Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, SJ, como sugestão para rezar o Evangelho do 3º Domingo da Páscoa (2023 - Ano A).
“Quando se sentou à mesa com eles, tomou o pão, abençoou-o, partiu-o e lhes distribuía” (Lc 24,30)
Todos temos experiência que o passado carrega lembranças de fatos e
de vivências negativas: crises, fracassos, decepções, rejeições, erros,
pecados... Os desencontros, quebras e rupturas... costumam deixar feridas. Tudo
isso pesa na memória e continua
influenciando negativamente no presente.
Com isso, ela se torna “memória mórbida, doentia”:
depósito de rancores, ressentimentos, hostilidades...; ao se fixar no passado,
a “memória mórbida” alimenta remorsos, sentimentos de culpa, desânimo,
angústia..., embotando a vida, queimando energias, paralisando a pessoa e não
abrindo futuro de sentido.
Pessoa doente na memória é doente no seu coração,
na sua afetividade, nos seus sentimentos...
Se a memória não é “evangelizada”, ela continua
remoendo aquilo que aconteceu, num desgaste muito grande de energia. Não há
mudança e conversão se não houver mudança e conversão da memória.
Somente através da “memória redentora”, a pessoa será capaz de se colocar diante do
passado, de modo livre e aberto, dando-lhe um novo significado.
A memória sadia não muda o passado,
mas “re-corda” (visita com o coração) de modo novo e inspirador. A memória resgata referências, cura
feridas, reconcilia-se com a vida e consigo mesma, com as próprias riquezas e
fraquezas, com o próprio passado; ela tem sua função de lugar santo do louvor e
da gratidão, pois ajuda a tomar consciência dos benefícios recebidos e possibilita ter acesso às
recordações
não neutras, mas aquelas que tem um significado para o presente. Ela é capaz de tirar proveito de todas as vivências
pessoais (nada é descartado, tudo é integrado); abre possibilidade para rever a
própria história e lê-la como História de Salvação.
A cena do encontro de Jesus Ressuscitado no caminho de Emaús nos revela um longo diálogo amigável, que certamente
ficou marcado na memória dos dois discípulos que fugiam de Jerusalém, após o
evento da Paixão. Tudo o que havia acontecido com Jesus continuava
presente na memória e no coração dos dois discípulos. Conversavam sobre o que significou para eles o encontro com Jesus, a convivência com
Ele, o fascínio exercido sobre eles pelo anúncio do Evangelho e pela esperança
da libertação de Israel.
Conversavam e discutiam também sobre
a crucifixão e a morte de Jesus.
No fundo do coração dos discípulos havia um grande
vazio que, inconscientemente, queriam preencher “conversando”. Estavam
confusos e desorientados, mas não se separaram; não conseguiam entender-se, mas
continuavam a caminhar lado a lado e
a conversar; uma conversa carregada de tristeza, sem sentido, um diálogo de fracassados que não levava
a lugar nenhum.
Foi justamente no meio desta “conversação”, triste e
sem esperança, que o Ressuscitado se fez presente.
O Forasteiro, ao juntar-se a eles no caminho, ajudou-os a recontar a história, gentil e gradualmente.
Partindo dos relatos bíblicos o Ressuscitado foi aquecendo o coração dos dois
discípulos para que eles pudessem re-interpretar e ressignificar os fatos que
tinham “acontecido em Jerusalém” até surgir uma nova perspectiva. Lentamente,
eles foram fazendo a “travessia” de uma memória pesada, triste, doentia... a
uma memória saudável, curativa e aberta ao futuro.
As viagens que fazemos em direção à reconciliação com nosso passado, muitas vezes se parecem com a
viagem dos discípulos de Emaús. Na maioria das vezes, procuramos fugir da dor
do passado e não sabemos para onde nos dirigimos. A viagem torna-se tediosa e pesada, marcada pelo fracasso e carregada
de culpa, pois parece que não chegamos a lugar algum, embora nos movimentemos o
tempo todo. É como estar preso a um moinho que nos mantém em movimento, mas não
nos faz sair do lugar.
Re-ler o passado à luz de um horizonte maior de sentido é altamente libertador;
novos recursos internos são mobilizados e a vida começa se movimentar, saindo
do “fatal ponto morto”. As lembranças
e os pesadelos dos relatos traumáticos sempre reaparecem e, apesar da passagem
do tempo, permanecem tão nítidos e incontroláveis. No entanto, é preciso
iluminá-los e situá-los no contexto dos relatos da História da Salvação. Só
assim tudo adquire novo sentido, a história pessoal deixa de ser inimiga que
alimenta culpa e torna-se companheira de estrada.
Quando alcançamos uma nova
perspectiva sobre determinada experiência traumática ou frustrante, a esperança
e o entusiasmo
por viver vem habitar nosso interior. Trata-se de um momento tão fortalecedor e
jubiloso que estremecemos reverentes diante do que vemos.
A narrativa de Emaús é
um dos melhores exemplos de como podemos colocar nossas histórias dentro da História maior da paixão, morte e ressurreição de Jesus. “A Páscoa ocorre quando
encontramos em Jesus não um amigo morto, mas um forasteiro vivo” (Rowan
William). Na narrativa de Emaús, o Forasteiro cria um
círculo de amor em que os discípulos contam sua história em segurança e começam a reconstruir a confiança. Foi
criado um ambiente de hospitalidade e acolhida.
Nesse círculo, a memória
manifesta-se paulatinamente e revela suas feridas; lentamente, acontece uma
“passagem” da memória mórbida à memória redentora.
A experiência do encontro
com o Senhor e de seu reconhecimento transforma radicalmente a vida dos dois
discípulos. O itinerário da fé pascal
é longo e penoso, mas realiza uma verdadeira reviravolta nos pensamentos e
sentimentos, nos ideais e na conduta daqueles que o percorrem até o fim.
Por meio da benção e do ato
de partir e compartilhar o pão, os
discípulos fazem a ligação com o passado.
Chega o momento do
reconhecimento, e eles se transformam. Cheios de estímulo e esperança, e também
de um novo propósito, apressam-se a voltar para Jerusalém a fim de partilhar a
nova descoberta.
Que representa para nós a experiência de Emaús?
É na estrada que essa história começa a se desenrolar.
O nó do problema não é a situação de fracasso de Jesus, como os discípulos
pensam; o que está verdadeiramente em foco é a situação deles. Não é Jesus que
desaparecera, eles é que ainda não conseguem vê-Lo e reconhecê-Lo, prisioneiros
de uma tristeza e de uma cegueira tal que os impediam de aceitar a condição
pascal de Jesus. Também eles precisam passar pela experiência de ressurreição,
pois permanecem enfaixados no túmulo do passado e do fracasso.
Os dois discípulos vêem Jesus, mas não o reconhecem,
porque a visão deles é, ainda, a pré-pascal. Foi preciso despertar a “memória
redentora”, ativada pelo próprio Jesus, para que a experiência de intimidade fosse
construída na Estrada, na escuta da Palavra, no convite a entrar em Casa e no
ato de sentar-se à Mesa, onde acontece a benção e a fração do pão.
O relato deste domingo não fornece
pormenores sobre a casa nem nos garante que ela seja a de um dos
discípulos. Contudo o convite “fica conosco” destaca um elevado grau de
aproximação. Jesus deixa de ser um forasteiro. O convite a que permaneça com
eles traduz um desejo de relação e hospitalidade.
As casas, em Lucas, são
territórios onde Jesus desenvolve preferencialmente o seu ministério sobre o
anúncio do Reino. A casa chega mesmo a representar uma alternativa ao Templo, e
a tudo o que ele simboliza.
O centro das casas, no Evangelho, é a mesa; também aqui o movimento de Jesus vai nessa direção: “sentou-se à mesa com eles”. Aquele que era o forasteiro agora é o anfitrião; Aquele que estava morto convida a partilhar a sua vida.
Texto bíblico: Lc 24,13-35
Na
oração:
O Tempo Pascal é uma escola de “leitura orante da nossa história”,
pois nos ajuda a abrir os olhos para a sua novidade inesgotável, faz “arder o
coração”, desperta o desejo e mobiliza todas as nossas capacidades para um
compromisso de ação na história pessoal e coletiva.
“Há feridas que em vez de abrir nossa pele, abrem nossos olhos” (Pablo Neruda). A memória desempenha aqui um papel
essencial. Quando evangelizada, é a que permite abrir as portas e pôr em
movimento os dinamismos de vida, muitas vezes reprimidos pelas crises, feridas
e fracassos.
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Na estrada de sua vida, o que tem predominado: “memória doentia” ou “memória
agradecida”?
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