Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 27º. Domingo do Tempo Comum (Ano B).
“Desde o início da Criação, Deus os criou homem e mulher” (Mc 10,6)
Os fariseus apresentam
a Jesus uma pergunta para pô-lo à prova. Desta vez não é uma questão sem importância,
mas uma situação que alimenta muito sofrimento às mulheres da Galileia e é
motivo de acaloradas discussões entre os seguidores de diferentes escolas
rabínicas: “É lícito o marido separar-se de sua mulher?”.
Não se trata do
divórcio moderno que conhecemos hoje, mas da situação em que vivia a mulher
judia dentro do casamento, controlado absolutamente pelo homem. Segundo a Lei
de Moisés, o marido podia romper o contrato matrimonial e expulsar sua esposa
de casa. A mulher, pelo contrário, submetida em tudo ao homem, não podia fazer
o mesmo.
A resposta de Jesus
surpreende a todos. Não entra nas discussões dos rabinos. Convida a descobrir o
projeto original de Deus, que está acima de leis e normas. Esta lei “machista”,
em concreto, se impôs no povo judeu pela dureza do coração dos homens, que
controlavam as mulheres e as submetiam à sua vontade.
Jesus aprofunda no
mistério do ser humano a partir de sua origem, quando Deus “os criou homem e mulher”. Os dois foram criados
em igualdade. Deus não criou o homem com poder sobre a mulher. Não criou a
mulher submetida ao homem. Entre homens e mulheres não deve haver dominação por
parte de ninguém.
A partir
desta visão do ser humano, já presente na origem, Jesus oferece uma visão do matrimônio que vai
mais além de tudo o que foi estabelecido pela Lei. Mulheres e homens se unirão
para “serem uma só carne” e iniciar uma vida compartilhada na mútua entrega,
sem imposição nem submissão.
Este
projeto matrimonial é para Jesus a suprema expressão do
amor humano. O homem não tem direito algum para controlar a mulher como se
fosse seu dono. A mulher não deve aceitar viver submetida ao homem. É Deus
mesmo que os atrai a viver unidos por um amor livre e gratuito. Jesus conclui
de maneira clara: “O que Deus
uniu, o homem não separe”.
Com esta posição, Jesus
está destruindo na raiz o fundamento do patriarcado e do machismo, sob todas as
suas formas de controle, submissão e imposição do homem sobre a mulher. Não só
no matrimônio, mas em qualquer instituição, civil ou religiosa.
O evangelho de hoje nos convida a retornar ao início da criação do ser humano, homem e mulher, chamados a viver a vocação da união mútua. O homem deve deixar seu pai e sua mãe, deve abandonar o sistema patriarcal e empreender um novo caminho, não já em solidão, mas na união maior imaginável: “se unirá à sua mulher e serão os dois uma só carne”. A identidade não é uma soma, mas a comunhão crescente que busca a unidade. Esta proposta original de Deus é vivida sempre entre os casais, de ontem e dos tempos atuais?
Hoje descobrimos,
talvez com mais claridade que em outros tempos, o quão difícil para muitos
casais manter a unidade amorosa, que no princípio de sua relação parecia ser
tão forte.
São muitos os fatores
dissonantes que impedem o “concerto amoroso”, são muitos os distanciamentos, as
incompatibilidades, as divisões..., que esfriam o romance entre os casais. Hoje
também, mais conhecedores da biologia e da psicologia humana, somos mais
sensíveis e compreensivos para com aqueles que vivem profundos conflitos na
relação matrimonial e, no entanto, sentem o chamado para a unidade.
A partitura que o
Criador nos oferece de comunhão entre o homem e a mulher é belíssima, é “imagem
e semelhança do mesmo Deus”, mas também é difícil interpretá-la como projeto de
vida e de aliança sem volta atrás.
Jesus, na
sua vida oculta e pública, encontrou uma realidade de muitos casais que não
correspondia àquela desejada por seu Abbá Criador: “no princípio não foi assim!”. Ele que tem palavras de vida (transmissoras de
vida), afirma taxativamente: “O que
Deus uniu, o homem não separe”.
Estas
palavras não são uma lei fria, mas uma promessa, uma realidade possível. O
ser humano pode bloquear, com sua falta de fé e seu compromisso, o dom que lhe
foi concedido. É preciso deixar o protagonismo para Deus na relação de casal.
Jesus
convida a deixar-se unir por Deus, a descobrir aquela pessoa, na qual cada ser
humano encontra sua “ajuda semelhante”. É preciso saber discernir que é “o que
Deus uniu”. Bendizer aquilo que Deus “não uniu” é uma profanação. A beleza do
Sacramento do Matrimônio está precisamente em deixar
transparecer a benção de Deus diante daquele casal que Ele foi
unindo através da aventura e do romance amoroso.
Ou seja, “serão uma só carne” quando realizam essa união ao longo da
vida; tal realidade não se revela de forma automática ou mágica no instante de dizer “sim, quero”. Demora toda uma vida em realizá-la;
às vezes não se consegue, o vínculo se interrompe ou se fragiliza. Requer, em
alguns casos, sanação; em outros, refazer o caminho da vida.
O
Evangelho de Jesus Cristo não é um código canônico, mas a Boa Nova da
misericórdia. Deus nos ama também e, sobretudo, em nossas falhas e fracassos. A
Igreja não é alfândega, mas casa paterna-materna onde há lugar para cada um com
sua vida, carregada de recursos e de fragilidades.
Não se
trata de pôr em discussão a visão cristã do matrimônio, mas de ser fiéis a esse
Jesus que, ao mesmo tempo que defende o matrimônio, se faz presente a todo
homem ou mulher, oferecendo-lhes sua compreensão e sua graça. Nunca se deixa
determinar pela lei que julga e condena; mas, deixa transparecer um coração
compassivo e acolhedor para com aqueles(as) que fracassaram em seu projeto de
amor mútuo.
O próprio Jesus, que condena o
adultério, se apresenta como defensor de uma mulher surpreendida em adultério,
quando se encontra com ela cara a cara, cuja vida as autoridades religiosas queriam
eliminar, Jesus, com sua atitude misericordiosa, longe de destruí-la, a perdoa
e lhe oferece um novo futuro: “Nem
eu te condeno. Vai e de agora em diante não peques mais”. Esta é a atitude mais humana e
humanizadora: crítica exigente frente a uma sociedade que chama “amor” a
qualquer coisa. E toda a compreensão do mundo diante de quem tem que viver
situações de dor e de sofrimento, porque seu amor se rompeu ou fracassou.
Os fracassos
matrimoniais não são sempre e nem fundamentalmente um problema jurídico
que se possa resolver com determinadas leis. São problemas pessoais,
emocionais, psíquicos, de raízes e consequências muito profundas, que as leis
não podem nunca solucionar.
Temos de
redescobrir atitudes mais próximas para com os casais rompidos,
independentemente de soluções jurídicas, civis ou eclesiais. Como cristãos, não
podemos fechar os olhos diante de um fato profundamente doloroso. Os(as)
divorciados(as), geralmente, não se sentem compreendidos pela Igreja, nem pelas
comunidades cristãs. A maioria só escuta a aplicação de leis e disciplinas que
não conseguem entender. Abandonados(as) em seus problemas e sem a ajuda de que
necessitam, não encontram na Igreja o lugar da acolhida.
É precisamente nestas
circunstâncias quando deveríamos nos perguntar o que podemos fazer, como cristãos,
para ajudar tantos homens e mulheres que vivem situações de profundas dores,
provocadas por conflitos e incompatibilidades na vivência matrimonial. Não
basta defender teoricamente a indissolubilidade matrimonial e impor mais pesos
sobre os ombros dos casais católicos que não podem carregar.
Temos de nos perguntar: que ajudas
as comunidades cristãs podem oferecer a tantas pessoas que fracassaram em seu
matrimônio, devido a uma opção não amadurecida, a uma falta de conhecimento
mais profundo do(a) parceiro(a), a uma deterioração em sua comunicação, a
incompatibilidades psicológicas, ou simplesmente por uma atitude egoísta?
É injusto que, levados por um rigorismo e legalismo excessivo, marginalizemos e esqueçamos muitos homens e mulheres que se esforçaram por salvar seu matrimônio, e que já não tem mais forças para enfrentar sozinhos(as) seu futuro. Mais misericórdia e menos rigorismo!
Texto bíblico: Evangelho segundo Marcos 10,2-16
Na
oração:
Fazer
memória de muitas pessoas que sofrem por causa do fracasso matrimonial e que
não encontram apoio na comunidade cristã.
-
Qual sua atitude diante delas? Rigidez na aplicação de leis ou acolhida
misericordiosa?
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