quinta-feira, 27 de abril de 2023

A instigante missão de “ser porta” para os outros

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, SJ, como sugestão para rezar o Evangelho do 4º  Domingo da Páscoa (2023 - Ano A). 

“Eu sou a porta. Quem entrar por mim, será salvo; entrará e sairá e encontrará pastagem” (Jo 10,9) 

A liturgia deste quarto domingo de Páscoa nos traz, em primeiro lugar, a imagem de Jesus-Pastor que conduz e guarda, anima e protege aqueles(as) que o seguem; a segunda imagem pascal é a “porta da liberdade” pela qual saem e entram as ovelhas, ou seja, todos nós, sem que ninguém nos persiga nem domine. O próprio Cristo Ressuscitado é a porta da liberdade.

A terceira imagem refere-se a todos nós, transformados pelo Ressuscitado em pastores e porta de liberdade em um mundo onde impera a escravidão da violência, da indiferença e do ódio.

“Eu sou a porta”: Jesus não se refere à peça de madeira ou ferro que gira para abrir ou fechar o curral das ovelhas, mas o espaço por onde se pode ter acesso ao recinto. Por isso, Jesus afirma que é a porta das ovelhas, não do redil. “Passar por Ele” é “entrar” na Vida, é deixar-se revestir pelo seu modo de ser e viver. Todos os que vieram antes são ladrões ou bandidos porque não facilitaram a liberdade e a vida às ovelhas.

Entrar pela porta que é Jesus é o mesmo que “aproximar-se dele”, “identificar-se com Ele”, “aderir a Ele”; isso implica assemelhar-se a Ele, ou seja, caminhar com Ele na busca do bem das pessoas. Ele dá a vida definitiva, e aquele que possui essa Vida ficará a salvo da exploração. Ele é a alternativa à ordem injusta.

Em Jesus, o ser humano pode alcançar a verdadeira salvação. “Poderá entrar e sair”, ou seja, terá liberdade de movimento. “Encontrará pastagem” é o mesmo que dizer: “não passará fome nem sede”.

O Bom Pastor inaugura um movimento de vida; Ele não vem fundar novas instituições que travam a liberdade das pessoas, nem vem trazer novas leis que se tornam peso nas costas dos seus seguidores. Seu jugo é suave e seu peso é leve (cf. Mt 11,30). Por isso Ele se define como “Porta da Vida” que está sempre aberta. Por ela temos acesso ao seu coração carregado de bondade e compaixão.

Aqueles que escutam sua voz deixam o ambiente opressor e vivem em liberdade. Jesus não vem substituir uma instituição por outra; não tira as ovelhas de um curral para prendê-las em outro.

“Entrar” e “sair” pela porta:  aí está a experiência de viver a vida ressuscitada em toda a sua plenitude e de “saborear” a existência em toda a sua promessa.

A porta é uma realidade e é um símbolo. “Entrar” e “sair” pela Porta que é o próprio Cristo Ressuscitado, desata em nós a consciência de sermos “portas abertas em nossa interioridade”.

Passar pela “Porta” do Ressuscitado é destravar a porta de nossa interioridade para que a vida possa se expandir e receber novos ares; passar pela “Porta” do Vivente é ter acesso à nossa verdadeira identidade.

Quando a experiência de encontro com Aquele que é a “Porta da Vida” abre a porta de nosso redil interior, ela faz emergir à nossa consciência as profundidades desconhecidas do nosso ser, reacende nossa vida e libera em nós as melhores possibilidades, recursos, capacidades, intuições…; ao mesmo tempo nos faz descobrir em nós, nossa verdade mais profunda de pessoas amadas, únicas, sagradas, responsáveis...

Assim, de portas abertas, nossa vida se expande em direção aos outros e à Criação, possibilitando uma conexão livre com toda a realidade, através da íntima solidariedade e do compromisso ativo.

No atual contexto social e religioso tudo contribui para vivermos a cultura das “portas fechadas” que excluem, dividem, marginalizam...; isso provoca a contaminação de nosso coração: ódio, intolerância, indiferença, preconceito... Muitos de nós continuamos presos dentro de um medo neurótico, sem atrever-nos a ser o que somos, sem abrir a porta do coração de nossa vida.

Frente à realidade que insiste para que fechemos as portas, construamos muros, o evangelho deste domingo nos inspira a viver uma atitude de permanente abertura, de não ter medo frente à nova vida que nos chega através do Ressuscitado. Ele vem para abrir as portas, enviar-nos ao mundo com uma palavra de perdão, com um testemunho de vida, com uma presença libertadora...

Segundo a tradição bíblica, o que mais nos desumaniza é viver com um “coração fechado” e endurecido, um “coração de pedra”, incapaz de amar e de crer. Quem vive “fechado em si mesmo”, não pode acolher o Espírito de Deus, não pode deixar-se guiar pelo Espírito de Jesus.

Quando nosso coração está “fechado”, nossos olhos não veem, nossos ouvidos não ouvem, nossos braços e pés se atrofiam e não se movimentam em direção ao outro; passamos a viver voltados sobre nós mesmos, insensíveis à admiração e à ação de graças. Quando nosso coração está “fechado”, em nossa vida já não há mais compaixão e passamos a viver indiferentes à violência e injustiça que destroem a felicidade de tantas pessoas. Vivemos separados da vida, desconectados. Uma fronteira invisível nos separa do Espírito de Deus que tudo dinamiza e inspira; é impossível sentir a vida como Jesus sentia.

Em meio às mudanças e às transformações de nosso tempo, somos chamados, como seguidores(as) do Bom Pastor, a ser pessoas de interioridade. E interioridade é um caminho sempre inacabado.

Frente aos desafios que a vida hoje nos apresenta, é decisivo favorecer um espaço interior livre, ou seja, liberado de tudo aquilo que possa entorpecê-lo inutilmente, para “sentir e saborear as coisas internamente” (S. Inácio). Não é possível “ajudar os outros” a viver interiormente se nós mesmos não vivemos nesse redil de silêncio, de gratuidade e de interioridade, onde buscamos as motivações e as inspirações de nossa missão (família, trabalho, relações...). Sem buscar e encontrar os caminhos da interioridade corremos o risco de secar nossa generosidade cotidiana e de atrofiar o sentido de nossa existência e dos nossos mais fortes compromissos.

Para reavivar a graça pascal precisamos:

- “Ser” a porta da caridade e da misericórdia, revelando-nos agentes transmissores da bondade e da ternura de Deus; ser porta e mantê-la sempre aberta, mesmo que entrem fortes ventos ou pessoas inesperadas;

- “Ser” a porta para o novo, o diferente, superando toda suspeita, preconceito e medo; porta de passagem que nos possibilite compartilhar e aprender com todos os homens e mulheres de boa vontade para assumir os desafios mais cruciantes da humanidade de hoje;

- “Ser” porta aberta aos pobres e excluídos, reforçando a simplicidade como modo de vida e a solidariedade como proposta ousada;

- “Ser” a porta do encontro que é a chave de nossa cultura; que passemos e ajudemos a passar da chave da indiferença e da distância à chave da proximidade e do encontro;

- “Ser” a porta da comunicação direta, simples, inclusiva, transparente, próxima e fraterna.

- “Ser” a porta para denunciar a desigualdade social e econômica que produz tanta dor e tantas vítimas;

- “Ser” a porta que nos leve a um compromisso com a ecologia, o meio ambiente e o cuidado da natureza.

“Eis que estou à porta e bato; se alguém ouvir minha voz e abrir a porta, entrarei em sua casa e cearei com ele e ele comigo” (Ap 3,20). O convite é todo feito de ternura, de desejo e de liberdade, introduzindo-nos num movimento interior.

Como sempre, é Deus quem toma a iniciativa. O Espírito procura entrar para fecundar, recolocar em ordem, restaurar, unificar.

A experiência de “entrar” e “sair” da porta da interioridade é mobilização para “entrar” e “sair” com leveza alegre em cada circunstância da vida, para viver cada momento de maneira inspirada e ressuscitada.

Texto bíblico: Jo 10,1-10

Na oração:

Todos nós podemos e devemos ser pastores e porta de liberdade para os outros.

Que saibamos discernir, diante de tantas portas que temos atrás de nós, junto a nós e diante de nós, qual deve ser nosso proceder. As portas não se abrem e nem se fecham sozinhas; é preciso uma chave e ela está em nossas mãos. Cabe a cada um decidir: que a casa do nosso coração seja a casa da humanidade.

quarta-feira, 19 de abril de 2023

PÁSCOA: da estrada para a casa, da casa para a mesa

 Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, SJ, como sugestão para rezar o Evangelho do 3º  Domingo da Páscoa (2023 - Ano A). 

“Quando se sentou à mesa com eles, tomou o pão, abençoou-o, partiu-o e lhes distribuía” (Lc 24,30) 

Todos temos experiência que o passado carrega lembranças de fatos e de vivências negativas: crises, fracassos, decepções, rejeições, erros, pecados... Os desencontros, quebras e rupturas... costumam deixar feridas. Tudo isso pesa na memória e continua influenciando negativamente no presente.

Com isso, ela se torna “memória mórbida, doentia”: depósito de rancores, ressentimentos, hostilidades...; ao se fixar no passado, a “memória mórbida” alimenta remorsos, sentimentos de culpa, desânimo, angústia..., embotando a vida, queimando energias, paralisando a pessoa e não abrindo futuro de sentido.

Pessoa doente na memória é doente no seu coração, na sua afetividade, nos seus sentimentos...

Se a memória não é “evangelizada”, ela continua remoendo aquilo que aconteceu, num desgaste muito grande de energia. Não há mudança e conversão se não houver mudança e conversão da memória.

Somente através da “memória redentora”, a pessoa será capaz de se colocar diante do passado, de modo livre e aberto, dando-lhe um novo significado.

A memória sadia não muda o passado, mas “re-corda” (visita com o coração) de modo novo e inspirador. A memória resgata referências, cura feridas, reconcilia-se com a vida e consigo mesma, com as próprias riquezas e fraquezas, com o próprio passado; ela tem sua função de lugar santo do louvor e da gratidão, pois ajuda a tomar consciência dos benefícios recebidos e possibilita ter acesso às recordações não neutras, mas aquelas que tem um significado para o presente. Ela é capaz de tirar proveito de todas as vivências pessoais (nada é descartado, tudo é integrado); abre possibilidade para rever a própria história e lê-la como História de Salvação.

A cena do encontro de Jesus Ressuscitado no caminho de Emaús nos revela um longo diálogo amigável, que certamente ficou marcado na memória dos dois discípulos que fugiam de Jerusalém, após o evento da Paixão. Tudo o que havia acontecido com Jesus continuava presente na memória e no coração dos dois discípulos. Conversavam sobre o que significou para eles o encontro com Jesus, a convivência com Ele, o fascínio exercido sobre eles pelo anúncio do Evangelho e pela esperança da libertação de Israel.

Conversavam e discutiam também sobre a crucifixão e a morte de Jesus.

No fundo do coração dos discípulos havia um grande vazio que, inconscientemente, queriam preencher “conversando”. Estavam confusos e desorientados, mas não se separaram; não conseguiam entender-se, mas continuavam a caminhar lado a lado e a conversar; uma conversa carregada de tristeza, sem sentido, um diálogo de fracassados que não levava a lugar nenhum.

Foi justamente no meio desta “conversação”, triste e sem esperança, que o Ressuscitado se fez presente.

O Forasteiro, ao juntar-se a eles no caminho, ajudou-os a recontar a história, gentil e gradualmente. Partindo dos relatos bíblicos o Ressuscitado foi aquecendo o coração dos dois discípulos para que eles pudessem re-interpretar e ressignificar os fatos que tinham “acontecido em Jerusalém” até surgir uma nova perspectiva. Lentamente, eles foram fazendo a “travessia” de uma memória pesada, triste, doentia... a uma memória saudável, curativa e aberta ao futuro.

As viagens que fazemos em direção à reconciliação com nosso passado, muitas vezes se parecem com a viagem dos discípulos de Emaús. Na maioria das vezes, procuramos fugir da dor do passado e não sabemos para onde nos dirigimos. A viagem torna-se tediosa e pesada, marcada pelo fracasso e carregada de culpa, pois parece que não chegamos a lugar algum, embora nos movimentemos o tempo todo. É como estar preso a um moinho que nos mantém em movimento, mas não nos faz sair do lugar.

Re-ler o passado à luz de um horizonte maior de sentido é altamente libertador; novos recursos internos são mobilizados e a vida começa se movimentar, saindo do “fatal ponto morto”. As lembranças e os pesadelos dos relatos traumáticos sempre reaparecem e, apesar da passagem do tempo, permanecem tão nítidos e incontroláveis. No entanto, é preciso iluminá-los e situá-los no contexto dos relatos da História da Salvação. Só assim tudo adquire novo sentido, a história pessoal deixa de ser inimiga que alimenta culpa e torna-se companheira de estrada.

Quando alcançamos uma nova perspectiva sobre determinada experiência traumática ou frustrante, a esperança e o entusiasmo por viver vem habitar nosso interior. Trata-se de um momento tão fortalecedor e jubiloso que estremecemos reverentes diante do que vemos.

A narrativa de Emaús é um dos melhores exemplos de como podemos colocar nossas histórias dentro da História maior da paixão, morte e ressurreição de Jesus. “A Páscoa ocorre quando encontramos em Jesus não um amigo morto, mas um forasteiro vivo” (Rowan William). Na narrativa de Emaús, o Forasteiro cria um círculo de amor em que os discípulos contam sua história em segurança e começam a reconstruir a confiança. Foi criado um ambiente de hospitalidade e acolhida.

Nesse círculo, a memória manifesta-se paulatinamente e revela suas feridas; lentamente, acontece uma “passagem” da memória mórbida à memória redentora.

A experiência do encontro com o Senhor e de seu reconhecimento transforma radicalmente a vida dos dois discípulos. O itinerário da fé pascal é longo e penoso, mas realiza uma verdadeira reviravolta nos pensamentos e sentimentos, nos ideais e na conduta daqueles que o percorrem até o fim.

Por meio da benção e do ato de partir e compartilhar o pão, os discípulos fazem a ligação com o passado.

Chega o momento do reconhecimento, e eles se transformam. Cheios de estímulo e esperança, e também de um novo propósito, apressam-se a voltar para Jerusalém a fim de partilhar a nova descoberta.

Que representa para nós a experiência de Emaús?

É na estrada que essa história começa a se desenrolar. O nó do problema não é a situação de fracasso de Jesus, como os discípulos pensam; o que está verdadeiramente em foco é a situação deles. Não é Jesus que desaparecera, eles é que ainda não conseguem vê-Lo e reconhecê-Lo, prisioneiros de uma tristeza e de uma cegueira tal que os impediam de aceitar a condição pascal de Jesus. Também eles precisam passar pela experiência de ressurreição, pois permanecem enfaixados no túmulo do passado e do fracasso.

Os dois discípulos vêem Jesus, mas não o reconhecem, porque a visão deles é, ainda, a pré-pascal. Foi preciso despertar a “memória redentora”, ativada pelo próprio Jesus, para que a experiência de intimidade fosse construída na Estrada, na escuta da Palavra, no convite a entrar em Casa e no ato de sentar-se à Mesa, onde acontece a benção e a fração do pão.

O relato deste domingo não fornece pormenores sobre a casa nem nos garante que ela seja a de um dos discípulos. Contudo o convite “fica conosco” destaca um elevado grau de aproximação. Jesus deixa de ser um forasteiro. O convite a que permaneça com eles traduz um desejo de relação e hospitalidade.

As casas, em Lucas, são territórios onde Jesus desenvolve preferencialmente o seu ministério sobre o anúncio do Reino. A casa chega mesmo a representar uma alternativa ao Templo, e a tudo o que ele simboliza.

O centro das casas, no Evangelho, é a mesa; também aqui o movimento de Jesus vai nessa direção: “sentou-se à mesa com eles”. Aquele que era o forasteiro agora é o anfitrião; Aquele que estava morto convida a partilhar a sua vida.

Texto bíblicoLc 24,13-35

Na oração:

O Tempo Pascal é uma escola de “leitura orante da nossa história”, pois nos ajuda a abrir os olhos para a sua novidade inesgotável, faz “arder o coração”, desperta o desejo e mobiliza todas as nossas capacidades para um compromisso de ação na história pessoal e coletiva.

“Há feridas que em vez de abrir nossa pele, abrem nossos olhos” (Pablo Neruda). A memória desempenha aqui um papel essencial. Quando evangelizada, é a que permite abrir as portas e pôr em movimento os dinamismos de vida, muitas vezes reprimidos pelas crises, feridas e fracassos.

- Na estrada de sua vida, o que tem predominado: “memória doentia” ou “memória agradecida”?

domingo, 16 de abril de 2023

RESSURREIÇÃO: uma alegria com cicatrizes

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, SJ, como sugestão para rezar o Evangelho do 2º  Domingo da Páscoa (2023 - Ano A).

 “...e mostrou-lhes as mãos e o lado; então os discípulos se alegraram por verem o Senhor” (Jo 20,20)

Este 2º. Domingo de Páscoa revela-se como o domingo dos dons pascais: o dom da paz, como reconciliação do Ressuscitado com os seus discípulos; o dom do Espírito Santo que os recria como seres humanos novos; o dom da missão que os faz continuadores da obra de Jesus; o dom do perdão como expressão do amor pascal da e na comunidade; o dom da fé como adesão Àquele que é Vida; o dom da comunidade como lugar visível da presença do Ressuscitado.

Durante a paixão e morte de Jesus quase todos falharam: uns fugiram ou se esconderam, outro o traiu, um outro o negou abertamente, afirmando não ser seu discípulo ou conhecê-lo. Por isso, no encontro com o Ressuscitado, eles se sentem envergonhados e temerosos. E a primeira coisa que o Ressuscitado faz é devolver-lhes a alegria da reconciliação, ativando neles o dom da paz e do consolo.

Além disso, era preciso reconstruí-los por dentro; por isso, “soprou sobre eles” o dom do Espírito Santo, recriando-os. Se na criação Deus soprou nas narinas de Adão tornando-o um ser vivente, agora o Ressuscitado sopra sobre eles e não só comunica o dom da vida, mas seu próprio Espírito, tornando-os “homens novos da Páscoa”. E lhes confia a continuidade da missão que o Pai lhe havia encomendado.

Jesus também é consciente de que, apesar de tudo, seus amigos continuam sendo homens limitados e frágeis e lhes deixa o maravilhoso dom do perdão, capaz de reconstruí-los e de reforçar os vínculos comunitários.

Jesus ressuscitado não criou algumas estruturas nas quais a nova comunidade pudesse se mover e se organizar. Ele despertou um dinamismo interno capaz de mobilizar a nova comunidade dos seus seguidores.

Por isso, o primeiro dia da semana é o “domingo da comunidade”. Quase todas as aparições pascais têm lugar na comunidade. Jesus começa por curar e pacificar sua comunidade; uma comunidade enferma por sua infidelidade, seus medos e covardias; agora, uma comunidade curada e reconciliada já na primeira aparição. Mas alguém está ausente da comunidade: “Tomé não estava com eles”. Continua ferido e enfermo. E a comunidade se dá conta; não o exclui, pelo contrário, o protege. A comunidade procura integrá-lo, levantando-lhe o ânimo: “vimos o Senhor!”. “Está vivo; alegra-te conosco!”.

Mas Tomé não acredita neles; também ele quer ver o Senhor como os outros. Também ele quer ser curado pelo Ressuscitado. Com suas “feridas”, o Ressuscitado cura as feridas de cada um da comunidade.

Na segunda aparição destaca-se a presença de Tomé. Também ele vê; e o que os outros não fizeram, ele consegue tocar aquelas mãos chagadas. É o único que consegue pôr o dedo na chaga do lado. Mas terá que estar presente na comunidade.

Tomé não pecou contra Jesus; ele pecou contra a comunidade, pois não acreditou no testemunho dos seus companheiros de discipulado. Por isso Jesus o resgata e o faz proclamar publicamente, na comunidade, sua fé n’Ele, o Vivente. A comunidade agora curada pela presença do Ressuscitado torna-se comunidade pascal; é a comunidade do Ressuscitado; é a comunidade do Espírito Santo; é a comunidade da missão e do perdão; é a comunidade onde o Ressuscitado se faz visível.

Mas, esta nova comunidade ressuscitada não tem fim nela mesma. O evangelista João cuidou muito da cena em que Jesus vai confiar sua missão aos discípulos. Ele quer deixar bem claro o que é o essencial. Jesus está no centro da comunidade, como fator de unidade e transmitindo a todos sua paz e alegria, quebrando os medos, consolando-os e confirmando-os como continuadores da missão que Ele tinha iniciado na Galiléia.

Agora, como Ressuscitado, Jesus os “envia”; concretamente não lhes diz a quem devem se dirigir, o que deverão fazer ou como deverão agir. “Como o Pai me enviou, também eu vos envio”. A missão é a mesma que Jesus recebera do Pai: ser presença humanizadora no mundo, comprometendo-se com os enfermos e chagados, vítimas da situação social e religiosa de seu tempo.

Os discípulos já tinham visto de quem Jesus se aproximou, como cuidou dos mais desvalidos, como levou adiante seu projeto de humanizar a vida, como semeou gestos de libertação e de perdão. As feridas de suas mãos e seu lado lhes recordam sua entrega radical, evidenciando que é o mesmo que morreu na cruz. Ninguém pode tirar a verdadeira Vida que se revela em Jesus. A permanência dos sinais de morte, indica a permanência de seu amor. Além disso, garante a identificação do Ressuscitado com o Jesus Crucificado.

Assim como durante sua vida pública Jesus se fizera presente junto aos feridos, aliviando o sofrimento humano, agora, como Ressuscitado, continua solidário com todos os crucificados e chagados da história. Ao mostrar suas chagas para os discípulos, Ele está dizendo onde eles devem encontrá-Lo: no compromisso com os sofredores e excluídos, vítimas das estruturas sociais injustas que desumanizam.

Há uma tradição ancestral entre os japoneses que se refere à arte de recompor vasos quebrados. Quando uma peça de cerâmica se quebra, os mestres desta arte recompõem-na com ouro, deixando a cicatriz da reconstrução completamente à vista e sem ocultar as marcas da quebra; para eles, a peça reconstruída é um símbolo perfeito que alia fortaleza, fragilidade e beleza.

Os primeiros cristãos também decidiram conservar e transmitir a história de Jesus sem ocultar as muitas rupturas, feridas e traições que lhe acompanharam durante sua vida. Podiam ter adocicado, suavizado ou omitido diretamente os aspectos mais polêmicos ou os elementos mais humilhantes de seu dramático fim.

Com certeza, teriam evitado controvérsias e facilitado a aceitação da mensagem cristã. No entanto, não fizeram isso. Pelo contrário, deixaram as cicatrizes de suas feridas completamente à vista de todos e sem nenhuma dissimulação. Mas, fizeram isso não só para serem fiéis à história de Jesus, mas, sobretudo, para mostrar a fortaleza, a fragilidade e a beleza da reconstrução realizada por Deus na sua ressurreição.

Convinha mostrar o ouro precioso que preenche os espaços entre as peças quebradas, as “marcas” de Deus nas cicatrizes da história.

Também os discípulos estavam quebrados pelo fracasso, dor, tristeza, desânimo... O Ressuscitado, ao soprar sobre eles, recompôs com o fio de ouro do Espírito, tudo o que estava quebrado. Também eles foram ressuscitados e re-construídos em sua essência.

E agora, também eles recebem a nova missão de recompor pessoas quebradas, machucadas, feridas... com o ouro da acolhida, da compaixão, da presença solidária. “Re-compor o mundo quebrado” expressa a responsabilidade de todos para curar, reparar e transformar o mundo.

Uma das frases que melhor expressa este chamado ao compromisso de recompor o que está quebrado é encontrada no profeta Isaías: “Tu reconstruirás velhas ruínas, erguerás sobre os alicerces de outrora; e te chamarão reparador de brechas, restaurador de casas em ruínas” (Is 58,12).

Essa é a razão pela qual, para os cristãos, o compromisso com a restauração do mundo quebrado é um modo de atualizar a experiência da ressurreição e de viver a vocação. O(a) seguidor(a) escuta o chamado de Jesus para unir-se ao trabalho do Deus-Criador que, na Ressurreição, re-cria e recompõe de novo o tecido da humanidade quebrada.

É escandaloso o fato de muitos que não conseguem ver nos cristãos a paz, a alegria, a vida renovada; só encontram intolerância, moralismo, legalismo, ódio, críticas destrutivas... Cristãos que afirmam ser seguidores do Ressuscitado, mas envenenam seus ambientes e as redes sociais com o “mau cheiro dos túmulos”.

Texto bíblico: Jo 20,19-31

Na oração:

Consolados pelo Ressuscitado, somos chamados a exercer o ministério da consolação. Trata-se da consolação de Deus como dom para uma missão, neste mundo carregado de solidão, enfermidade e exclusão.

- Traga à oração as dimensões de sua vida que estão quebradas: corpo, memória, afetividade, relações...

- Deixe que o ouro do Espírito recomponha sua história quebrada para fazer transparecer uma nova obra de arte, uma vida ressuscitada.

quarta-feira, 5 de abril de 2023

Domingo de Páscoa: “...e a pedra tinha sido removida”

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj, como sugestão para rezar e meditar os acontecimentos da Semana Santa 2023: DOMINGO DE PÁSCOA - RESSURREIÇÃO DO SENHOR.

“A pedra da entrada do túmulo é removida” e amanhece um novo tempo, uma nova consciência planetária, uma nova espiritualidade, uma nova maneira de viver o mistério de Deus, uma concepção inspiradora do ser humano, uma nova mentalidade, uma nova maneira de ser Igreja...

Amanhece um novo mundo, heterogêneo, descentralizado; um novo humanismo, um novo movimento cultural. Brota um novo despertar a partir de uma maior lucidez e consciência dos problemas mundiais e uma escuta afinada diante do clamor unânime de que outro mundo é possível.

Em Jesus ocorre algo totalmente novo. Sua ressurreição traz uma nova maneira de viver que não cabe em nossos esquemas, que não se encaixa em nossos hábitos, sempre limitados e estreitos.

O “mistério pascal” é o salto para a novidade, para a beleza, para a transcendência. Imersos na história e na natureza, a Ressurreição nos faz descobrir a verdadeira extensão da Vida.

Não encontramos o Ressuscitado no sepulcro, mas na vida. Não encontramos o Ressuscitado enfaixado e paralisado pela morte, mas livre como a brisa da vida.

Não “vemos” a Ressurreição contemplando os restos da morte; só podemos contemplar o Ressuscitado no mistério da vida. E “Jesus ressuscitou de tanto viver”. Aquele que viveu tão intensamente não podia permanecer na morte. Por isso, só no compromisso com a vida é que podemos encontrá-Lo.

A Ressurreição nos revela: só existe a Vida; só nos resta viver intensamente.

Somos seres visceralmente “pascais”, somos potencialidade de vida.

Há um dado constante nos relatos das Aparições do Ressuscitado: Ele se faz presente no meio do fracasso, da dor, da tristeza, da ferida..., e, aos poucos, vai iluminando a situação dramática de cada pessoa ou do grupo, vai reconstruindo vidas despedaçadas, vai abrindo horizonte de sentido e confirmando a missão de prolongar o “movimento de vida” iniciado na Galileia.

Os relatos de suas Aparições nos revelam como Ele foi reconstruindo as pessoas, amigas e amigos, quebrados (as) pelo fracasso, pela tristeza, pela decepção... Foram ressuscitados por dentro, despertando a vida bloqueada e abrindo o horizonte da missão.

Na ressurreição, a vida emerge de forma misteriosa; ela se impõe, simplesmente. Tal realidade desperta fascinação, provoca admiração e veneração..., porque a vida é sempre sagrada. Diante dela ficamos extasiados, boquiabertos, escancarados os olhos e afiados os ouvidos. Ela nos atrai por sua força interna.

Portador de uma vida inesgotável, revelada na madrugada pascal, o ser humano vive para mergulhar em algo diferente, novo e melhor. A vida, desde o mais íntimo da pessoa humana, deseja ser despertada e iluminada em plenitude. Amar é romper a casca para que a vida se expanda na doação. A morte do falso EU é a condição para que a vida se liberte.

Vida plena prometida por Jesus: “Eu vim para que tenham vida e vida em abundância” (Jo 10,10).

“Viver como ressuscitado” implica esvaziar-se do “ego”, para deixar transparecer o que há de divino.

Quem se experimenta a si mesmo como “Vida” é já uma pessoa “ressuscitada” e isso faz a grande diferença, pois tem um impacto no seu modo de ser e de viver.

Marcadas pela ressurreição, as pessoas captam muitos detalhes que antes não haviam percebido, vivem intensamente, amam com mais paixão, prestam atenção a muitas coisas que antes passavam despercebidas. Tem um comportamento diferente para com os outros; há, nestas pessoas, mais ternura, são mais sensíveis à dor e à injustiça. Ao saborear o presente da vida, vivem como se fossem ressuscitadas. Crêem que, amando mais a vida, se afastarão mais da morte e resistirão às hostilidades do mundo presente.

E, no entanto, continuam vivendo na mesma casa, no mesmo trabalho, fazendo as mesmas coisas..., mas seu olhar audacioso desperta as consciências, sacode as velhas estruturas, derruba os muros da exclusão.

A Ressurreição não só “dá o que pensar”, mas sobretudo, “dá o que fazer”.

“Olhar o ofício de consolar que Cristo nosso Senhor exerce” (EE. 224). Santo Inácio de Loyola utiliza esta expressão quando apresenta, na 4a. Semana dos Exercícios Espirituais, a contemplação das aparições do Ressuscitado.

Consolar é o que define a ação do Ressuscitado, transformando a situação dos seus discípulos e discípulas: a tristeza se converte numa alegria contagiosa, o medo em valentia e audácia, a negação de Jesus em profissão de fé e martírio... Não se trata de um ato pontual senão de um “ofício” que definirá para sempre a atividade de seu Espírito no mundo.

Nas cenas evangélicas das aparições, o efeito da presença do Ressuscitado sobre os discípulos termina sempre em reconhecimento, em chamado e envio, em restauração de uma vocação e missão.

Jesus ressuscitado exerce sobre eles um específico “ofício de consolar”, cujo efeito é iluminar o caminho pelo qual, em seu nome e com Ele, eles hão de percorrer. O “ofício de consolar” é a marca do Ressuscitado, é força re-criadora e reconstrutora de vidas despedaçadas. Jesus “ressuscita” cada um dos seus amigos e amigas, ativando neles(as) o sentido da vida, reconstruindo os laços comunitários rompidos, e sobretudo, oferecendo solo firme a quem estava sem chão, sem direção...

Essa nova Vida é capacidade de amar como Jesus amou; é “passar pela vida fazendo o bem”. Somos seres ressuscitados quando vivemos os mesmos critérios e valores de Jesus, engajados em seu mesmo projeto.

A “vivência pascal” leva a querer algo mais. É “antecipação criadora”; ela tem “rosto novo”.

É o futuro que ainda pode ser convertido em “história nova”; é vida vivida com encantamento.

A “pedra pesada” da nossa impotência diante da dor, do fracasso e da morte, foi tirada pelo Mestre, que, diante de nós, chama-nos pelo “nome” e nos desafia a viver como ressuscitados.

Nossa vida é uma experiência a acolher, uma aventura a amar e um mistério a celebrar. Rompido o túmulo, removida a pedra, resta caminhar...

Deixemo-nos iluminar, levemos a Luz da Ressurreição nas nossas pobres e frágeis mãos, iluminando os recantos do nosso cotidiano.

Pois vida é um contínuo despedir-se e partir; é inútil permanecer junto ao túmulo. Porque o ausente “aqui” está presente na “Galileia”. E a Galileia é o lugar do compromisso com a vida, a justiça e a paz.

Se quisermos que a nossa vida cristã tenha a marca da Ressurreição, o convite é este: “sair do próprio túmulo” para viver “encontros mobilizadores de vida”. É preciso remover as pedras da indiferença que foram soterrando a vida dentro de nós e romper os muros que cercam nosso coração; é necessário compreender que somos chamados a um compromisso diferente e mais profundo: destravar portas e janelas, sair da reclusão de nossas casas para entrar na grande “casa” de Deus; romper com o tradicional para acolher a surpresa; deixar a “margem conhecida” para vislumbrar o “outro lado”; afastar a “pedra” da entrada do coração para poder viver os encontros com mais criatividade.

 

Textos bíblicos: Mt 28,1-10; Jo 20,1-9

Na oração:

Para viver a partir do ser mais profundo, é preciso dedicar uma atenção especial ao próprio coração e aprender a regozijar-nos da maravilhosa vida de Deus em cada um de nós. Basta um repouso e o estar-presente para fazer acalmar a agitação interior e aproximar-nos da fonte da vida.

- Recorde situações onde você foi o mediador da consolação de Deus;

- Quais são os sinais de ressurreição no seu interior e no cotidiano de sua vida?

Uma inspirada Páscoa a todos(as)!

terça-feira, 4 de abril de 2023

Sábado Santo: o Crucificado é depositado no ventre da Mãe-Terra

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj, como sugestão para rezar e meditar os acontecimentos da Semana Santa 2023: Sábado Santo.

“José de Arimatéia, tomando o corpo de Jesus, envolveu-o num lençol limpo e o colocou num túmulo novo, que mandara escavar na rocha. Em seguida, rolou uma grande pedra na entrada do túmulo e retirou-se” (Mt 27,59-60)

Normalmente o Sábado Santo não merece maior atenção de nossa parte; acabada a vivência litúrgica da Sexta-feira Santa já pensamos no Domingo da Ressurreição. No entanto, o Sábado Santo reivindica uma reflexão e um lugar na nossa vida espiritual.

O Sábado Santo é um dia de penumbra: entre a sombra da Sexta-feira e a luz do Domingo. É o dia da ambiguidade, do luto e da possível boa notícia, da espera e da esperança.

É o dia dedicado à solidão de Maria, o “dia não-litúrgico”. É o dia em que Jesus “desce” à morada dos mortos, na obscuridade mais absoluta. Ali não há visão de Deus; por isso, a Escritura a chama “inferno”.

É o dia do ocultamento de Deus, do silêncio de Deus Pai, da grande solidão de Jesus, do Filho perdido na obscuridade, na “terra de ninguém”. Jesus no túmulo simboliza o silêncio, a volta ao mais íntimo de si mesmo, abraçando a solidão sem se sentir solitário.

Sábado Santo é o dia da impotência, da injustiça, da desolação, da solidão; dia em que nos situamos diante da morte injusta imposta pelos “podres poderes”; dia precedido por traições, fugas, gritaria ameaçante, linchamento cruel e mentiroso; dia das esperanças rompidas, do medo que paralisa, do fechar de portas mentais e emocionais; dia incompreensível do silêncio, da “ausência” de Deus.

Sábado Santo é também um dia obscuro onde nos custa ver saídas ou futuro, um dia ameaçante carregado de dor e morte; dia das perguntas sem resposta: “por que isso? Como pode estar acontecendo isto? Onde está Deus? Portanto, dia de uma crise radical porque afeta e põe em questão nossas falsas esperanças, nossa onipotência e prepotência, nosso individualismo independente...

Podemos expressar três atitudes no Sábado Santo: a) Jerusalém volta à normalidade, nada mudou; b) permanecer no “por quê” isso aconteceu? c) despertar o “para quê” isso aconteceu?

É tempo de deixar-nos abalar pelas perguntas que não suportam respostas fáceis.

“O Sábado Santo é aquele intervalo único e irrepetível na história da humanidade e do universo em que Deus, em Jesus Cristo, compartilhou não só nosso morrer, mas também nosso permanecer na morte. Trata-se da solidariedade mais radical” (Bento XVI).

A virtude teologal da esperança nos convida a mergulhar no sentido profundo do Sábado Santo: foi o dia do silêncio de Deus Pai e o dia da descida de Jesus, morto e sepultado, “aos infernos da condição humana”. Foi o dia do Espírito Santo que não tinha “onde repousar” e fica como sem alento.

O inferno ao qual Jesus desceu é, em primeiro lugar, a morte eterna, a destruição sem saída, o frio cósmico... Mas é, em segundo lugar, a morte histórica que tende a dominar tudo, a morte que vem da injustiça, da indiferença, da prepotência e violência de muitos. Essa morte aparece mais claramente nos ambientes dominados pela cultura do ódio, da intolerância, do preconceito; faz-se visível nos traficantes da vida, na miséria e nos rostos famintos, vítimas de uma estrutura social e política injusta. É a morte dos fabricantes de armas, dos violadores e assassinos...; a morte nos cárceres, nas casas sem pão, nos caminhos sem saída, nos hospitais...

O “inferno” está em todos os lugares onde a vida é massacrada pelos prepotentes, onde a Terra é destruída pela ganância de alguns, onde a “lei do mercado” se alimenta do sangue dos mais pobres...

Sem a “descida” de Jesus aos infernos da história humana não existe redenção cristã, não see pode falar de autêntica páscoa. Se não nos comprometemos com os “condenados ao inferno” de nosso mundo, não poderemos entender o mistério do Sábado Santo.

Ao longo de toda sua vida, e de um modo especial através de sua morte na Cruz (solidário com os expulsos e condenados da humanidade), Jesus “desceu aos infernos” da pobreza, da exclusão, da violência... Neste “dia de silêncio” o Crucificado se faz solidário universal; nenhuma situação humana, por mais extrema que seja, ficou excluída dessa presença compassiva.

Indo mais além, a vivência do Sábado Santo também nos move a “descer” aos nossos “infernos interiores”, carregados de feridas, sentimentos negativos, traumas, fracassos... e experimentar a redenção no mais profundo de nosso ser.

“Nossa época se converteu sempre mais em um Sábado Santo: a obscuridade deste dia interpela a todos aqueles que se perguntam pelo sentido da vida, e de maneira especial nos interpela a nós que cremos. Também a nós nos afeta esta obscuridade” (Bento XVI).

O Sábado Santo parece um sábado vazio: cala a liturgia, cala a Igreja, calam os corações. O vazio provocado pela morte de Jesus nos deixa sem alento; sua ausência nos deixa sem palavras. Quando Aquele que é Palavra está ausente, que podem nos dizer as palavras?

Mas há um silêncio que está vivo; é o silêncio de quem nos criou no silêncio.

Um silêncio entendido como outra forma de presença de Deus.

Deus se revela não só na Palavra, também em seu Silêncio, em seu ocultamento.

Quando Deus cala e faz calar, fecha-se os lábios, entra-se no mistério, na mística. O silêncio do Senhor nos move a procurar, a escutar, a enxergar...

O silêncio de Deus deve ser respeitado, pois a Deus lhe dói a morte de seus fiéis (Sl 116,15): o Pai não estará fazendo luto por seu Filho e por suas criaturas?

* Não será que o silêncio do Sábado Santo supõe o direito de Deus se calar?

* Quê Deus não tem direito de guardar silêncio?

* Quem somos nós para exigir de Deus que nos esteja falando continuamente?

Além disso, através da passagem do Sábado Santo realiza-se uma transformação radical de nossa imagem de Deus: não como um Ser Onipotente insensível, que desconhece a dor, senão como Amor vulnerável e vulnerado, que assume como Seu o sofrimento da humanidade.

Para que haja uma nova revelação de Deus, deve haver “interrupção”, “silêncio”, da antiga revelação.

O Sábado Santo nos faz “morrer” a uma imagem de Deus para abrir-nos a outra nova dimensão e compreensão de seu Mistério. Atravessada a prova dessa “ausência”, seremos levados à Outra Margem, na qual nossa relação com Deus ficará purificada e aprofundada.

Textos bíblicos: Mc 15,42-47; Mt 27,57-61

Dia de silêncio:  Recordar os grandes silêncios da vida (perdas, fracassos, crises...) onde não há razões, não há uma lógica... mas no silêncio profundo, algo novo começa a germinar...

Sexta-feira da Semana Santa: As mulheres junto ao Crucificado

 Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj, como sugestão para rezar e meditar os acontecimentos da Semana Santa 2023: Sexta-feira Santa.

“Junto à Cruz de Jesus, estavam de pé sua mãe, a irmã de sua mãe, Maria de Cléofas e Maria Madalena” (Jo 19,25)

Na vida e missão de Jesus encontramos duas paixões: a primeira, é a paixão pela vida, pelo Reino, pelo compromisso em favor dos mais pobres e excluídos. Esta paixão é expressão de uma opção, assumida fielmente por Jesus até o fim.

A segunda paixão é a da cruz, imposta pelos poderes religiosos e civis. Ela não é fruto da opção de Jesus e nem faz parte da vontade do Pai. Ela é a visibilização da violência, do ódio, do fechamento frente à proposta de vida revelada por Jesus.

No grego, “cruz” é “staurós” e tem dois significados: de um lado, é patíbulo, instrumento de tortura imposta pelos romanos aos rebeldes do império; de outro, significa prontidão, preparado, mobilizado, firme, sólido, estar de pé, ser fiel até o fim...

Jesus não buscou a cruz do sofrimento, o patíbulo, a morte violenta... Ele buscou a cruz da fidelidade, da vida comprometida. Nesse sentido, a “staurós-cruz” é vida aberta, expansiva, oblativa, vida descentrada em favor dos outros. Ela não é um evento, mas um modo de viver, pois perpassa toda a vida de Jesus. “Cruz-staurós” é vivida a partir de uma causa: o Reino.

Assim entendemos a afirmação de Jesus: “Se alguém quer vir após mim, renuncie a si mesmo, tome sua ‘cruz-staurós’ cada dia e siga-me” (Lc 9,23). Significa esvaziamento do próprio “ego” para viver em sintonia com os outros, sobretudo com os mais sofredores.

Infelizmente, a história da espiritualidade cristã confundiu “cruz-patíbulo” com “cruz-fidelidade” e acabou gerando uma espiritualidade do sofrimento, da mortificação, da renúncia... como se isso fosse agradável a Deus. A Paixão e Morte de Jesus foi “desconectada” de sua vida comprometida em favor dos pobres e sofredores, dando a impressão que só a “paixão de Jesus” é salvífica. Toda a vida de Jesus é salvação porque é vida que destrava vidas e abre para elas um novo sentido.

Com isso, privilegiou-se a “cruz da dor” desligada da “cruz da vida”, do compromisso com o Reino. Tal concepção desembocou numa vivência cristã intimista, farisaica, alienada, descompromissada...

Sabemos que o(a) seguidor(a) de Jesus quando vive a fidelidade à “cruz-staurós”, por causa do Reino, pode encontrar a perseguição, oposição e morte, como o próprio Jesus (a cruz patíbulo). Mas Jesus integra a “cruz patíbulo” e revela sua máxima solidariedade com todos os crucificados da história. Por isso, esta Cruz assumida é também visibilização da salvação.

Nos relatos da Paixão de Jesus encontramos a presença das mulheres que vivem a “cruz-staurós”, ou seja, vivem a fidelidade ao seguimento de Jesus desde a Galileia. Enquanto os discípulos fogem, elas permanecem “de pé junto à Cruz”, numa atitude solidária e comprometida. A presença delas, certamente, foi um alívio para Jesus no momento trágico de sua vida: sentiu que não estava sozinho, pois suas amigas caminhavam com Ele, sofriam com Ele, morriam com Ele...

Os evangelistas nos falam das mulheres muitas vezes; o relato da crucificação revela suas presenças como testemunhas, mediadoras e verdadeiras discípulas. Os relatos de Mateus, Marcos e Lucas coincidem em indicar que as mulheres “contemplavam a cena de longe”. João, “que vê por dentro”, as coloca junto à cruz.

Estão ali, precedendo-nos no caminho, e não dizem nada. É seu corpo, são seus gestos, suas mãos, seus olhos, seu silêncio... que falam por elas. A linguagem delas é a linguagem da relação. Se elas podem permanecer nessas circunstâncias, é porque amaram muito. Elas nos falam de resistência e de fidelidade, de uma presença comovedora. Estão juntas, expostas a outros olhares, como comunidade de discípulas em torno a seu Mestre, que lhes ensina, agora sem palavras, uma sabedoria muito maior.

Em meio à impotência, não se afastam da dor experimentada ao ver sofrer a quem mais se ama, senão que se expõem ao olhar d’Aquele cujo rosto foi desfigurado.

* Quem são elas? De onde tiraram forças para permanecer ali quando outros se afastaram?

* Onde estas mulheres encontraram a força para segui-Lo por este caminho do Calvário? Que faziam elas ali,

   junto à cruz? Realizam alguma ação eficaz? Vão poder impedir a morte de um inocente?

Algumas destas mulheres são chamadas por seu nome próprio, ou são identificadas por vínculos de parentesco, ou ainda por ter gerado e acompanhado outras vidas. São as mesmas mulheres que haviam seguido e servido a Jesus na Galileia, e agora o farão também na Sua morte. Sobem com Ele ao lugar do abandono e da ingratidão, levantando uma ponte de proximidade e de solidariedade que cruza a totalidade da vida de Jesus. Nem um só instante afastaram seus olhares d’Ele. E o que para uns é escândalo e para outros é loucura, para estas mulheres é uma força de Deus impressionante.

Elas têm a coragem de permanecer ali, acolhendo o acontecimento em toda sua crueldade e profundidade; elas estão de pé, enquanto outros desistiram ou se afastaram assustados.

A partir deste momento elas vão aprendendo a conviver com a morte, com a d’Ele, com a sua e com a dos outros. Vão aprendendo, precisamente em meio à morte, a “celebrar a vida”, mesmo intuindo que uma lança também as atravessará.

Estas mulheres nos ensinam que “subir a Jerusalém” é assumir o conflito e a rejeição por defender os pobres e pequenos; é encontrar a perseguição devido ao compromisso em favor da vida; é saber que os grãos que caem em terra precisam morrer para germinar e multiplicar a vida.

E é, também, subir animando a outros.

Neste dia, a presença silenciosa das mulheres junto à Cruz nos ensina a com-padecer, a abrir o coração e a despertar a sensibilidade solidária diante do sofrimento e da dor humanas. Nós nos humanizamos quando nos deixamos configurar pela compaixão, afetar por ela, ser tocados por ela. 

E deixar que a compaixão comande nossos atos e decisões. Com-paixão, padecer com: esse é o segredo da vida, vivida em plenitude. Solidarizar-nos com o outro naquela situação onde ele ou ela não nos pode retribuir, pois está reduzido apenas a uma dor sem limites, a um sofrimento sem explicações.

Uma vida pensada sem “mortes” perde-se, no final, na total irresponsabilidade. E viver significa esvaziar-nos do ego para deixar transparecer o que há de divino em nosso interior. O grão de trigo que não morre, apodrece, e não multiplica as mil possibilidades latentes em seu interior.

É gratificante fazer memória de tantos homens e mulheres que foram presença compassiva e, à maneira das mulheres junto à Cruz, consumiram suas vidas em favor da vida; histórias silenciosas de tantas pessoas que com sua presença ajudaram os outros a viver; pessoas que revelaram a paixão por viver em pequenas paciências cotidianas, que entregaram suas vidas sem brilho algum, sem vozes que as proclamassem; foram como o fermento silencioso que se dissolve na massa para fazê-la crescer.

Isso foram as mulheres para Jesus: companheiras, solidárias, compreensivas no sofrimento. E serão elas as primeiras em experimentar e anunciar a “Vida vestida de presença”, na manhã da Ressurreição.

Texto bíblico: Jo 18,1-19,42

Na oração:

Somos grãos de trigo na grande Seara do mundo; e o grão de trigo eterniza-se na sua entrega-doação para que outros matem suas fomes e vivam com sentido.

Aprendamos a morrer para nossos interesses mesquinhos; só assim nossa vida terá a dimensão da eternidade.

- “Se a semente do trigo sou eu, a que devo morrer, para que a vida interior possa se expandir?”