Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 28º. Domingo do Tempo Comum (Ano B).
“Bom Mestre, o que devo fazer para herdar a vida eterna?”
Uma
pergunta fundamental que brota de nossa interioridade: como chegar a viver uma
vida que tenha o sabor de “eternidade”, ou seja, para além das
limitações do tempo, da fragilidade e da caducidade das relações humanas; em
outras palavras, uma vida plena, livre, profunda, transbordante... Todos
desejamos dar um sentido à nossa vida, vivê-la com intensidade e com inspiração.
Não nos satisfaz a explicação de que viveremos essa vida “na eternidade”: não
poderemos começar a vivê-la já agora, em meio às carências, desafios, perdas,
fracassos, crises... que vão se fazendo presentes em nossa existência
cotidiana?
Aqui não se trata uma aspiração a
mais; é o desejo de toda pessoa conseguir uma existência digna e feliz. Quem
deseja uma vida vazia? Preenchê-la parece ser a meta, mas a questão é: de quê.
Alguns mais, outros menos, mas todos aspiram uma vida plena, intensa, completa...
O “quê” da questão surge quando alguém descobre sua mochila vital transbordante de objetos, riquezas, ansiedades, pressas e vivências que, enganosamente, se mostram valiosos, mas que na realidade não o são. E quão cheia parece estar essa vida! E quão vazia a pessoa podem se sentir! Essa é a “síndrome existencial” onde o acumular embota os sentidos, atrofia o interior e não deixa lugar para o que é verdadeiramente importante. Uma vida cheia? Cheia de quê? De Vida!
Aqueles que seguiram Jesus de perto fizeram a experiência de
estar junto de alguém que vivia intensamente, sem colocar sua segurança na
posse de bens ou no apego às pessoas, títulos, prestígio, poder... Seu único
tesouro era a confiança em seu Pai, e seu projeto, como Mestre, era ensinar as
pessoas a viverem a partir da liberdade e da alegria de servir, sem se deixar
determinar pelo apego e preocupação em possuir e acumular.
É nesse contexto que alguém, de maneira
inesperada, interrompe o caminho de Jesus, ajoelha-se diante d’Ele, chama-o de
“Bom Mestre” e manifesta uma pergunta existencial, presente em todo ser humano:
“que devo fazer para
herdar a vida eterna?
Chamou Jesus de “Bom Mestre”, não tanto como um reconhecimento de sua bondade,
mas porque intuía nele uma autoridade capaz de orientar-lhe à hora de conseguir
essa vida que tanto buscava. Mas Jesus, sem maiores explicações, remeteu-o à
vivência dos mandamentos. Quando o homem lhe respondeu que os havia guardado
desde sua juventude, Jesus fixou nele seu olhar com amor, acentuando a
comunicação pessoal com alguém que andava buscando a Deus.
Jesus intui que o homem que está
prostrado diante de si é bom, religioso e pratica os mandamentos; ele tem uma
consistência humana; por isso, Jesus quer ajudá-lo a ir mais além da simples
observância dos preceitos. A vivência dos mandamentos é
necessária, mas não basta. Realizar o que está previsto pode ser até fácil e
cômodo, mas não há muito mérito nisso; é preciso ser criativo e descobrir
caminhos novos, e não apenas cumprir leis e preceitos. Para Jesus, não basta
ser apenas cumpridores de normas, por mais recomendáveis e santas que sejam. A
cada um Ele diz o que ainda “falta”.
Jesus não
se fixa na situação atual daquele homem, preocupado em acumular riquezas, mas vislumbra
nele uma outra possibilidade de vida e que estaria esperando em seu interior
para nascer, para iluminá-lo nesse novo percurso existencial ao qual o “Bom
Mestre” o convida a empreender. Para “herdar a vida eterna” é preciso investir
os próprios recursos internos numa vida descentrada, oblativa, comprometida e
que se expressa na partilha dos bens com os mais necessitados.
Jesus
revela um olhar profundo capaz de vislumbrar o melhor que está presente naquele
homem que veio correndo ao seu encontro, esperando uma ocasião para se
expressar. Seu olhar contemplativo não permanece na superficialidade da pessoa,
nas suas limitações e apegos.
Jesus viu, em profundidade, que o
rico corria o risco de sufocar os desejos de liberdade, justiça e fraternidade
presentes no mais íntimo do seu ser.
No diálogo com ele, Jesus o ajuda a
discernir. Propõe-lhe que olhe o seu interior, à luz do amor com o qual Ele
mesmo, olhando-o, o ama; é com esta luz do amor que o homem deve verificar a
que seu coração está apegado verdadeiramente. Ele deve descobrir que seu bem
maior não é acrescentar outros atos religiosos, talvez mais difíceis, mas, pelo
contrário, esvaziar-se de si mesmo, vender o que ocupa sou coração para ampliar
espaço para Deus. Esta é a chave que o abre à vida e que se encontra justamente
na atitude de deixar, soltar, abandonar, desapegar-se, descentrar-se, partilhar...
Viver esta vida com sabor de eternidade está longe de acumular, reter, colocar
a segurança nos bens...
É uma indicação preciosa também
para todos nós. Onde investimos o melhor de nós mesmos? Qual é o “tesouro” que
nos seduz? Para onde estão orientados nossos “afetos”?
A “pressa” do homem do relato deste domingo, que veio correndo ao
encontro de Jesus, parece que expressa uma falsa inquietude, uma má
consciência, a necessidade de perfeição, de ser maior ou o melhor que os
outros. Em todo caso, ele não está preocupado com a situação dos outros, mas
com sua própria situação, com sua vida futura. Que importa a ele a situação dos
camponeses, dos sem-teto, dos doentes... ou dos excluídos com os quais Jesus
mais se preocupa?
Jesus o
desafia a romper com seu mundo fechado, com seu modo legalista de viver... O
desafio consiste em ir além da prática dos mandamentos, radicalizando-a. Como?
Vivendo a solidariedade com os pobres e o desapego, numa experiência real da
centralidade de Deus em sua vida, sem resquícios de idolatria. E, além disso,
dar o passo do discipulado do Reino, no seguimento de Jesus.
Tal
desafio deixa o homem contristado. O apego aos bens torna árido o seu coração,
fecha-o no egoísmo, impede que ele se abra na direção de Deus e dos irmãos.
O “homem rico” do evangelho de hoje é o nosso espelho: nele nos
vemos; nele Jesus nos desafia a sair de nossa acomodação, a romper nossa
prática rotineira das leis, do apego aos bens, prestígio, poder... (falsos
ídolos que nos desumanizam).
Jesus “olhou aquele homem com amor” e viu em seu interior ricas possibilidades, impulsos para algo maior, o
desejo do “mais” ... Ele também dirige o seu “olhar” para cada um de nós e
capta a grandeza e a nobreza presentes no nosso coração. Somos seres de
travessia, de largos horizontes... Somos, por natureza, expansivos, em
contínuos deslocamentos nos projetos, nos relacionamentos, na maneira de
viver...
Nós nos humanizamos à medida que nos deixamos mover pelos sonhos,
projetos, desejos profundos...
Ao mesmo tempo, Jesus, com seu olhar, “lê”, no mais escondido de nosso
interior, os mais diferentes medos e apegos que minam a força e a
coragem do seguimento.
Carregamos em nosso coração um
“gérmen de vida” que busca desenvolver-se e chegar à plenitude.
S. Inácio nos diz que “Deus pôs grandes desejos em nosso coração”. O desejo é desejo de vida. O
desejo não é a posse, mas a expectativa. Como explica S. Agostinho, o desejo
escava no nosso interior uma capacidade maior de receber.
Quem se julga saciado ou pouco interessado em aceitar um esvaziamento de si, apaga dentro dele este desejo que tem sabor de eternidade e embarca numa vida medíocre e sem criatividade.
Texto bíblico: Evangelho segundo Marcos 10,17-30
Na
oração:
Diante de Jesus, que desafia a todos
a “fazer estrada com Ele”, deixar ressoar estas perguntas: “há vida na minha
maneira de viver atualmente? Há algum “afeto desordenado” que atrofia as
potencialidades presentes em meu interior? Quem é o “senhor” que move meu
coração? A quê me dedico a investir os melhores recursos que recebi como dons?
O mundo dos pobres e excluídos desperta uma sensibilidade solidária em mim, ou
permaneço “indiferente” frente a esta cultura do consumismo e do
esbanjamento?...”
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