“Se alguém escandalizar um destes pequeninos que creem...” (Mc 9,42)
O relato do
evangelho de Marcos, indicado para este domingo, nos situa diante de duas grandes
tentações que envenenam as relações na comunidade cristã: o preconceito
e o escândalo.
Jesus é
consciente de nossas fragilidades e incoerências; portanto, tem consciência
também de que haverá escândalos e preconceitos entre seus seguidores. Por isso,
nos alerta sobre a gravidade dos mesmos.
De fato, vivemos mergulhados em um mundo
diversificado, fragmentado, complexo e frágil, cheio de agudas necessidades.
Ferem a nossa sensibilidade a tremenda violência nas relações interpessoais, a
cultura do ódio e da intolerância, o desprezo pelas diferenças étnicas e
religiosas, a exclusão avassaladora...
Impulsionados pelo mesmo Espírito de Jesus, guiados
pelos critérios do Evangelho, marcados pelos valores universais de respeito,
dignidade, solidariedade e acolhida, somos mobilizados a viver atitudes mais
humanizadoras, inspirando-nos no modo de ser e viver do Mestre da Galileia.
Na primeira
parte do relato,
João, o discípulo amado, ingenuamente revela, diante do Mestre, sua
atitude preconceituosa ao proibir um homem de “expulsar demônios” em Seu nome.
De acordo com esta visão míope, o critério já não é o bem que a pessoa faz, mas
“porque não nos segue”. Não se preocupa com a saúde e a vida das pessoas, mas com o prestígio de
grupo. Pretende monopolizar a ação salvadora de Jesus.
Todos sabemos que há um monstro que habita as profundezas de nosso ser,
devorando-nos continuamente e expelindo seu veneno mortal: trata-se do preconceito.
Ele constitui o risco permanente em nossa vida, pois limita a realidade,
estreita o coração, inibe o olhar e nos faz incapazes de acolher o bem e a
verdade presentes no outro.
O mal que
o preconceituoso faz a si mesmo e aos outros é enorme.
Marcado
pela impaciência e desprovido do espírito de leveza, o preconceituoso é incapaz
de relativizar os problemas, atrofia seu desenvolvimento criativo, aniquila
seus sonhos e esfria seus relacionamentos.
Vive o tempo todo petrificado em suas velhas e
deformadas opiniões sobre tudo e sobre todos.
Seu autoritarismo o leva a julgar os outros o tempo
todo, vendo
inimigos e concorrentes por todos os lados e acaba numa extrema solidão.
Geralmente, os preconceituosos são dogmáticos e
fervorosos, muitos deles tornam-se fundamentalistas, moralistas, legalistas, carregados
de hostilidade e intolerância religiosa.
Ao tornarem absoluta uma verdade, os preconceituosos se condenam à
intolerância e passam a não reconhecer e a respeitar a verdade e o bem
presentes no outro. Não suportam a coexistência das diferenças, a pluralidade
de opiniões e posições, crenças e ideias. Daí surgem o conservadorismo radical,
o medo à mudança, a violência diante da crítica, a suspeita, a vigilância, o
controle autoritário...
A inflexibilidade da alma preconceituosa está
ligada ao orgulho; ela tem aquela postura de que tudo sabe e tudo controla,
carecendo da humildade de “saber que não sabe”. Não tem senso de igualdade e
semelhança, e muito menos de compaixão. Aliada à ignorância, não admite que
possa mudar de opinião, pois aferra-se a seus caprichos como um náufrago à tábua que o mantém à tona.
Vive enraizada nas tradições e nas leis, quase
sempre antiquadas e ultrapassadas. Enfim, o preconceito impede a pessoa de
viver, de se abrir ao mundo, de ser espontâneo e de viver mais intensamente.
Outro monstro que destrói os vínculos na comunidade cristã é o do “escândalo”. A denúncia de Jesus fala
de escandalizar a “um
destes pequenos que creem em mim”, ou seja, de colocar tropeços no caminho dos mais
fracos para fazê-los cair. Marcos fala dos “pequenos”, que são os necessitados
de todo tipo, homens e mulheres que não tem posição de destaque ou prestígio
para serem reconhecidos, em um contexto social mais amplo, e em especial na
Igreja.
O risco maior de um grupo humano,
como o da comunidade cristã, é o escândalo (mal exemplo ou atitude que destrói
os outros) e o desprezo, entendido como atitude de superioridade e de rejeição
dos outros. Atualmente vivemos numa sociedade muito individualista, pois cada
um tende a pensar que deve ocupar-se só de si mesmo, sem cuidar dos outros,
como se cada um fosse autossuficiente. Tal atitude egóica acaba tendo
repercussão também na comunidade cristã, onde cada um só se preocupa com seus
ritualismos vazios, devoções estéreis, penitências auto-centradas..., sem
nenhum compromisso com os mais necessitados. Tal vivência religiosa egóica
acaba alimentando atitudes de intolerância, preconceito, julgamentos, suspeita
com relação àqueles que são os prediletos de Deus. Somente um retorno à fonte
do Evangelho e às atitudes oblativas de Jesus em favor dos últimos tornará
possível a reconstrução de uma comunidade que deixa transparecer a verdadeira
identidade cristã.
Esta é a eterna tentação das comunidades cristãs quando
perdem a referência à pessoa de Jesus e caem num formalismo religioso, centrado
no “endeusamento” de algumas pessoas que, com sua ostentação e com seu “poder
de consciência”, manipulam, desprezam, alimentam medo e culpa, criam
divisões..., desembocando nas comunidades “guetos”, reacionárias, petrificadas
diante do novo e completamente alienadas do compromisso evangélico com os mais
necessitados. O pior dos escândalos é daqueles que, deturpando suas funções
religiosas, abusam sexualmente dos menores e incapacitados, revelam-se
autoritários e manipuladores de consciência, impõem pesados fardos legalistas e
moralistas sobre os mais humildes e simples... Diante de tal gravidade, uma
solução também radical, indicada por Jesus: “ser jogado ao mar com uma pedra de
moinho amarrada ao pescoço”.
Escandalizamos quando, com nossa
vida, colocamos à prova a fé dos mais humildes; escandalizamos quando nossa
atitude e conduta pode ser um perigo para a fé dos mais simples; escandalizamos
quando nossa vida é causa de que muitos abandonem o caminho da Igreja;
escandalizamos quando matamos a alegria da fé e de Jesus no coração dos simples;
escandalizamos quando manipulamos a religião para alimentar culpa e medo de
Deus, quando impomos sobre os ombros do mais vulneráveis pesados fardos do
legalismo e do moralismo. O escândalo pode causar a morte.
O que a Igreja deve cortar para não ser escândalo? Jesus
fala de mão, pé, olho..., em sentido radical, ou seja, para ser verdadeira
seguidora do Mestre, ela precisa cortar na raiz e estar disposta a “arrancar”
muitas coisas que parecem valiosas: o clericalismo, o poder opressor das
consciências, o abuso sexual de menores, a suntuosidade, o rigorismo, a cultura
da aparência e da ostentação, a riqueza escandalosa, a falta de humanidade,
ritualismos extravagantes, a insensibilidade diante da miséria e violência...
A Igreja de Jesus deve ser boa mão,
bom pé e bom olho, para ajudar os outros a viver, a caminhar e a
ver. Mas ali onde a mão, olho e pé da Igreja se convertem em “motivo de
escândalo” (de destruição dos pequenos) ela deve estar disposta a cortá-los, se
não quer cair na “geena”, que é o fogo que destrói.
Esta “poda” eclesial” nos situa no
centro do Evangelho de Marcos, que é evangelho que anima e estimula, mas também
que adverte e corrige profeticamente os seguidores e o conjunto da Igreja, que
deve inspirar-se em Jesus no uso de suas mãos, pés e olhos.
Falamos da Igreja que se “auto-mutila”, se esvazia e se torna “pequena” para acompanhar e ajudar os pequenos, fazendo-se evangelho vivo, abrindo um caminho de comunhão e ajuda mútua com os menores e pobres.
Texto bíblico: Evangelho segundo Marcos 9,38-48
Na oração:
Num mundo
plurirreligioso e pluricultural as novas fronteiras estão em todas as partes
(não mais geográficas); somos chamados a construir pontes entre os que vivem de
um lado e outro da fronteira. Mais ainda, que cheguemos a ser pontes em um
mundo fragmentado, cheio de brechas... que isolam as pessoas e os grupos
sociais e religiosos; estabelecer pontes de diálogo e reconciliação que
permitam criar uma nova forma de convivência respeitosa, justa, harmônica e
construtiva.
- Você está aberto(a)
à verdade, venha de onde vier, ou se deixa levar por pré-juizos, preconceitos e
intolerâncias?
- O que é preciso ser
“cortado e arrancado” de sua vida para abrir-se a uma atitude de acolhida e de
serviço dos mais humildes e pequenos?
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