Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 23º. Domingo do Tempo Comum (Ano B).
“Imediatamente seus
ouvidos se abriram, sua língua se soltou e ele começou a falar” (Mc 7,33)
O relato do evangelho deste domingo é como se fosse
um “ritual ou sacramento de iniciação à palavra”. Para
compreender a parte anterior do evangelho de Marcos e para acompanhar Jesus no
seu caminho posterior, é necessário abrir os ouvidos e a língua, aprendendo a
escutar e a falar.
Para aquela cultura do tempo de Jesus o fato de uma
pessoa ser surda, muda ou cega, não era simplesmente uma questão de saúde, mas
um problema religioso. Essa carência física era sinal de que Deus a tinha
abandonada. Se Deus a abandonara, a instituição religiosa estava obrigada a
fazer o mesmo. Era, portanto, marginalizada pela religião; e isto era a maior
desgraça que podia acontecer a uma pessoa.
Jesus, com sua atitude e seus gestos
terapêuticos, revela que Deus está mais próximo dos marginalizados, daqueles
que sofrem. Ao curar, Ele os arranca de sua marginalização religiosa,
demonstrando que Deus não marginaliza ninguém e que a religião não atua em seu
nome.
O evangelho de João começa dizendo que “no princípio era a
Palavra”, e
que a Palavra era Deus, para depois acrescentar: “... e a palavra se
fez carne” (Jo
1,14). Pois bem, o evangelho de Marcos continua dizendo que Jesus “veio ao
mundo” precisamente para que homens e mulheres pudessem viver sua verdadeira
identidade, ou seja, na sua essência, ser palavra oferecida, partilhada,
escutada... Em sentido mais profundo, nascemos da palavra, nela existimos, nos
movemos e somos, como seres de linguagem.
Este é o maior de todos os milagres: que homens e
mulheres aprendam a escutar e responder, sendo o que são, “palavra feito
carne”
no tempo. Assim nos mostra o relato da cura de um surdo-mudo na
região da Decápole, a quem Jesus abre os ouvidos e desata a língua para que pudesse
escutar a palavra, dizê-la e dizer-se, partilhando assim sua vida com os
outros.
De Jesus foi dito que “passou pela vida
fazendo o bem”
(At 10,38). Defendeu sempre as pessoas, frente à tirania das autoridades
religiosas, das normas e tradições, apostando por sua dignidade. No encontro
com Ele, muitas pessoas se sentiram reconhecidas, pois Ele sabia olhar o
coração de cada uma delas; elas também se sentiram libertadas das escravidões
de todo tipo e impulsionadas a viver com mais intensidade, saindo de sua situação
tão desumana.
“Trouxeram-lhe um
homem surdo (não é capaz de escutar a palavra), que falava com
dificuldade...” (tem a língua presa). É um enfermo de comunicação: não pode falar
corretamente, nem se expressar com desenvoltura, não pode escutar a voz de
Deus, nem se comunicar de verdade com os outros. No fundo, é um escravo de sua
própria surdez e mudez: não consegue entender o que dizem, não pode se
manifestar.
O enfermo é a expressão de uma
humanidade que não tem acesso à palavra: as leis religiosas lhe impedem
entender e falar, fazendo-o puro espectador em um sistema onde outros pensam e
decidem em seu nome, mantendo-o fechado em si mesmo.
Aqueles que trouxeram o surdo-mudo até Jesus são
anônimos; não sabemos quem são, se eram familiares ou amigos, nem sequem quantos
formavam o grupo. O que podemos intuir é que estas pessoas buscaram o melhor
modo de ajudar a quem tinha dificuldade e foram capazes de se organizar para
isso. Não pediram algo para si mesmos, mas o bem para quem estava mais ferido
em sua dignidade.
O surdo-mudo deixou-se ajudar e acompanhar pelos
outros. Porque, às vezes, alguém está tão bloqueado que não pode, por si mesmo,
sair da situação na qual se encontra. Se o surdo foi apresentado diante de
Jesus é porque também ele se deixou apresentar.
Nesta expressão encontramos o valor da amizade, a
força do grupo ou da comunidade. Todos precisamos uns dos outros! Quanto bem
podemos fazer uns aos outros!
Marcos supõe que este enfermo, embora tivesse
amigos que o levaram ao lugar onde estava Jesus, não tinha recebido ainda uma devida
atenção pessoal. Pois bem, Jesus a oferece, pela primeira vez, respondendo ao
desejo daqueles que o trouxeram: o acolhe, o toma consigo e lhe trata como
irmão/amigo, iniciando uma terapia de proximidade e conversação simbólica, numa
linha de humanidade básica (que possa ouvir, que possa falar!). Jesus não lhe
ensina nenhuma doutrina e nem lhe complica a vida com leis e normas mais
pesadas. Realiza numerosos gestos significativos: tira a pessoa do entorno no
qual se mantinha surda e com dificuldades para falar, afastando-a um pouco do
grupo; toca-lhe os ouvidos, a língua, os órgãos do corpo onde se manifesta o
bloqueio; eleva seus olhos ao céu como expressão de oração, de sintonia
permanente com seu Abba.
“Ephathá!” (abre-te), é a única palavra que Jesus
pronuncia neste relato. Só pronuncia uma palavra e, surpreendentemente, não é
“ouve”, “escuta” ou “fala” ... É “abre-te”.
Por meio de seus gestos e palavra (por
sua vida inteira) Jesus pôs em marcha um processo definitivo de comunicação,
semeando “a palavra”, isto é, fazendo com que os homens e as mulheres pudessem
ouvir e falar. Jesus não impõe aos surdos-mudos um tipo de palavra (não os
obriga a pensar e falar de uma maneira), mas faz algo muito mais profundo:
oferece a eles uma possibilidade de comunicação, para que sejam eles mesmos os
que falam, os que expressam em suas ideias e sentimentos.
“Ele
tem feito bem a todas as coisas”: esta é a experiência que Jesus nos oferece. Ao
encontrar-nos com Ele, sua força sanadora rompe nossas ataduras e bloqueios.
Assim como o homem do evangelho, também nós experimentamos nossa língua se
desatar e poderemos, assim, pronunciar nossa própria palavra. Uma palavra que
se multiplica no encontro com os outros.
A escassez de escuta na comunicação humana atual
é talvez causa e consequência desse excesso de palavras que padecemos. Causa,
porque ao não sentirmos escutados, pensamos que falando mais talvez consigamos
fazer chegar algo ao nosso interlocutor. Consequência, porque frente tal
torrente de palavras optamos por não escutar, já que não somos capazes de
assimilar tanta informação.
Precisamos abrir o nosso mundo interior
para fazer chegar aí um pouco de luz. Isso significa olhar, reconhecer, nomear
e acolher tudo o que se move no campo dos sentimentos e das emoções. Implica
também abri-lo para reconhecer nossa sombra e abraçá-la. Porque só o encontro
com tudo isso tornará possível viver de maneira integrada, unificada,
harmoniosa, serena e criativa.
É preciso ter vivido este tempo interior gratuito
para saber escutar. Um trabalho para toda a vida. É quando estamos preparados
para saber escutar o outro.
Mas é preciso saber ativar a capacidade de escuta. É uma atitude sábia, ou seja, escutar com atenção, seguir as razões ou a argumentação do outro. Não confundir escutar com ouvir: ouvir vozes, ouvir movimento das cordas vocais, ouvir falar… Ouvir faz referência ao ato simples, desnudo, de perceber um som; escutar é o ato reflexo, consciente, atento, desse ouvir. Acontece com frequência que escutamos sem ouvir, do mesmo modo que também ouvimos sem escutar. Chegam até nós os sons do falar alheio, ouvimos seus ruídos, mas não suas palavras. As palavras só se abrem para a escuta. Saber escutar é saborear o que o outro diz; e isto pede, em primeiro lugar, ter aprendido a escutar-se a si mesmo.
Texto bíblico: Evangelho segundo Marcos 7,31-37
Na oração:
Em
nosso contexto, há uma doentia “surdez” generalizada, alimentada pelas “redes
sociais”; escuta-se atentamente os aparelhos eletrônicos, mas não as pessoas;
escasseia-se uma atitude de escuta das carências e das palavras dos outros;
atrofia-se a capacidade de escuta dos sofrimentos e dos sentimentos dos demais;
distancia-se da escuta da Palavra de Deus. É por isso que, vivendo numa
sociedade da comunicação, nos sentimos incomunicáveis; numa sociedade de
ruídos, e vivemos todos sem nos escutar.
- Na
cultura do ruído e do palavreado crônico como a nossa, o silêncio nos
aterroriza, porque o confundimos com o mutismo. Ouvidos saturados de ruídos não
podem perceber o som do Silêncio.
-
O que está surdo e mudo em você? Como se manifesta?
-
Você vive em atitude de abertura e sensibilidade diante daqueles que não tem
voz nem vez?
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