Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj, como sugestão para rezar e meditar os acontecimentos da Semana Santa 2023: Quarta-feira Santa.
“Ao cair da tarde, Jesus pôs-se à mesa com os doze discípulos” (Mt 26,20)
Dá muito o que pensar o
significado antropológico da mesa,
que tem um papel tão central na construção das nossas humanidades e é
realmente, na diversidade de suas formas, medidas e feitios, um objeto
transcultural. Não é por acaso que Jesus colocou a mesa no centro da celebração
da fé cristã.
Porque é que existe a mesa?
Porque é que nos sentamos à mesa uns com os outros para tomar a refeição? Não
será apenas por razões materiais ou econômicas, mas sobretudo por razões de
vida. Sentamo-nos juntos em torno do alimento, porque nos alimentamos não só de
comida, mas da partilha dos dons de cada um. Temos uma verdadeira necessidade
da presença, da hospitalidade, da palavra, do cuidado e do afeto dos outros. À
volta de uma mesa reconhecemo-nos melhor, alimentamo-nos mutuamente com um
alimento invisível: o da relação (cf. José Tolentino - Elogio da sede).
Uma das chaves de compreensão da pessoa de Jesus é a relação d’Ele com a
“mesa da refeição”.
Ele revelou uma grande liberdade ao transitar por diferentes mesas;
mesas escandalosas que o faziam próximo dos pecadores, pobres e excluídos. Ele
não só transitou por tantas mesas, mas instituiu a grande mesa para a festa, a intimidade, a memória: a “mesa da Ceia Pascal”.
Jesus descobriu junto à mesa o melhor jeito de se encontrar para
celebrar a vida, reconstruir relações mais saudáveis, romper as distâncias
Em muitas
culturas, a mesa da refeição é, ainda, o lugar mais importante da casa.
Para a “mesa
da refeição” convergem todos os encontros; ela é o centro
para onde se voltam mentes e corações e não apenas estômagos vazios; ela se
torna o grande palco da vida e, nesse palco, todas as histórias pessoais e
coletivas são recontadas, revividas e revitalizadas, dando sentido à vida
cotidiana.
Em cada
encontro uma surpresa, uma riqueza revelada para os que se aventuram tomar
parte dela.
O “pôr-se-à-mesa” é mais do que
aproximar-se da fonte da alimentação. É procurar a comunhão, a união, o
convívio. Por isso, os que se assentam junto à mesa são “comensais” (companheiros
de mesa).
A mesa
tem o poder de romper fronteiras e hierarquias, pois quem dela se aproxima é
bem-vindo por ser pessoa, gente, e não por ostentar títulos, status... A mesa é sempre oblativa, acolhedora,
congrega as diferenças, quebra as hierarquias sociais...
A mesa
funciona, então, como oportunidade ou lugar privilegiado, onde se elabora e se
vive um encontro de profundidade. A mesa faz a comunidade, reforça a
fraternidade, intensifica a amizade.
Podemos afirmar que, partindo da “espiritualidade da mesa”, em
torno do gesto de comer em comum, desvelamos um “modus vivendi” de um
determinado povo, sua vida, seus hábitos e seu jeito de ser.
A nossa conduta numa refeição revela também o nosso agir social. Nesse
encontro, nós comensais, vamos tecendo relações sociais de diálogo, de
projetos, de compromissos...
Em última
instância, o que nos reúne junto à mesa não é o simples fato de poder
comer; existe, antes, algo que nos mantém unidos: um ideal, uma amizade, um
laço de família, uma função comum, um acontecimento... Supõe-se que reine entre
nós um conhecimento mútuo, ou ao menos um desejo profundo de estreitar laços de
amizade.
Nós nos
aproximamos da mesa como quem está diante de um território sagrado,
porque sagrados são os alimentos e quem deles se alimenta.
À “mesa
da refeição” encontramos pessoas abertas, lúcidas de seu momento, que não
se deixam abater pelos fracassos e nem mesmo pelo sofrimento. São pessoas
capazes de partilhar, de falar de si, de suas alegrias, conquistas, sonhos, mas
também de suas dores, desânimos e cansaços.
Essas pessoas buscam, junto à mesa, alimento para a vida; elas têm fome
de algo para além do pão da mesa. “Não quero a
faca, nem o queijo. Quero a fome” (Adélia
Prado).
No relato da Última Ceia, Jesus nos convida a adentrarmos no território
sagrado, consagrado, chamado “mesa da refeição”. Tão rica é essa mesa
que sua espiritualidade, vista como manancial da vida, não exclui nenhum
momento: situações tristes, felizes, momentos de sofrimento, de luta, de
vitória...
Nesse espaço, onde o Eterno quer habitar, é que encontramos o bálsamo e
o alívio para o nosso corpo e nossa existência psíquica e espiritual. Nessa
fonte sagrada, o sofrimento pode ser compartilhado, a tristeza transformada em
alegria, as trevas em luz, o desejo em realidade, a esperança pode ser
reacendida.
É nessa mesa
fecunda de alimentos que o Sagrado irrompe em meio aos nossos esquemas
prévios, nos fazendo diferentes, separados da torrente massificante do dia a
dia.
Ela nos
sacia para voltarmos ao cotidiano, convictos de que não vivemos fechados nele,
mas somos seres de passagem, em constante êxodo: “passar” da mesa
de refeição como lugar onde matamos nossas fomes à mesa de refeição como espaço
do sagrado. A mesa, com seus
cantos e encantos, tem uma mística; ela carrega, nas suas entranhas, a força de
uma peregrinação, o impulso para fazer caminho.
A mesa
é ponto de chegada e ponto de partida; é “lugar” de celebração e de envio, de
festa e de missão.
Ao redor
da mesa nos movemos, somos, existimos e nos descobrimos para além de nós
mesmos.
É ela que
nos humaniza, nos expande em direção aos outros, nos faz solidários e
sensíveis, sobretudo àqueles que não tem acesso à mesa da vida (os famintos, os
pobres, os excluídos...)
Há personagens do Evangelho cuja
notoriedade ultrapassa as margens do texto onde são recolhidas suas atuações.
São imagens históricas de alcance universal, tais como Lázaro, a Samaritana,
Jairo, Maria Madalena, Zaqueu, Pedro...
Junto a estes personagens de primeira fila, encontramos outros, anônimos
e sem protagonismo, presentes nas estantes menos visíveis do relato evangélico.
Um dos mais desconhecidos é o homem que emprestou sua casa para que Jesus
celebrasse a Páscoa com seus discípulos.
Na maioria das vezes ele passa desapercebido. Sua
passagem pela cena é vista, mas não lhe é dada atenção. Uma aparição tão passageira
no texto que a maioria dos leitores não se fixa nele, apesar de ser citado nos
três primeiros evangelhos. Por isso, ele se revela como
inspirador a todos nós neste dia.
O saber estar “à sombra” para não fazer sombra a
outros, a atitude de acolhida, a preocupação pelo bem-estar dos demais, a
prontidão e a disponibilidade em abrir sua casa, o agir com a liberdade de quem sabe o
que faz, colocando-se à inteira disposição dos outros, com total generosidade:
estas são as qualidades com as quais o “um certo homem da cidade” entrou
em sintonia com o desejo de Jesus em celebrar a Páscoa com seus discípulos. No
seu anonimato ele deixa transparecer sua “existência eucarística”: ele nos
revela uma presença surpreendente e servidora, presença que aponta para uma
outra presença, a de Jesus.
Na realidade, ele foi o verdadeiro discípulo
servidor, dando sua contribuição decisiva ao mistério da salvação. Presença anônima, mas comprometida;
presença que é “música calada” no
seu cotidiano, uma presença que se manifesta na ausência de recompensa ou de
interesse próprio.
Textos bíblicos: Mt 26,14-25
Na oração:
É urgente sermos criativos o
suficiente para superarmos os desafios, na esperança de que venha o despertar
da “nova
mesa”, com gosto de pão, de vida fraterna, de compromisso...
Mesa criativa, solo de onde brota o alimento material, emocional,
psíquico e espiritual em suas múltiplas formas, cores, aromas e sabores do
Reino do Pão e da Festa da Vida.
- Quê lugar tem a mesa da refeição no cotidiano de sua vida familiar, comunitária...?
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