Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, SJ, como sugestão para rezar o Evangelho da Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo (Corpus Christi).
“Dai-lhes vós mesmos de comer” (Lc 9,13)
Celebramos o “Corpus Christi”, uma das festas mais ricas por seu conteúdo e
simbolismo, mas que nos faz pensar também no “Corpo de Cristo” no meio de tantos outros corpos.
Aceitamos, pela fé, a presença
real de Cristo na Eucaristia; isso implica comunhão bem maior com sua vida, seu
testemunho de amor, de partilha, solidariedade, dedicação pela transformação de
tudo aquilo que não dignifica a vida ou não dignifica os “corpos”. Comungamos o
“Corpo de Cristo” para podermos viver o seguimento com mais radicalidade.
Infelizmente, o que temos observado é que grande
parte dos cristãos não seguem uma Pessoa (Jesus Cristo), mas se limitam a cumprir
alguns ritos, leis, práticas devocionais e piedosas... que revelam uma espiritualidade
intimista, alienante e distante do compromisso com os outros.
Participamos, com muita fé, dedicação e respeito,
das celebrações do “Corpo de Cristo”, mas
pode ser que, às vezes, façamos uma profunda cisão ou ruptura entre o que
celebramos e a realidade que nos cerca, ou seja, o compromisso com os “corpos” explorados, manipulados, usados, escravizados...
Pode ser que, às vezes, tenhamos um profundo amor e
respeito ao “Corpo de Cristo vivo e presente na Eucaristia”, e não O
vejamos nos “corpos” que estão aí,
aqui, ali, lá, por todos os lados...
Certamente, nunca passou pela cabeça de Jesus pedir que os
seus(suas) seguidores(as) se pusessem de joelhos diante d’Ele. Ele, sim, se
ajoelhou diante de seus discípulos para lhes lavar os pés; e, ao terminar essa
tarefa de servos, lhes disse: “Se
eu, o Mestre e Senhor, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns aos
outros”. Essa lição, ousada e provocativa,
parece que nunca nos interessou. É mais cômodo transformá-Lo em objeto de
adoração do que seguí-Lo no serviço, na disponibilidade e na entrega aos
demais.
Todas as demonstrações de respeito
e veneração diante do Corpo de Cristo tem seu sentido e significado. Mas,
ajoelhar-nos diante do Santíssimo Sacramento e continuar menosprezando ou
ignorando o próximo, é uma ofensa. Se, em nossa vida, não deixamos transparecer
a atitude de Jesus, todos os gestos de adoração continuarão sendo “magia
barata” para tranquilizar nossas consciências. É preciso descobrir a presença
de Jesus em todos os corpos desfigurados, famintos, violentados, desprezados...,
e que suplicam por uma presença servidora e solidária. Diante destes corpos
desumanizados, morada do Ressuscitado, é que devemos nos ajoelhar para
facilitar a ajuda e o serviço. Ninguém pode servir a partir de uma posição
elevada; é preciso “descer”, esvaziar-nos de nosso ego prepotente, para
prolongar as mãos e o coração do Compassivo.
“Corpus
Christi”
nos fala, portanto, da “Encarnação continuada”, ou seja, Deus não só se
“encarna”, Ele é Encarnação. A Encarnação não é um ato pontual, ou um
evento isolado da história, mas uma atitude eterna de Deus. Toda
a Criação e toda a Humanidade foram assumidas por este “mistério” fundante de
nossa fé. Assim, toda a história humana se faz História da Salvação. E o “assim novamente
encarnado” (S.
Inácio) se visibiliza em todos os “corpos” humanos. “Todas as vezes
que fizestes isso a um destes mais pequeninos, que são meus irmãos, foi a mim
que o fizestes!”
(Mt 25,40)
Ao comungar
o “Corpo de Jesus”, nosso corpo e todo nosso ser tocam algo do mistério da
Encarnação. A comunhão é – ou deveria ser – uma sacudida pessoal e comunitária
que nos impulsiona a retomar o projeto vital de Jesus, do qual nos afastamos
continuamente.
Na Eucaristia se concentra toda a
mensagem de Jesus, que é o Amor. O
Amor que é Deus manifestado no dom de si mesmo e que Jesus deixou transparecer
durante sua vida. Ao dizer, “isto é o meu
corpo”, Jesus está afirmando: Isto
sou eu: Dom total, Amor total, sem limites.
Ao comer o pão e beber o vinho
consagrados, queremos afirmar: fazemos nossa a Sua vida e nos comprometemos a nos
identificar com o que foi e fez Jesus. O pão que nos dá a Vida não é apenas o
pão que comemos, mas o pão no qual nos transformamos, quando fazemos de nossa
vida uma doação contínua. Somos cristãos, não só quando comemos o pão, mas
quando nos deixamos consumir, como Ele fez.
Discípulos(as)
de Jesus somos quando aprendemos a partir o pão. Reconhecemos os
cristãos hoje quando partem o pão e não o retém para si. O pão armazenado, como
o maná no deserto, se corrompe, apodrece.
Compartilhar
significa não “monopolizar”, não permitir que haja necessitados entre nós.
O pão
partido é a vida compartilhada: bens, dons, tempo, qualidades...
O cristão,
além disso, compartilha seus ideais, seu entusiasmo, seu ânimo, sua fé, sua
esperança.
Também hoje Jesus precisa de nossas
mãos para multiplicar os grãos; precisa de nossas mãos para triturar esses
grãos, amassar a farinha e fazer o pão. E precisa de nosso coração para que o
pão seja repartido.
O pão sem coração é pão
“monopolizado”. Pão indigesto, que engorda o egoísmo.
O pão sem coração gera divisões e
conflitos. Quantas
guerras fraticidas provoca o pão sem coração!
Deus precisa de nosso coração para
que o pão leve o sinal da fraternidade, seja vitamina de solidariedade,
alimento de comunhão, energia de vida.
Por fim, é preciso enfatizar que, celebrar e venerar o “Corpo
de Cristo” nos remete ao nosso corpo e ao corpo dos outros. Nossos corpos
estão integrados e dignificados no Grande Corpo Cósmico d’Aquele que se
esvaziou dos atributos divinos para se fazer “Corpo” e “divinizar” nossos
corpos.
Integrados ao “Corpo do Ressuscitado” somos chamados a
superar toda suspeita, medo, julgamentos moralistas e visões dualistas dos
nossos corpos. Afinal, não “temos” corpo, “somos corpo”;
pensamos, amamos, sentimos e entramos em relação com o Transcendente através de
nosso corpo.
Enchemo-nos
de assombro diante do mistério que é cada corpo. Nossos esquemas e dualismos de
matéria-espírito, espaço-tempo, passado-futuro, longe-perto, parecem diluir-se.
Todo corpo está “animado” e toda “alma” está sempre “corporificada”.
No encontro com o “Corpo de Cristo”
passamos a ter uma outra visão de nosso corpo; isso implica superar a
parcialização, a polarização e a dicotomia e buscar a harmonia e a integração.
Somos nosso corpo
animado, com vida e com sentido. Construímos nossa vida com nosso corpo e graças a ele. Com, em e pelo corpo, vivemos nossa
história, caminhamos pela vida na contínua aventura de crescimento e de maturação, de amor e de conhecimento, de encontro
com os outros e conosco mesmo, com nossos desejos e medos, nossas alegrias e
dores, nossas esperanças e desesperos, nossas vitórias e desilusões ... Tudo
isso está inscrito em nossa “carne”.
Nosso ser profundo, nosso ser
essencial se manifesta, se abre para fora através de nosso corpo.
O corpo
deixa transparecer o que há de mais humano e mais divino em seu interior.
Deixemos “transparecer” o “Corpo de Cristo” em nossos corpos!
Texto bíblico: Lc 9,11-17
Na
oração: Amiga,
amigo, teu corpo que, que és tu mesmo, é habitado pelo Infinito, o Eterno. Tu
também, como Jesus, em comunhão com todo o universo em movimento e evolução, és
corpo de Deus. O Infinito se manifesta e emerge de ti. Acolhe teu mistério,
deixa-te acolher pelo Infinito em ti, deixa que suba, desde o mais profundo de
ti, a voz que ora: “meu corpo canta a Ti, Senhor!”
- Deixa Deus ser Deus
em ti. Sê corpo, morada de Deus. Celebra, cuida, reza: sê corpo de Deus, epifania
carnal da Ternura infinita.
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