Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj, como sugestão para rezar e meditar os acontecimentos da Semana Santa 2023: Sexta-feira Santa.
“Junto à Cruz de Jesus, estavam de pé sua mãe, a irmã de sua mãe, Maria de Cléofas e Maria Madalena” (Jo 19,25)
Na vida e missão de Jesus encontramos duas
paixões: a primeira, é a paixão pela vida, pelo Reino, pelo
compromisso em favor dos mais pobres e excluídos. Esta paixão é expressão de
uma opção, assumida fielmente por Jesus até o fim.
A segunda paixão é a da cruz,
imposta pelos poderes religiosos e civis. Ela não é fruto da opção de Jesus e
nem faz parte da vontade do Pai. Ela é a visibilização da violência, do ódio,
do fechamento frente à proposta de vida revelada por Jesus.
No
grego, “cruz” é “staurós” e tem dois significados: de um lado, é
patíbulo, instrumento de tortura imposta pelos romanos aos rebeldes do império;
de outro, significa prontidão, preparado, mobilizado, firme, sólido, estar de
pé, ser fiel até o fim...
Jesus
não buscou a cruz do sofrimento, o patíbulo, a morte violenta... Ele buscou a
cruz da fidelidade, da vida comprometida. Nesse sentido, a “staurós-cruz” é
vida aberta, expansiva, oblativa, vida descentrada em favor dos outros. Ela não
é um evento, mas um modo de viver, pois perpassa toda a vida de Jesus. “Cruz-staurós”
é vivida a partir de uma causa: o Reino.
Assim
entendemos a afirmação de Jesus: “Se alguém quer vir após mim, renuncie
a si mesmo, tome sua ‘cruz-staurós’ cada dia e siga-me”
(Lc 9,23). Significa esvaziamento do próprio “ego” para viver em sintonia com
os outros, sobretudo com os mais sofredores.
Infelizmente, a história da espiritualidade
cristã confundiu “cruz-patíbulo” com “cruz-fidelidade”
e acabou gerando uma espiritualidade do sofrimento, da mortificação, da
renúncia... como se isso fosse agradável a Deus. A Paixão e Morte de Jesus foi
“desconectada” de sua vida comprometida em favor dos pobres e sofredores, dando
a impressão que só a “paixão de Jesus” é salvífica. Toda a vida de Jesus é
salvação porque é vida que destrava vidas e abre para elas um novo sentido.
Com
isso, privilegiou-se a “cruz da dor” desligada da “cruz da
vida”, do compromisso com o Reino. Tal concepção desembocou numa vivência
cristã intimista, farisaica, alienada, descompromissada...
Sabemos
que o(a) seguidor(a) de Jesus quando vive a fidelidade à “cruz-staurós”, por
causa do Reino, pode encontrar a perseguição, oposição e morte, como o próprio
Jesus (a cruz patíbulo). Mas Jesus integra a “cruz patíbulo” e revela sua
máxima solidariedade com todos os crucificados da história. Por isso, esta Cruz
assumida é também visibilização da salvação.
Nos relatos da Paixão de Jesus encontramos a presença das mulheres que
vivem a “cruz-staurós”, ou seja, vivem a fidelidade ao seguimento de Jesus
desde a Galileia. Enquanto os discípulos fogem, elas permanecem “de pé junto à
Cruz”, numa atitude solidária e comprometida. A presença delas, certamente, foi
um alívio para Jesus no momento trágico de sua vida: sentiu que não estava
sozinho, pois suas amigas caminhavam com Ele, sofriam com Ele, morriam com
Ele...
Os evangelistas nos falam das mulheres muitas vezes; o relato da
crucificação revela suas presenças como testemunhas, mediadoras e verdadeiras
discípulas. Os relatos de Mateus, Marcos e Lucas coincidem em indicar que as
mulheres “contemplavam
a cena de longe”. João, “que vê por dentro”, as coloca junto à
cruz.
Estão
ali, precedendo-nos no caminho, e não dizem nada. É seu corpo, são seus gestos,
suas mãos, seus olhos, seu silêncio... que falam por elas. A linguagem delas é
a linguagem da relação. Se elas podem permanecer nessas circunstâncias, é
porque amaram muito. Elas nos falam de resistência e de fidelidade, de uma
presença comovedora. Estão juntas, expostas a outros olhares, como comunidade
de discípulas em torno a seu Mestre, que lhes ensina, agora sem palavras, uma
sabedoria muito maior.
Em meio à
impotência, não se afastam da dor experimentada ao ver sofrer a quem mais se ama,
senão que se expõem ao olhar d’Aquele cujo rosto foi desfigurado.
* Quem são elas? De onde tiraram forças para
permanecer ali quando outros se afastaram?
* Onde estas
mulheres encontraram a força para segui-Lo por este caminho do Calvário? Que
faziam elas ali,
junto à
cruz? Realizam alguma ação eficaz? Vão poder impedir a morte de um inocente?
Algumas destas mulheres são chamadas por seu nome próprio, ou são
identificadas por vínculos de parentesco, ou ainda por ter gerado e acompanhado
outras vidas. São as mesmas mulheres que haviam seguido e servido a Jesus na
Galileia, e agora o farão também na Sua morte. Sobem com Ele ao lugar do
abandono e da ingratidão, levantando uma ponte de proximidade e de
solidariedade que cruza a totalidade da vida de Jesus. Nem um só instante
afastaram seus olhares d’Ele. E o que para uns é escândalo e para outros é
loucura, para estas mulheres é uma força de Deus impressionante.
Elas têm a coragem de permanecer ali, acolhendo o
acontecimento em toda sua crueldade e profundidade; elas estão de pé, enquanto
outros desistiram ou se afastaram assustados.
A partir deste momento elas vão aprendendo a
conviver com a morte, com a d’Ele, com a sua e com a dos outros. Vão
aprendendo, precisamente em meio à morte, a “celebrar a vida”, mesmo intuindo
que uma lança também as atravessará.
Estas mulheres nos ensinam que “subir a Jerusalém” é assumir o conflito e a
rejeição por defender os pobres e pequenos; é encontrar a perseguição devido ao
compromisso em favor da vida; é saber que os grãos que caem em terra precisam
morrer para germinar e multiplicar a vida.
E é, também, subir animando a outros.
Neste dia, a presença silenciosa das mulheres junto à Cruz nos ensina a com-padecer,
a abrir o coração e a despertar a sensibilidade solidária diante do sofrimento
e da dor humanas. Nós nos humanizamos quando nos deixamos configurar pela
compaixão, afetar por ela, ser tocados por ela.
E deixar que a compaixão comande nossos atos e decisões. Com-paixão,
padecer com: esse é o segredo da vida, vivida em plenitude. Solidarizar-nos com
o outro naquela situação onde ele ou ela não nos pode retribuir, pois está
reduzido apenas a uma dor sem limites, a um sofrimento sem explicações.
Uma vida pensada sem “mortes” perde-se, no final,
na total irresponsabilidade. E viver significa esvaziar-nos do ego para
deixar transparecer o que há de divino em nosso interior. O grão de
trigo que não morre, apodrece, e não multiplica as mil possibilidades latentes
em seu interior.
É gratificante fazer memória de tantos homens e
mulheres que foram presença compassiva e, à maneira das mulheres junto à Cruz,
consumiram suas vidas em favor da vida; histórias silenciosas de tantas pessoas
que com sua presença ajudaram os outros a viver; pessoas que revelaram a paixão
por viver em pequenas paciências cotidianas, que entregaram suas vidas sem
brilho algum, sem vozes que as proclamassem; foram como o fermento silencioso
que se dissolve na massa para fazê-la crescer.
Isso
foram as mulheres para Jesus: companheiras, solidárias, compreensivas no
sofrimento. E serão elas as primeiras em experimentar e anunciar a “Vida vestida de presença”, na
manhã da Ressurreição.
Texto bíblico: Jo 18,1-19,42
Na
oração:
Somos grãos de trigo na grande Seara do mundo; e o
grão de trigo eterniza-se na sua entrega-doação para que outros matem suas
fomes e vivam com sentido.
Aprendamos a morrer para nossos interesses mesquinhos; só assim nossa
vida terá a dimensão da eternidade.
- “Se a semente do trigo sou eu,
a que devo morrer, para que a vida
interior possa se expandir?”
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