Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 12º. Domingo do Tempo Comum (Ano C).
“...quem perder a sua vida por causa de mim, esse a salvará” (Lc 9,24)
Depois do percurso quaresmal
e pascal, a liturgia nos situa novamente no chamado “Tempo Comum”;
trata-se de um percurso contemplativo que nos convoca a fazer caminho com Jesus,
realizando sua missão e preparando a comunidade dos seus seguidores. Tendo os
olhos fixos n’Ele, viveremos uma longa aprendizagem, deixando que o Mestre da
Galileia faça emergir o que é mais nobre e humano de nosso interior. Tempo de
seguimento e identificação com Aquele que foi “humano” na sua radicalidade.
No evangelho deste domingo, Jesus
deixa claro, para todos nós, o preço do seguimento. Responder à pergunta – “quem dizeis que eu sou? – implica identificação com seu modo de ser e viver. Sua
proposta de vida, sua liberdade diante das leis e tradições, seu compromisso
com os últimos, sua relação com o Pai... vão provocar conflitos com aqueles que
estão “petrificados” em seu modo de viver. E aqueles(as) que se identificam com
Ele também vão encontrar oposições, incompreensão e perseguições.
Por isso, ao convidar seus
discípulos e discipulas a segui-lo, foi taxativo: “Se alguém me quer seguir, renuncie a si
mesmo, tome a sua cruz cada dia, e siga-me”
Que significa “renunciar a si mesmo” - “tomar a cruz de cada dia”?
Será que ele veio “complicar” nossa vida com mais peso, mortificação,
sofrimento...? Esta afirmação de Jesus parece estar em contradição com outra
afirmação encontrada em Mateus: “Vinde a mim,
todos vós que estais cansados e carregados de fardos, e eu vos darei descanso”.
“Pois o meu jugo é suave e o meu fardo é leve” (Mt 11,28-30).
Na vida e missão de Jesus
encontramos duas grandes paixões: a primeira, é a paixão pela vida, pelo
Reino, pelo compromisso em favor dos mais pobres e excluídos. Em sintonia com o
Pai, esta paixão é expressão de uma opção, assumida fielmente por Jesus até o
fim.
A segunda paixão é a da “cruz”,
imposta pelos poderes religiosos e civis. É a cruz patíbulo, instrumento de
tortura, imposta pelos romanos àqueles que ousavam contrariar seu domínio. Ela
não é fruto da opção de Jesus e nem do plano do Pai. É a visibilização da
violência, do ódio, do fechamento frente à proposta de vida revelada por Jesus.
No grego,
“cruz” é “staurós” e significa: prontidão, estar preparado,
mobilizado, firme, sólido, estar de pé, ser fiel até o fim...
Jesus não buscou a
cruz do sofrimento, o patíbulo, a morte violenta... Ele buscou o “staurós”, ou
seja, a cruz da fidelidade, da vida comprometida. Nesse sentido, a
“staurós-cruz” é vida aberta, expansiva, oblativa, vida descentrada em favor
dos outros. Ela não é um evento, mas um modo de viver, pois perpassa toda a
vida de Jesus. “Cruz-staurós” é vivida a partir de uma causa: o Reino.
Assim entendemos a
afirmação de Jesus no evangelho deste domingo: “Se alguém quer vir após mim, renuncie a si mesmo, tome sua ‘cruz-staurós’ cada dia e siga-me”
(Lc 9,23). Significa esvaziamento do próprio “ego” para viver em sintonia com
os outros, sobretudo com os mais sofredores.
Infelizmente, a história da
espiritualidade confundiu “cruz-patíbulo” com “cruz-staurós”
e acabou gerando uma espiritualidade do sofrimento, da mortificação, da penitência...
como se isso fosse agradável a Deus.
Privilegiou-se a “cruz da dor”
desligada da “cruz da vida”, do compromisso com o Reino. Tudo isso desembocou
numa vivência cristã intimista, farisaica, descompromissada...
Sabemos que o(a) seguidor(a) de
Jesus, quando vive a fidelidade à “cruz-staurós”, por causa do Reino, pode
encontrar a perseguição, oposição e morte, como o próprio Jesus. Mas Jesus
assumiu também a “cruz-patíbulo” e revelou sua máxima solidariedade com todos
os crucificados da história. Por isso, esta “cruz” assumida é também
visibilização da salvação.
Nesse sentido, a cruz de Jesus e
dos seus seguidores não é um “peso morto”; ela tem sentido porque é
consequência de uma opção radical em favor do Reino e da vida. Assim, a cruz
não significou passividade e resignação; ela concentrou, radicalizou e
condensou o significado de uma vida vivida por Jesus na fidelidade ao
Pai, que quer que todos vivam intensamente.
“Jesus morreu
de vida”: de bondade e de esperança lúcida, de solidariedade
alegre, de compaixão ousada, de liberdade arriscada, de proximidade curadora...
Tanta radicalidade nos
surpreende. De fato, hoje, em nossa sociedade, escutamos expressões totalmente
contrárias: “cuide-se”, “seja você mesmo”, “aproveite a vida”,
“seja o primeiro” ...
São expressões de uma
vida centrada no próprio “ego”, ou, “ego-latria”. Tal idolatria reside
no próprio interior. O coração humano é uma fábrica de ídolos; há ídolos
internos que emergem e que desumanizam, pois rompem todo vínculo e quebram toda
relação.
Jesus, em seu convite
ao seguimento, nos pediu a “renúncia” de um ídolo especialmente
perigoso e sutil: nosso “ego”. Exigiu-nos esquecer dele, negá-lo, não lhe
prestar culto, não nos colocar a seu serviço...
Nosso ídolo interior,
nosso “ego”, exige culto, sacrifícios, seguidores que lhe sirvam. Por isso, nos
agrada que nos louvem, que nos coloquem num pedestal, que nos incensem.
Mas, quando alguém entra
no fluxo desta falsa “liturgia”, brotam, imediatamente o veneno do desprezo, da
do ódio, da violência, do autoritarismo...
Quando Jesus propõe
“renunciar a si mesmo”, na realidade está dizendo: “renuncie a si mesmo como ídolo!”. Ele desmascara essa tendência diabólica que nos
habita. Quantas vezes nos surpreendemos sendo nós mesmos nossa principal
preocupação! Frequentemente nos tornamos o centro, fazendo que tudo gire em
torno ao nosso próprio “ego”. Habituamos a nos aproximar das pessoas que nos
agradam, que nos bajulam, que compartilham nossos apegos desordenados, que nos
dão a razão em tudo, que engordam nosso “ego”.
A partir de nossa ego-latria, vamos
criando e alimentando muitos outros ídolos externos, que minam as nossas
forças, matam nossa criatividade e esvaziam todo espírito solidário: a busca do
poder, da riqueza, da fama, da conquista... Tudo isso nos faz entrar no círculo
de morte e destruição de nós mesmos.
A destruição dos ídolos começa por
nós mesmos, esvaziando o ídolo de nosso ego. “Renunciar a si mesmo” não é
renunciar o que é mais belo que temos recebido: uma personalidade com
características únicas, uma liberdade admirável com capacidade criativa, um
espírito compassivo e solidário, uma capacidade de relação gratuita... O que
Jesus pretende é tirar nosso “ego” de seu recinto individualista e nos situar
no amplo espaço do Reino de Deus. Podemos expressar isso numa linguagem tomada
da ciência ecológica: Jesus nos chama a abandonar nosso “ego-sistema”
para transladar-nos ao “eco-sistema” de seu Reino.
A identificação com
Jesus no seu seguimento requer assumir um processo de “morte” e levar a
“cruz-staurós” até o fim. É preciso que morra em nós aquilo que não tem futuro,
que não é vida, que não é felicidade... O “ego” é pura ilusão, é só uma ficção ou, como
dizia Einstein, “uma ilusão ótica da consciência”. Quando
ele determina nossa vida, caímos no vazio, pois ele não tem em que se
sustentar.
A renúncia à “egolatria” não é uma desgraça ou destruição de si mesmo; pelo contrário, é a oportunidade privilegiada para deixar emergir do nosso “eu original” os recursos mais nobres, as potencialidades de vida que não tiveram chance de se expressar, as beatitudes mais profundas que dão sentido e sabor ao nosso viver. Não se trata de massacrar uma dimensão de nosso ser para salvar outra; trata-se de descobrir uma falha na percepção de nós mesmos; ou seja, com frequência cremos ser aquilo que não somos e vivemos enganados. Trata-se de nos libertar de tudo aquilo que nos ata ao caduco e nos impede elevar-nos à plenitude que nosso verdadeiro ser exige. Este é o caminho da vida que se faz doação, presença, compromisso... vida na fidelidade até o fim.
Texto bíblico: Lc 9,18-24
Na
oração:
Entendemos
por medíocre aquele(a) que renunciou a viver em profundidade; perdeu o
elán vital e por isso a capacidade de entusiasmar-se pela vida, de lançar-se,
de expandir-se. O realista medíocre fica satisfeito com sua vida, mas “cheira a
morte”.
A
“mediocridade” não tem lugar no caminho do Reino; o seguimento de Jesus não é
para “medíocres”, mas para os(as) ousados(as), aqueles(as) que arriscam, que
alimentam a capacidade de criar e inovar.
-
Sua vida: determinada pela mediocridade do “ego” ou pela maneira inspirada de
Jesus viver?
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