho de Jesus também para nós.
O coração, a quem não é estranho nada do que é “humano”, alarga-se,
enche-se do amor de Deus, que transforma tudo o que é humano. O caminho da humildade é o caminho da transformação.
Ao fazer, junto com Jesus Cristo, o
caminho da “descida”, o ser humano
vai ao encontro de sua realidade e coloca-se diante de Deus para que Ele
transforme em amor tudo quanto
existe nele, para que ele seja totalmente perpassado pelo Espírito de Deus.
No Novo
Testamento, a humildade é entendida
não apenas como atitude para com Deus, mas também para com os outros. Por isso,
a humildade é vista juntamente com a
mansidão, brandura, perdão... Os elevados “ideais de perfeição” nos impedem de
envolver-nos com as pessoas reais e com suas feridas.
A humildade pressupõe um descentramento,
um êxodo para o encontro com o outro, acolhendo-o tal como é; ela nos conduz à pura gratuidade do amor
desinteressado; ela pressupõe, essencialmente, o reconhecimento da alteridade.
Por isso, não é possível viver a
alteridade sem efetuar essa renúncia à posição narcisista na qual a pessoa se
centra sobre si mesma, caindo numa fria insensibilidade diante de tudo o que
acontece ao seu redor.
Quando alguém encontrou sua própria
condição
humana, reconcilia-se com tudo aquilo que é humano, quebra a rigidez na relação com o mais fraco e o enfermo,
com o imperfeito e o fracassado.
Vê tudo envolvido pelo olhar
de bondade e misericórdia de Deus.
Texto
bíblico: Lucas
7,1-10
Na
oração:
A oração significa uma
necessária “escavação”, esse esvaziamento que finalmente abrirá um lugar
para Deus. Somos chama-dos à santidade.
Entretanto, como tudo na Criação, também a santidade está em processo, em
gestação, em crescimento, em trabalho de auto-esvaziamento. Ela floresce na liberdade,
na abertura e na humildade que leva à ação eficaz
-
Para Jung, a humildade é a coragem
de olhar a própria sombra.
Como você lida com seus conflitos, seus
limites e fragilidades, suas paixões...?
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