Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj, como sugestão para rezar e meditar os acontecimentos da Semana Santa 2023: Quinta-feira Santa.
“Estavam tomando a ceia”; “e começou a lavar os pés dos discípulos...” (Jo 13,2.5)
Esta foi a prática de Jesus que mais causou espanto e escândalo: a partilha
nas mesas com pobres e pecadores. Literalmente, Jesus foi aquele que “virou
mesas” de muitas pessoas e fundou uma outra mesa: mesa da
partilha, da festa, mesa da fraternidade onde todos se sentem iguais... Mesa
da vida.
Trata-se de uma mesa provocativa, questionadora, incômoda... que
requer mudança de lugar, de mentalidade, de atitude... Sair da
própria mesa e caminhar em direção à mesa dos outros.
Comendo e bebendo
com todos os excluídos, Jesus estava transgredindo e desafiando as formalidades
do comportamento social e das regras que estabeleciam a desigualdade, a
divisão, a exclusão...
Jesus
revelava uma grande liberdade ao transitar por diferentes mesas; mesas
escandalosas que o faziam próximo dos pecadores, pobres e excluídos... Ele não
só transitou por outras mesas, mas instituiu a grande Mesa para a
festa, a intimidade, a memória: a “mesa do Lava-pés e da Última Ceia”.
Ali, Ele “despoja-se
do manto” (sinal
de dignidade de “senhor”) e pega o avental
(toalha, “ferramenta” de servidor). Jesus está no meio dos homens como Aquele
que serve.
“Despojar-se
do manto”
significa “dar a vida” sob a forma de serviço.
Jesus
coloca toda a sua pessoa aos pés dos seus discípulos. O Criador põe-se aos pés
da criatura para revelar como ela é amada e como deve amar.
O
texto joanino nos diz que Jesus realizou o “lava-pés” durante a última Ceia.
Todas as refeições tinham o “lava-mãos”. Algumas ceias especiais tinham o “lava-pés”
no início como sinal de acolhida e de hospitalidade. Jesus realiza seu gesto enquanto a refeição
está acontecendo. Certamente Ele estabeleceu uma relação muito estreita entre o
comer e o servir, melhor dizendo, entre a refeição
e o serviço solidário.
Até
Jesus, os convidados para a refeição eram servidos e saiam satisfeitos. A
partir de Jesus, os convidados para a refeição servem-se uns aos outros e saem
da refeição para servir os outros. O dom recebido é partilhado entre os seus;
mas isso não basta, ele precisa ser colocado à disposição de todos, a começar
pelos mais carentes. O dom é, ao mesmo tempo, graça e missão.
O Evangelho de João, portanto, substitui a
instituição da Eucaristia pelo Lava-pés.
Audaciosa inovação que dirige o gesto
eucarístico para a revolução das relações humanas: o poder do Senhor se converte em capacidade para servir; a autoridade não
se exerce submetendo o outro, mas possibilitando que o outro “seja”.
Com este
gesto Jesus des-vela uma imagem nova
de Deus: o Todo-Misericordioso esvazia toda e qualquer expressão de poder
e submissão entre os humanos.
Ninguém
serve a Deus, a não ser do jeito de Jesus, isto é, lavando os pés, amando até o
fim.
Nosso
Deus não é prepotência, mas condescendência. É o Criador que se põe aos pés da
criatura.
Nosso
Deus é um Deus que “desce”, que se “inclina” para acolher.
Mistério
da Encarnação: Deus abraçando e sendo encontrado junto aos pés dos seus
filhos(as).
O “descendimento” do Senhor aos pés dos discípulos e fazendo-se
servidor, transforma o status da servidão
(“o servo não sabe o que faz seu senhor” - Jo. 15,15) em fraternidade (“não vos
chamo servos, mas amigos - Jo. 15,15).
Deste modo, aqui se revela o verdadeiro senhorio de Jesus: a possibilidade de restabelecer a igualdade
entre as pessoas através da superabundância de um amor que se derrama, sem reservas, para todos. Este gesto
provocativo de serviço e despojamento d’Aquele que é “Senhor” desperta em cada seguidor(a) o desejo de considerar suas
qualidades e capacidades como veículos de doação, não de poder ou de
manipulação.
A partir deste “ousado gesto” já não se justifica nenhum
tipo de superioridade, mas somente a relação pessoal de irmãos(ãs) e amigos(as).
O
Lava-pés é gesto ousado que
quebra toda pretensão de poder. Jesus viu claramente que o perigo mais grave
que ameaça seus seguidores é a tentação do poder.
Não há dúvida de que isso é o que causa o maior dano a todos, o que mais nos
desumaniza, pois alimenta divisão, submissão, obediência infantil...
Por
isso, com esse gesto, Jesus expressa que nunca quis agir como o superior que se
impõe com poder; do mesmo modo, viu em semelhante comportamento uma conduta
radicalmente inaceitável entre seus seguidores. A relação que se estabeleceu
entre os discípulos e Jesus não foi a de submissão a um poder que manda e dá
ordens, mas a do “seguimento”
que brota da experiência de sentir-se atraído e seduzido pelo “modo de
proceder” do mesmo Jesus.
O gesto do lava-pés é repleto
da “espiritualidade
do cuidado”.
O cuidado é um diálogo de presenças, não
só de palavras. São seres “vulneráveis” que se encontram.
O cuidado é expressão de ternura e
delicadeza. É atenção às pessoas; é gesto de inclusão.
O cuidado
é gesto amoroso para com o outro, gesto que protege e traz serenidade e paz.
O amor
é a expressão mais alta do cuidado, porque tudo o que amamos cuidamos. E
tudo o que cuidamos é um sinal de que também amamos. Cuidar é
envolver-se com o outro ou com a comunidade de vida, mostrando zelo e
preocupação. Mas é sempre uma atitude de benevolência que quer estar junto,
acompanhar e proteger; é ter espírito de gentileza e ternura para captar e
sentir o outro como outro, como original, e acolhê-lo na sua diferença.
Lava-pés não é
teatro, mas modo habitual de proceder e de estar no mundo.
“Tal Cristo, tal cristão”: na vivência
do serviço evangélico, somos chamados a vestir o “avental de Jesus”.
“Vestir o coração” com o avental da simplicidade, da ternura acolhedora, da escuta comprometida,
da presença atenciosa, do serviço desinteressado...
O que é “tirar o manto?” Para nós o “manto”
poderia ser nossa máscara, nossa redoma, nossa capa de proteção que nos
distancia dos outros...; é tudo aquilo que impede a agilidade e a prontidão no
serviço... “Tirar o manto” é a atitude firme de quem se dispõe a “arrancar”
tudo o que possa ser empecilho para melhor servir; é mover-se, despojado, em
direção ao outro; é optar pela solidariedade e a partilha; é renovar a vontade
de “incluir”
o outro no nosso projeto de vida.
Precisamos “levantar-nos da mesa” cotidianamente. Há sempre um lar que nos
espera, um ambiente carente, um serviço urgente. Há pessoas que aguardam nossa
presença compassiva e servidora, nosso coração aberto, nossa acolhida e cuidado
amoroso...
Ora, se não nos livrarmos do manto, tornar-se-á difícil realizar gestos ousados, criativos...
Sempre teremos “pés” para lavar, mãos estendidas
para acolher, irmãos que nos esperam, situações delicadas a serem enfrentadas
com coragem... A mesa da vida aponta para a direção da gratuidade, da
alegria, do convívio, do amor e da comunhão. É preciso “sentar à mesa” para
renovarmos as forças e redobrarmos a coragem de nos levantar e, na
humildade, sem manto, servir com amor, do jeito de Jesus.
“Levantar-nos da mesa” – “sentar-nos à mesa”: movimento de partida e de chegada; mesa que se projeta para o serviço;
mesa que faz memória festiva; mesa do encontro e da partilha. Junto à mesa
prolonga-se o gesto provocativo e escandaloso de Jesus. Isso é viver a Eucaristia
no cotidiano da vida.
Texto bíblico: Jo. 13,1-17
Na oração:
Não podemos esquecer que na
origem daquilo que celebramos neste dia houve uma ceia de despedida, e
que somos convidados não a um espetáculo, nem a uma representação, nem a uma
conferência, mas a uma refeição fraterna. E, para participar da refeição, a
primeira exigência é “ter fome”.
- “De quê tenho fome? De quê
tenho sede?”
- Como posso vivenciar, no cotidiano, a beleza e o
cuidado revelados no gesto do lava-pés?
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