terça-feira, 28 de dezembro de 2021

Epifania: “na tua Luz, seremos luzes”

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho da celebração da Epifania do Senhor.

“E a estrela, que tinham visto no Oriente, ia adiante deles, até que parou sobre o lugar onde estava o menino”  (Mt 9,2)

 

A chave da celebração da Epifania é a universalidade da mensagem. No Natal nos encontramos com o “Deus encarnado”; hoje celebramos o “Deus manifestado”. E a manifestação de Deus é universal, enquanto ao tempo e enquanto ao espaço, ou seja, Ele está continuamente se manifestando e se manifesta em toda a Criação e em toda a humanidade. Tudo é transparência de Deus, ou melhor, Deus se deixa “transparecer” em tudo e em todos; Ele sempre se manifesta a todos, embora só consegue descobri-Lo aquele que O busca, todo aquele que tem um olhar contemplativo e atento.

O relato dos Magos vai nesta direção. Eles descobriram a estrela porque se dedicavam a investigar o firmamento; foram capazes de levantar os olhos da terra. Eles, apesar de estarem distantes, viram a estrela; a imensa maioria daqueles que estavam ao redor do recém-nascido nem se deram conta, pois estavam preocupados em encontrar Deus nos “lugares” manipulados pelas autoridades religiosas. Outros estavam empenhados em descobri-lo no extraordinário, mas a verdade é que Deus se manifesta exatamente nos acontecimentos mais simples e cotidianos. É preciso ter uma fina sensibilidade para descobrir essa presença.

A Epifania, como manifestação da presença de Deus no mundo, ultrapassa toda fronteira geográfica, religiosa, racial..., preenchendo de luz, de verdade e de vida tudo quanto existe em todo tempo e espaço.

 

Os Magos não eram judeus, mas estrangeiros; viram brilhar a luz na noite da vida. São eles que buscam e encontram a Luz, pois Deus não é patrimônio exclusivo de um lugar ou de uma nação. Deus se dá a conhecer a todos, seja de que nação for.

Mas, Herodes e a instituição do Templo não sabiam onde tinha de nascer a luz, o Messias. “Os sábios e entendidos” conhecem tudo, mas não creem em nada; conhecem a verdade, mas estão longe dela, pois permanecem fechados em suas doutrinas e ritos; não dão um passo sequer para “seguir a estrela” em busca da verdade e da esperança. Eles já sabem tudo sobre o Messias, mas, instalados em seus privilégios religiosos e sociais, não movem um dedo sequer para comprovar. Estão muito satisfeitos com o que tem. Permanecem com seu conhecimento e seus livros.

A mensagem do relato da Epifania nos faz compreender que o amor à Verdade e a busca da Luz nos fazem nômades, ao contrário dos instalados e satisfeitos. Quantas vezes, nós cristãos, temos conformado em indicar a direção aos outros sem sair de nossos lugares atrofiados para acompanhá-los.

Esta diferente atitude dos “magos” nos faz pensar.

O fato de que em um determinado momento, os magos perguntem a Herodes e este, por sua vez, pergunte aos que conhecem as Escrituras é muito interessante. As Escrituras podem servir de pauta, podem nos indicar o caminho a seguir quando atravessamos lugares ou tempos sem estrela. Mas o valor da Escritura depende da atitude daquele que a lê. É preciso aproximar-se da Bíblia sem pré-juizos; não para buscar argumentos a favor daquilo que já acreditamos, mas abertos ao que ela vai nos dizer e indicar, embora seja diferente daquilo que esperamos.

Diante de milhões de estrelas que brilham no firmamento, os magos descobrem a de Jesus; diante de milhares de estrelas que chamam a atenção em nosso mundo, precisamos descobrir a nossa.

 

A luz da estrela põe os Magos em marcha. Preciosa mediação que mobiliza sua busca e direciona suas vidas para o encontro. Os sinais são mínimos, cotidianos, demasiado simples.

Mateus descreve a reação deles afirmando que “ao ver a estrela, encheram-se de imensa alegria”.

Buscavam o Rei dos judeus e se encontraram com um Menino em um presépio. Buscavam a Deus e viram um Menino. Buscavam um Palácio real e encontraram com uma gruta de pastores. Ficaram assustados e assombrados com a descoberta. Conta o relato de Mateus que aqueles sábios do Oriente chegaram até onde estava o Menino, e caíram de joelhos (prostraram-se) diante dele. Não diz que se ajoelharam, mas que caíram, literalmente. É algo que na vida dos seres humanos acontece poucas vezes.

Diante do Mistério não se discute; diante do mistério prostra-se. O Mistério não é para ser compreendido, mas adorado. Diante do mistério de Deus é preciso que a razão se ponha de joelhos; frente ao mistério de Deus só resta a admiração, o espanto. Quando queremos conhecer “algo” de Deus, são melhores os joelhos que a razão. Quando queremos “entrar” no mistério de Deus, melhor é nos determos à porta para adorá-Lo. Quando queremos encontrar a Deus, é melhor caminharmos de joelhos.

Os representantes religiosos e sociais de Israel não foram a Belém para adorar o Menino Deus. Eles “conheciam”, de algum modo, o mistério, sabiam que o Messias devia nascer em Belém, mas não quiseram ir ao seu encontro para lhe oferecerem o tesouro de suas vidas, pois estavam petrificados em suas sacralidades doutrinárias e legais. A subida messiânica a Jerusalém ficou truncada desde o nascimento de Jesus, pois esta cidade nunca o acolheu.

Os representantes religiosos da época (os sacerdotes) e a cultura do momento (os letrados) se limitaram a cumprir seu papel. Deram toda informação necessária a Herodes para chegar a Jesus, mas, acomodados e instalados em seu saber e posição social, não sentiram o mínimo interesse em se deslocar até Ele; talvez não sentissem necessidade de libertador algum.

 

Nossa história de salvação está repleta de pessoas que, à luz da normalidade da vida, são diferentes. São homens e mulheres que acolhem, em sonhos ou despertos, as delicadas luzes que só o Deus de amor pode presentear com sua delicadeza. Com sua luz tênue e constante em seu interior, apontam sempre para Aquele que é Fonte de toda luz.

Na experiência da vida cristã buscamos ser como os magos: desejosos de encontrar a Vontade de Deus, atentos para reconhecer “estrelas” na noite e ágeis para segui-las, capazes de pedir ajuda quando nos perdemos e apaixonados por descobrir um caminho que, no fundo, é o caminho do mesmo Deus.

Como os Magos, também nós nos dirigimos primeiramente aos palácios de nossa sociedade do bem-estar e aos “Herodes” contemporâneos, até que nos damos conta de que ali não encontramos o que estamos buscando, que ali se anula e se anestesia a vida, essa vida de Deus que quer crescer em nós.

É preciso, de tempos em tempos, viver a atitude da “prostração” como gesto de humildade, descendo do pódio existencial quando acreditamos ser os melhores, os mais sábios, os mais perfeitos...

Epifania é esvaziamento de nosso “ego” para que a Luz de Belém seja a nossa referência constante.

Texto bíblico: Mt 2,1-12

Na oração: É próprio, neste momento festivo, fazer esta pergunta:  quem ou o que foi estrela, revelação em minha vida, neste ano que findou? A quê estrela sigo? Para onde ela me conduz?

- Ou, pelo contrário, perdi a estrela de minha vida e são sei para onde vou?

- Sou estrela-guia para os outros?

ANO NOVO: gratidão mobilizadora

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho da Solenidade da Santa Mãe de Deus, em que se celebra também a chegada do Ano Novo e o Dia Mundial da Paz.

“Os pastores voltaram, glorificando e louvando a Deus por tudo o que tinham visto e ouvido” (Lc 2,20)

 

Nem todos os tempos são iguais. Uma coisa é o tempo do calendário, o contínuo movimento dos momentos, todos idênticos; e outra coisa é a vivência humana do tempo: há momentos em que o tempo se faz longo e outros em que se faz curto. Mais ainda, o tempo pode ser vivido como uma experiência opressiva e limitadora ou como uma experiência de plenitude. Quando vivemos o tempo como uma oportunidade para acolher o novo, para abrir-nos às surpresas da vida e para fazer-nos presentes gratuitamente, realizamos uma experiência positiva do tempo.

O tempo se torna “kairós”, ou seja, o momento oportuno para construir algo vital que possa transformar nossas vidas, o tempo propício onde todas as possibilidades estão à nossa disposição.

Integrar-nos mais pacificamente no fluir do tempo, vivê-lo amavelmente sem stress, reconciliar-nos com o tempo, desfrutá-lo com prazer e alegria de modo distendido e com paixão, ter a tranquilidade suficiente para realizar com gosto, criatividade, paz e concentração as atividades que nos cabem assumir... Eis a questão! Buscar uma nova maneira de viver o tempo, de senti-lo, de captar sua força e beleza, seu sentido e sua plenitude...de perceber o pulsar profundo de nosso modo de estar na vida... eis o desafio!

Nos momentos de alegria, de prazer, de descanso, de festa... o tempo torna-se um aliado que constrói nosso ser, uma energia que nos alimenta, que nos capacita para o melhor e o mais alto.

A espiritualidade bíblica, marcada pelo “tempo” de Deus, pode nos ajudar a fazer essa “passagem” do “tempo insensato” (sem sentido) ao “tempo sensato” (com sentido). Tal espiritualidade é uma boa notícia com respeito ao modo de “estar no tempo” e nos introduz na dinâmica da vida que se abre às surpresas do “Senhor dos tempos”. Nessa perspectiva, não vivemos o tempo como se este fosse algo meramente plano e indistinto. Cada ano, cada dia e cada momento tem seu matiz, sua cor e sua novidade.

Somos seres de “travessia”, no tempo e no espaço. Cada ano de vida que passa, outro surge à nossa frente, ativando em nós dinamismos mais nobres, desejos mais oblativos, energias mobilizadoras…

Às vezes fica a sensação de que não conseguimos agradecer o suficiente diante de tudo o que foi vivido. Reconhecemos que uma lista interminável de situações e vivências não foram bem integradas e que é preciso reservar algum momento para trazê-las à memória, relê-las, re-significá-las, saboreá-las e dar graças.

Assim entendida, poderíamos dizer que a existência inteira de uma pessoa sábia é vivida entre duas palavras: “obrigado” e “sim”. Diante de tudo o que foi, “obrigado”; diante de tudo o que virá, “sim”.

Entre o “obrigado” e o “sim” transcorre a vida sábia. Isso traz uma profunda gratidão, pois só ela integra os tempos – passado-presente-futuro – no “Hoje” eterno de Deus. Só a gratidão é capaz de despertar os dinamismos e recursos internos para viver o “novo tempo” com mais inspiração e criatividade.

Nesse sentido, a memória agradecida é o húmus natural de onde brota a gratidão.

Ao fazer memória dos dons e bens recebidos do ano que passou, brota naturalmente do nosso interior, o desejo de dar uma resposta generosa e radical ao Deus que é Fonte de tudo.

É a gratidão que ativa em nós o ânimo e a generosidade diante do futuro de nossa vida.

“A gratidão é a memória do coração” (Paul H. Dunn))

Aquele que é marcado pela experiência de que é tudo é dom e dado pelo Deus providente, adquire a fina percepção de que tudo é graça, tudo é “de graça”, somos “agraciados”, “cheios de graça”...

É Ele mesmo que, ao criar-nos gratuitamente no amor, nos ensina a “sermos gratuitos e gratos”.

Só Ele é capaz de dar o verdadeiro sentido e força à expressão “de graça”; só a generosidade gratuita do coração de Deus é capaz de reconfigurar mentes e encorajar atitudes oblativas em nós.

Se a memória da mente é a lembrança, a do coração encontra expressão na gratidão. Afinal, ser grato é uma forma de memória: memória agradecida, redentora. Normalmente, vivemos inúmeras bênçãos diárias que esquecemos. Quanto maior a memória do coração mais ele poderá nos mostrar o quanto somos gratos.

Na espiritualidade cristã, a gratidão nasce com naturalidade e espontaneidade nos corações humildes, nas pessoas conscientes de que aquilo que recebem não é por mérito ou retribuição. Tudo é gratuidade.

O agradecimento é a experiência humana que mais mobiliza a generosidade da pessoa; a gratidão é a mais agradável das virtudes: quê virtude mais leve, alegre, mais luminosa, mais humilde, mais feliz!!! É por isso que ela se aproxima da caridade, que seria como a gratidão sem causa, uma gratidão incondicional.

A experiência nos diz que a gratidão, juntamente com o amor, é um dos sentimentos mais terapêuticos, capaz de sustentar nosso “elán vital”.  Por um lado, nos afasta do funcionamento da queixa, da lamentação e do pessimismo diante de tudo o que aconteceu; por outro, ela constitui o melhor antídoto frente ao desalento ou o desânimo.

A gratidão nos centra, nos re-situa, nos faz porosos, nos abre a dimensões infinitas, arrancando-nos de mecanismos egocentrados, que nos fazem girar sobre nós mesmos de um modo doentio.

Através de uma simples observação poderemos tomar consciência que a gratidão verdadeira não depende tanto daquilo que nos acontece, quanto do modo como recebemos tudo o que nos acontece. Se agradecemos só quando ocorre algo que consideramos “agradável”, é sinal que ainda não saímos de nosso egocentrismo.

Como o amor, como a alegria...., como tantos outros sentimentos nobres, a gratidão é uma arte. E, enquanto tal, precisa ser exercitada no ritmo cotidiano, onde, conscientemente, damos graças por tudo.

Na medida em que exercitamos a gratidão, ela vai nos transformando interiormente e enriquecendo nosso modo de viver a relação com os outros, com as criaturas e com o Criador Em certo sentido, poderíamos dizer que ela expande o nosso coração, favorece a alegria de viver, reforça os laços e facilita poderosamente a convivência. Por isso, quando sabemos olhar em profundidade as pessoas e a realidade, a gratidão aflora sem obstáculos. Pelo contrário, quando permanecemos presos às nossas expectativas, a frustração inevitável trará consigo a resistência, o sofrimento, a queixa, o vitimismo...

Sem a gratidão corremos o risco de nos “secar por dentro” , perdendo a simplicidade, a espontaneidade, a criatividade, a ternura... Só a gratidão alimenta a consciência de que vivemos um tempo único, um tempo decisivo para um contínuo renascimento em direção a um horizonte de sentido.

Com isso, reconhecemos e crescemos na compreensão de que, a partir da partir da dimensão espiritual, a gratidão não é simplesmente uma atitude ou qualidade, algo que podemos viver com maior ou menor intensidade; mais do que isso, a gratidão é outro nome de nossa identidade profunda: somos Gratidão.

Ao vivê-la conscientemente, experimentamos unificação e plenitude: estamos vivendo o que somos.


Texto bíblico: Lc 2,16-21

Na oração:

É importante alimentar a gratidão, mantê-la viva e ativa. Não é natural que percamos a consciência do muito que temos recebido e continuamos recebendo, como possibilidades de vida e de sentido, como dons e capacidades, como criatividade e sonhos...

Tudo se pacifica quando a gratuidade marca seu ser por inteiro. A vida nova vem da Vida recebida e partilhada.

- Neste início do novo ano, assuma a atitude de pensar e falar agradecidamente, com gestos gratuitos.

- Diante d’Aquele de quem tudo procede, faça memória de todos os dons recebidos, deixando brotar do seu coração uma atitude de contínua ação de graças.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

FAMÍLIA DE NAZARÉ: o ambiente de humanização de Jesus

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana), como sugestão para rezar o Evangelho da Solenidade da Sagrada Família.

“E Jesus crescia em sabedoria, estatura e graça, diante de Deus e diante dos homens” (Lc 2,52)

 

Toda família é raiz, escola, mestra, origem, destino, referência, refúgio, desafio, criatividade... A família tem a missão de proteger e ativar a semente de grandeza que pulsa no interior de todo ser humano: o amor, os valores, o conhecimento, a liberdade, os sonhos...

Quando a semente humana não recebe os nutrientes emocionais, intelectuais e espirituais que necessita, a vida se torna estéril, o sentido se esvazia e a felicidade perde o vigor.

“Cada família é um mundo” e dentro desse pequeno “mundo” a vida se expande em diferentes direções, fazendo emergir os traços originais de cada um, os gestos, os pensamentos, as atitudes, a personalidade, a cultura... Mas, é ali, entre os mais próximos e íntimos, que cada pessoa se faz mais humana; é ali onde cada um é reconhecido em sua identidade. Por isso, ser-estar-pertencer a uma família são dimensões que não podem estar separadas.

Jesus fez a experiência de pertencer a uma família concreta; Ele teve uma família e, apaixonado e profundo como era, viveu intensamente neste ambiente instigante e humanizador. Tal ambiente vai determinar sua futura missão.

Sua permanência em Nazaré foi um longo aprendizado. Jesus foi um aprendiz da vida e foi no espaço familiar que Ele encontrou o terreno propício para ativar os seus recursos internos, sua imaginação fértil, sua criatividade encantadora, suas relações oblativas. Foi no pequeno mundo em Nazaré que Jesus aprendeu a ter um coração universal.

Quando falamos da infância de Jesus, muitas vezes nos limitamos a afirmar que temos pouquíssimo relatos sobre ela nos evangelhos. Mas, sob outra perspectiva, podemos afirmar que temos muitíssimos elementos, revelados pelo próprio Jesus; de fato, quem modelou a natureza humana de Jesus, foi a família de Nazaré.

Lendo o Evangelho como um todo podemos encontrar, com facilidade, uma descrição muito aproximada de quem era Jesus no seu espaço familiar. Quem, senão José, poderia ensinar a Jesus tudo o que conhecia sobre o trabalho, o campo, as colheitas, o tempo, as aves e o mundo que os rodeava? Quem, senão Maria, poderia ensinar Jesus a tratar as pessoas, a servir o seu próximo, a olhar, a falar, a sorrir...? Ela, certamente, lhe ensinou muitas coisas da vida doméstica, conforme percebemos os exemplos que o Mestre usou em seus ensinamentos: a imagem do candil, do fermento na massa, do remendo novo em roupa velha...

Em cada gesto de Jesus, revelou-se um ensinamento do Pai e de seus pais; em cada parábola havia uma expressão da natureza e da terra com o selo de José, e uma mensagem espiritual inspirada a partir do alto. Em cada cura que Jesus realizou havia um modo e uma sensibilidade de tratar o enfermo, o desvalido, herdados da sensibilidade feminina de Maria; e, à hora de orar havia um hábito alimentado na casa de seus pais, fiéis cumpridores da lei mosaica e abertos à novidade e ao mistério que seu filho Jesus deixou transparecer. Enfim, Jesus recebeu de sua família um modo de ser e de viver, de acordo com a sociedade de seu tempo.

“E Jesus crescia em sabedoria...”  Sabedoria é conhecimento global, por meio do coração e de todos os sentidos, que permite “saborear” tudo em profundidade; é experiência constante, não ocasional, que abrange a vida inteira, de uma nova identidade, escondida no interior, mais rica e mais verdadeira, mais estável e positiva; é contemplação e memória das coisas que permanecem, gosto pela beleza e olhar poético, conversão e formação contínuas, harmonia de significados e de vivências existenciais, humorismo e otimismo, sentido do mistério e do eterno, sabor do divino e simpatia pelo humano...

Sabedoria, sobretudo, é unidade de vida e síntese; significa ter chegado ao coração da vida, onde está o tesouro de cada ser humano e onde se concentra o que é mais nobre e original de cada um.

Em Nazaré, Jesus não fez coisas extraordinárias; era um lugar onde todos se conheciam e foi ali, nos costumes e na vida diária deste lugar, onde Ele descobriu a presença do Pai: ali o menino crescia em idade, em sabedoria e em experiência de Deus. Nazaré é o tempo do crescimento e da maturação humana.

Jesus pregou o que viveu no espaço familiar. Se pregou o amor, a entrega, o serviço, a solicitude pelo outro, quer dizer que primeiramente Ele viveu isso. O espaço familiar foi o seu primeiro campo de aprendizagem como todo ser humano. Com a presença inspiradora e ajuda de seus pais, Jesus foi alargando seus horizontes e discernindo seu caminho e sua missão. Seu lar em Nazaré foi rampa de lançamento para sua vida pública.

Como aprendiz da vida, foi ali, na casa e na oficina de Nazaré que Jesus se exercitou na Redenção. Não lhe foi difícil passar de “artesão de coisas” a “artesão da humanidade”, passar da “oficina de Nazaré” à “oficina do Evangelho”.

Custa-nos muito descobrir a “espiritualidade da vida cotidiana”, a vida de cada dia nos parece sem sentido, sem muito destaque e sem muitos fatos extraordinários; temos ainda muito que aprender da vida cotidiana do artesão de Nazaré.

Na família de Nazaré nos inspiramos para viver também uma presença inspiradora em nossa existência cotidiana.  

Nazaré se revela também como espaço e tempo do “coração”. Por isso, Maria “conservava no coração todas estas coisas”. “Maria guardava tudo isto e meditava-o em seu coração” (Lc. 2,19).

Trata-se de um contemplar e meditar vivencial, realizado no centro afetivo-emocional de sua personalidade, simbolizado no termo “coração”.

Na língua portuguesa a palavra “coração” designa a sede da afetividade, dos sentimentos..., ao passo que na cultura oriental e bíblica, o “coração” é o lugar da interioridade, ou seja, designa uma faculdade espiritual pela qual o ser humano pode entrar em contato com Deus.

O “coração” representa o núcleo mais íntimo e mais secreto do nosso ser; ali é o lugar das “manifestações vitais”; trata-se de um “lugar” e um princípio de direção que não cessa de nos impulsionar, a partir do nosso interior, para nossa realização pessoal e transpessoal. Podemos considerá-lo também a raiz e o ápice da nossa existência onde se elaboram as concepções mais finas do nosso espírito.

Meditar um assunto em nosso coração significa “auscultar” as “moções interiores”, significa ouvir o que o coração nos tem a dizer. Quando auscultamos nosso coração nos deparamos com algo decisivo que fará toda diferença para nossa existência. Pois, por “coração” entendemos o núcleo central da nossa personalidade humana, o ponto exato onde se encontram e se reúnem a inteligência e todas as potencialidades dinâmicas e vitais, as energias inconscientes e simbólicas do nosso ser profundo.

Textos bíblicosLc 2,41-52 

Na oração:

Contemplar seu espaço familiar: é ambiente instigante, provocativo, inspirador... onde todos se sentem livres para expressar sua identidade e originalidade? Ali educa-se para viver uma consciência moral responsável, sadia, coerente com a fé cristã? Ou favorece um estilo de vida superficial, consumista, sem metas nem ideais, sem critérios e valores evangélicos?

- Em quê dimensões você sente que sua família pode e deve crescer mais, tendo como referência a Família de Nazaré?

A pro-vocativa Gruta do Natal

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana), como sugestão para rezar o Evangelho do dia do Natal.

A "celebração agradecida" do Natal nos abre os olhos e todo o nosso ser para o grande presépio que é a nossa realidade, grávida de ricas possibilidades e surpresas; assim, admirados(as) e encantados(as), entraremos no fluxo da grande "descida" de Deus para nos comunicar Vida em plenitude.

Um inspirado Natal a todos!

“Encontrareis um recém-nascido envolvido em faixas e deitado numa manjedoura” (Lc 2,12)

 

Jesus “desce” aos rincões da humanidade; sua Luz brilha no interior da gruta e a partir daí ilumina todo o universo. As grutas sempre despertaram fascínio nos seres humanos; possuem uma força atrativa e guardam segredos em seu interior. Ao mesmo tempo simbolizam o desejo permanente de retornar ao ventre materno, lugar de segurança, de aquecimento...

A contemplação do Nascimento de Jesus nos impulsiona a fazer a travessia para o interior de uma Gruta: ali o Grande Mistério se faz visível e revelador do sentido da existência humana.

Trata-se de “entrar” nela com suavidade, de percebê-la e fazê-la descer até o coração, de convertê-la em matéria de consideração, de oração silenciosa e surpreendida.

A contemplação do Menino Jesus na Gruta revela que Deus assumiu a aventura humana desde seus começos até seu limite (vida, amor e morte). Deus se fez “tecido humano”, revestiu o ser humano de sua própria glória, plenificou-o de sentido e de finalidade. No nascimento de Jesus é revelada a grandeza, a dignidade, o mistério inesgotável do ser humano. Nossa humanidade foi divinizada pela “descida” de Deus.

Acolhido pela natureza, presente na Gruta, Deus se deixou impactar por tudo aquilo que o rodeava. Tudo isso é Deus na nossa carne quente e mortal. Um Deus que “adentrou” na humanidade e de onde nunca mais saiu; um Deus que agora pode ser buscado em nossa interioridade e em tudo o que é humano.

Na pobreza, na humildade da nossa própria história pessoal, inserida na grande história da humanidade, torna-se possível acolher o dom do amor de Deus visível na Criança de Belém.

A linguagem da Gruta de Belém é poderosa; é intensa; é urgente; é um reflexo de presenças e encontros, de assombro e de silêncio. No seu interior ressoam as palavras mais humanizadoras e mais vivas: justiça, bondade, liberdade, igualdade, paz, compaixão, alegria, acolhida... Palavras que não podem ser esquecidas, sepultadas ou banalizadas por modismos ou novidades. Palavras que só podem ser pronunciadas diante do “Deus que se faz Criança” para que fiquem gravadas a fogo em nosso coração e se visibilizem na nossa maneira de ser e viver.

A Gruta também nos recorda que “Deus é Palavra”; uma Palavra que se fez Vida e acampou entre nós. Uma Palavra inspiradora, chocante, coerente, feita “carne e sangue”, feita “lágrima e riso”. Palavra que se faz proximidade, encontro, abraço...; Palavra que é de sempre e é eterna.

O fato de que Deus tenha decidido salvar-nos a partir de uma gruta que recolhia animais é, sem dúvida alguma, a revelação mais desconcertante d’Ele. Nosso Deus é certamente contracultural, inesperado, surpreendente, pois não corresponde às ideias que forjamos d’Ele, é diferente, não é óbvio que Ele seja assim.

É preciso estarmos abertos para as surpresas de Deus!

Entremos, pois, na gruta, mas não de qualquer maneira. Estamos frente a um mistério santo: Deus se fez um de nós, compartilha nossa pobreza e precariedade. Aqui só tem lugar as atitudes interiores e corporais de agradecimento, humildade, reverência e serviço.

Se contemplarmos Jesus na manjedoura, longa e amorosamente, experimentaremos que algo nos move a mudar dentro de nós: uma mudança de sonhos e esperanças, uma mudança no modo de nos situar no mundo, de nos relacionar com os outros, conosco mesmos e com Deus.

Aqui está enraizada a convicção de que Belém pode mudar nossa vida. O “mistério” contemplado atinge as camadas mais profundas do afeto e do coração, gerando novidade em nossa vida cotidiana.

A contemplação do mistério do Nascimento de Jesus ativa em nós uma maneira cristificada de ser e de estar no mundo; nossa presença e nossa missão fazem do mundo em que vivemos um lugar transparente, santo e luminoso em Deus. “Entrar na Gruta” do Nascimento nos expande e nos lança em direção ao mundo, à humanidade, nos faz mais universais e nos capacita para sermos contemplativos nas relações.

Na espiritualidade cristã, quem experimenta o encontro com o Deus vivo e amoroso, começa a “ver” os homens e as mulheres no mundo como Deus mesmo os vê. Precisamente por ter-se encontrado com o Deus-Amor, a pessoa torna-se mais “encarnada” na realidade e mais comprometida com os outros, sobretudo com os mais pobres, os mais sofridos e excluídos; é aquela que mais se compromete com a justiça e é a que mais desenvolve uma criatividade eficaz na história, com obras que nos surpreendem.

O mistério do Nascimento nos sensibiliza e nos capacita para nos aproximar desse nosso mundo com uma visão mais contemplativa. O “subir” até Deus passa pelo “descer” até às profundezas da humanidade.

Como “contemplativos nos encontros”, movidos por um olhar novo, entramos em comunhão com a realidade tal como ela é.  É olhar o mundo como “sacramento de Deus”; um olhar capaz de descobrir os sinais de esperança que ali existem; um olhar afetivo, marcado pela ternura, pela compaixão e gerador de misericórdia; um olhar gratuito e desinteressado, “janela da alma”, que nos expande numa atitude acolhedora de tudo que nos rodeia; um olhar que rompe distancias e alimenta encontros instigantes.

É preciso sair dos limites conhecidos; sair de nossas seguranças para adentrar-nos no terreno do incerto; sair dos espaços onde nos sentimos fortes para arriscar-nos a transitar por lugares onde somos frágeis; sair do inquestionável para enfrentarmos o novo...

É decisivo estar dispostos a abrir espaços em nossa história a novas pessoas e situações, novos encontros, novas experiências... Porque sempre há algo diferente e inesperado que pode nos enriquecer...

A vida está cheia de possibilidades e surpresas; inumeráveis caminhos que podemos percorrer; pessoas instigantes que aparecem em nossas vidas; desafios, encontros, aprendizagens, motivos para celebrar, lições que aprendemos e nos fazem um pouco mais lúcidos, mais humanos e mais simples...

Queremos, neste Natal, manter abertas as portas da esperança para todos os seres humanos, em um caminho que vai nos conduzindo à Vida. É preciso fazer a “travessia” do “natal” do nosso ego, autocentrado e consumista, ao Natal que desperta em nós as melhores energias de vida, sempre em favor da vida.

E poderemos sentir a alegria de Maria, de José e dos anônimos pastores; a indizível alegria, aquela que só pode ser recebida como presente e da qual nasce o compromisso mais radical e esperançoso pela transformação social que nosso mundo tanto necessita.

O nascimento de Jesus em uma Gruta desmascara esta dura realidade: portas fechadas, uma cidade cheia, a falta de hospitalidade ou de atenção de um povo... Natal continua sendo um tempo de contrastes, uma história de luz e sombra, de possibilidades e de oportunidades; enquanto uns se deixam afetar pela  surpresa de Deus que entra na história pelo lado dos mais fracos, outros nem se dão conta daquilo que está acontecendo. Enquanto alguns estavam despertos e bem atentos, outros estavam bem protegidos, perdidos em suas histórias, em suas preocupações e compromissos, em suas urgências e interesses, dormindo tranqui-lamente, sem se inteiraram de que ali, a poucos metros, um menino nascia. Não foram capazes de descobrir algo admirável naquele Menino dei-tado numa menjedoura, porque nem sequer o viram; per-deram a capacidade de estar atentos, de manter os olhos abertos e o coração sedento.


Texto bíblicoLc 2,1-14

Na oração:

Faça um “deslocamento” em direção à sua “gruta interior”; com os olhos bem abertos e curiosos dos “humildes pastores” descubra as surpresas que ali Deus continua realizando.

- Abra-se, com profunda gratidão, ao dom da Vida que se faz vida nas profundezas de seu ser.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

ADVENTO: Deus dançando em nosso interior

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana), como sugestão para rezar o Evangelho do 4º  Domingo do Tempo do Advento (Ano C).

“Quando Isabel ouviu de Maria, a criança pulou no seu ventre e Isabel ficou cheia do Espírito Santo” 

A grande e boa notícia da Anunciação não levou Maria a ensimesmar-se e a submergir-se numa reflexão estática do Mistério que se desenvolvia em seu ventre. Pelo contrário, moveu-a a colocar-se prontamente e com pressa em caminho: “levantou-se, dirigindo-se apressadamente à região montanhosa”.

De onde brota tanta prontidão?

O caminho interior, que começou com um chamado de Deus, não é um caminho reto e plano, mas serpenteante e tortuoso, interpelador e cheio de novidade. O anjo deixou Maria motivada para empreender uma nova etapa em sua vida através do encontro com sua prima Isabel. Está claro que a Anunciação estava pedindo Visitação desde o primeiro momento. Maria, a quem foi anunciada, corre a visitar para anunciar.

O ícone da Visitação, com o forte abraço de Isabel e Maria, nos ajuda a entrar e interiorizar o tempo do Advento, com sua mensagem esperançosa, aberta ao novo. Lucas nos diz que o AT chegou a seu fim, já não pode gerar mais vida. Isabel representa a “travessia” porque está aberta às surpresas de Deus. Zacarias, no entanto, representa o antigo, é o incrédulo diante da grande novidade que Deus lhe abre. Por isso, ele é representado como mudo; sua fé está adormecida, ancorada em um passado. O primeiro testamento já não tem mais nada novo a comunicar. Isabel, embora sendo estéril biologicamente, permanece aberta a deixar que Deus presenteie o novo em seu ventre.

Na Visitação, Lucas revela a centralidade do feminino para emudecer Zacarias da lógica e das garantias. Ao recuperar o feminino realça-se a perspectiva do Amor acima da razão; Isabel, apesar de sua esterilidade e velhice, abre-se a um projeto que vai além do natural.

O sacerdote Zacarias, no entanto, está mudo e ausente do relato da Visitação; ele não tem nada que dizer, enquanto sua mulher, idosa, estéril e não considerada, crê, e seu ser se enche de vida. É o início do Novo Testamento. Isabel faz de mediação entre a instituição e a profecia que anuncia a vinda do Messias.

Os varões (sacerdotes, escribas, fariseus...) também permanecem silenciosos, ficaram mudos como Zacarias. No fundo, todos eles têm medo do Messias.

Maria, com sua inocente e profunda sabedoria, enquanto descobre seu ser habitado, recebe a notícia de que também sua prima anciã está gestante; com a força e a prontidão próprias de pessoas guiadas pelo Espírito, “ela se pôs a caminho, dirigindo-se com toda pressa às montanhas”. Deixa seu lar, sua segurança, se desinstala... Não perde tempo considerando o esforço que este deslocamento para as montanhas implica. O serviço é urgente. O caminho que ela deve percorrer é símbolo de outra forma de viver.

Maria poderia recorrer ao Templo e relatar aos sacerdotes a passagem de Deus por ela; mas, atenta a seu interior habitado, descobre que é guiada a “outros lugares sagrados” onde a presença de Deus se revela surpreendente através de uma mulher considerada estéril, fora dos rituais vazios do passado.

Entra em casa de Isabel, dá-se o encontro e o reconhecimento. Visita que faz explodir a alegria entre ambas.

Elas se acolhem, se abraçam... “e eles se movem em seus ventres”. Há esbanjamento de vida.

Nessa casa, pratica-se a hospitalidade, a acolhida entranhável, o cuidado, a palavra justa e a escuta infinita... Maria é hóspede, ao mesmo tempo que hospeda o Mistério em seu ventre.

Na cena da Visitação, Maria não só reconhece a Isabel, mas também é reconhecida por ela. Encontram-se frente a frente as duas mulheres, levando em suas entranhas o segredo de Deus, o presente e o futuro da vida.

Um duplo reconhecimento, que os pintores souberam expressar maravilhosamente apresentando as duas mulheres colocando mão sobre o ventre, uma da outra. Gesto de profundo reconhecimento: o que está acontecendo em seus ventres só pode ser surpresa de Deus. Com certeza, este reconhecimento é o segredo de toda a alegria e de toda a luz que dimana desta Visitação; reconhecimento que consiste no ato de abraçar, beijar, tocar, constatar, acolher...; mas, reconhecimento que é também gratidão, ação de graças, agradecimento que as invade diante do Dom de Deus.

O “futuro precursor” cresce nas entranhas de Isabel e recebe ali, em clima de exultação, a certeza de que se cumprem as antigas esperanças; por isso salta, bailando de alegria, no ventre mesmo de sua mãe.

Agora Isabel “bendiz”: como mulher emocionada, satisfeita, contempla Maria e não tem inveja dela; recebe o dom ou graça que provém do Senhor (do Filho de Maria) e o agradece; por isso, com palavra clara, culminando o Antigo Testamento e tomando a palavra dos sacerdotes de seu povo (já mudos como o mostra Zacarias), ela bendiz a Mãe messiânica e o fruto de seu ventre que é Jesus.

Maria se deixou encher pela benção e bem-aventurança de sua prima. Não tem nada que acrescentar, não deve explicar ou comentar coisa alguma, pois tudo é claro. Simplesmente, consente.

Concluímos afirmando que o ícone por excelência de Advento é o da uma mulher gestante. A vida que está pulsando nela é imagem para que compreendamos e tomemos consciência de que todos estamos implicados nessa gestação. Somos convidados a entrar nesse silêncio habitado, para experimentar, em uníssono, o pulsar do divino em nós, dentro de nós. Deus “pula de alegria” em nosso interior quando abrimos espaço para sua presença e sua ação em nossa vida.

Podemos considerar o encontro das duas mulheres, grávidas da Vida, como um “abraçar o passado” para despedi-lo, deixá-lo ir porque já está estéril, e acolher o futuro, a comunidade de Jesus que Maria está gestando. Se, com profunda gratidão, nos despedimos do passado, evoluímos, para um presente-futuro em contínua mudança, em contínuo processo para a Vida.

O autêntico Advento vai além da espera, é gestação; não é só a arte de viver despertos e mobilizados, é gerar em nosso interior “algo novo” para entregar ao mundo que, gritando, pede de nós uma presença compassiva e servidora.

O que gestamos em nós deve ter a feição do amor invencível, do amor valente, do amor capaz de romper fronteiras, de superar os ódios, de quebrar as distâncias, de aplainar os “egos inflados”. Gestação de vida, de esperança, de paixão por um mundo diferente.

A Igreja precisa de seguidores(as) “gestantes”, não só de fiéis “expectantes”.

Deus dança em nosso interior quando sentimos o impulso para o outro, o despertar de nossos desejos mais nobres, o emergir de sonhos adormecidos, nosso espírito criativo, nossos sentimentos oblativos... Muitas vezes, é preciso uma presença inspiradora de alguém, também “carregada de Deus e de espírito serviçal” que nos visite e faça saltar tudo o que é mais “humano” em nós, o “joão” que todos carregamos. Tudo isso nos enche de alegria serena, de esperança benfazeja, de generosidade aberta...

Texto bíblico: Lc 1,39-45

Na oração:

Maria recebe a visita de Deus em sua casa e desloca-se para a casa de Isabel para lhe dar o abraço mais longo e apertado da história. Abraço que se prolonga em nós quando estamos habitados de Vida e a presença da Vida nos outros faz com que todo nosso ser dance de alegria e de esperança.

Nosso interior é um “ventre fecundo”, espaço onde são gestados desejos nobres, sonhos inspiradores, sentimentos mobilizados, impulsos criativos...

- Qual é o “novo e surpreendente” que está sendo fecundado e que fará toda diferença no amanhã de sua vida?

sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

ADVENTO: despertar “entranhas solidárias”

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana), como sugestão para rezar o Evangelho do 3º  Domingo do Tempo do Advento (Ano C).

 “Quem tiver duas túnicas, dê uma a quem não tem; e quem tiver comida, faça o mesmo” (Lc 3,11)

 

Advento e Natal nos situam no clima das grandes esperanças da humanidade; neste dezembro mágico nosso coração caminha mais rápido, rompe o tempo, já está lá na frente, pronto para acolher a surpresa.

Tudo aponta para o Eterno que nos escapa e nos encontra. Aqui a imaginação trabalha e cria momentos felizes. Com essa esperança, podemos dar sabor à nossa vida, muitas vezes modesta e simples.

A esperança não é só uma virtude teologal, mas uma habilidade que temos de exercitar; podemos aprender a ter esperança, e esta destreza nos faz mais humanos e mais fortes diante das adversidades da vida.

Quem vive o clima do Advento não é prisioneiro da “cotidianidade”; toda a nossa vida se transforma na história de uma espera e de um encontro surpreendente. Nessa espera vislumbramos detalhes decisivos: a vivência da ternura, a reinvenção da vida em cada amanhecer, a gratuidade amorosa, a alegria descontrolada, o despertar de sonhos... Espera-se Jesus vivendo os valores que Ele encarnou: a sintonia com os pobres, o coração dilatado no serviço, o cuidado terapêutico, a ajuda gratuita...

Nessa atitude de espera o cristão pode dar sabor à sua vida: nos pequenos gestos ela floresce e aponta para um sentido novo.

“O povo estava na expectativa...”: uma bonita maneira de indicar uma atitude positiva de espera diante de João Batista que, sob o impulso da Palavra brotada no deserto, tocou o coração de muitos.

De fato, João Batista é um personagem instigante e provocativo; muitas pessoas, impactadas pelo seu modo de falar, vão até ele para escutá-lo. João não fala do cumprimento minucioso das normas legais ou dos ritos religiosos. Em nenhum caso faz alusão a uma nova religião, que exigisse um culto diferente, e sim a uma nova forma de viver que dá sentido à própria existência e desperta um modo de proceder para que a relação com os demais seja realmente fraterna, carregada de respeito, de cuidado, de partilha.

O chamado de João à conversão e seu apelo a uma vida mais fiel a Deus despertou em muitas pessoas uma pergunta concreta: “Que devemos fazer?”.  Com algumas pinceladas João reforça a necessidade de mudar a maneira de pensar e de agir; isto é, ativar o que já está presente em nosso coração: o desejo de uma vida mais justa, digna e fraterna.

Todas as propostas que João Batista faz estão direcionadas a melhorar a convivência humana. Percebe-se uma maior preocupação por tornar mais humanas as mútuas relações, superando toda atitude egocentrada.

De fato, uma religiosidade que não se alarga em direção aos outros não é a religiosidade que Deus deseja.

Aqui não se trata propriamente de fazer coisas nem de assumir deveres, mas ser de outra maneira, viver de forma mais humana; em outras palavras, a partir do centro de cada um, despertar aquilo que é o mais verdadeiramente humano, para que flua humanidade em todas as direções. Que todo o nosso ser se mova na perspectiva do amor oblativo, que se expressa em “entranhas solidárias”.

João Batista é mais um personagem de Advento; tudo estava tranquilo até que ele apareceu no deserto. Sua pregação sacudiu as consciências, fazendo reacender o espírito solidário que estava atrofiado no coração de todos: a multidão, os publicanos, os soldados...

Segundo a definição do Papa Francisco “a solidariedade deve ser vivida como a decisão de devolver ao pobre o que lhe corresponde” (EG 189). A solidariedade é uma decisão, carregada de afeto. A razão, por si mesma não nos leva a ela. É uma decisão pessoal, cordial, livre, voluntária...

A solidariedade é espontânea, não se impõe a partir de cima, senão que supõe uma predisposição favorável ao encontro com o outro, deixando-nos afetar cordialmente pela realidade de quem sofre.

A solidariedade nasce da gratuidade e nos faz mover em direção dos outros, sobretudo dos excluídos, daqueles privados de sua dignidade humana.

O encontro com o “outro” marginalizado dá um “toque” especial à nossa espiritualidade e nossa espiritualidade faz nossa ação mais radical – mais enraizada em si mesma e vai mais fundo nas raízes da injustiça. Aproximar-nos do “pobre” e deixar-nos “afetar” pelo seu sofrimento torna-se a maior fonte de nossa espiritualidade. Suas “fraquezas” suscitam em nós o melhor de nós mesmos e, ao nos envolver afetivamente em sua vida, faz com que vivamos um misto de ternura e indignação a que chamamos compaixão.

A solidariedade nos leva a reconhecer no outro (sobretudo o outro que é excluído, marginalizado...) uma dignidade e uma capacidade criativa de superar sua situação; ela gera protagonismo e nunca dependência; compartilha sem humilhar; cria humanidade em seu entorno, com generosidade, humildade e silêncio; supera todo exibicionismo, sentimentalismo ou instrumentalização do outro. 

Sabemos que há uma profunda afinidade entre “sólido” e “solidário”; ambas as palavras, etimológicamente, procedem da expressão latina “solidus”. Diz-se “sólido” em virtude de sua firmeza, densidade, fortaleza ou por ser aquilo que se estabelece com razões fundamentais e verdadeiras; a pessoa “solidária” é aquela que encarna tais virtudes. Há um “plus” maior quando essa pessoa vive a fé cristã. Porque, uma fé ausente de solidariedade carece de coerência e sentido; não é firme e não tem a suficiente densidade para suportar as incompreensões daqueles que não estão em sintonia com suas atitudes solidárias.

Portanto, solidariedade é uma “questão de entranhas”, ou seja, encontrar, experiencial e vitalmente, os “outros” excluídos e despojados de tudo, e sentir-se tocado, afetado pela imensa dor que marca a vida de tantos. A partir daqui o rosto da pessoa solidária é modelado pela compaixão e gratuidade.

A “solidariedade compassiva”, que brota do “patire cum” ou compadecer-nos diante da dor e da miséria do outro, devolve a todos nós a imagem de seres humanos. A solidariedade nos humaniza.

Trata-se aqui de viver a cultura da solidariedade, entendida evangelicamente, que forja nosso ser e nosso fazer no manancial que brota da compaixão e se desenvolve realizando a justiça.

A solidariedade que nasce da compaixão não acaba nela mesma, mas leva a reconhecer no outro uma dignidade e uma capacidade criativa de superar sua situação.

 

Isto pede de nós uma atitude de abertura ao outro, o que implica colocar-nos em seu lugar, deixar-nos questionar e desinstalar por ele... Importa, pois, re-descobrir com urgência a solidariedade como valor ético e como atitude permanente de vida...; não uma solidariedade ocasional, mas uma solidariedade cotidiana que se encarna nos pequenos gestos de serviço no dia-a-dia.

Só assim o tempo Advento deixará transparecer seu sentido mais profundo. Deus, ao entrar na história, se faz solidário com a humanidade, salvando-a. O rosto solidário de Deus se visibilizará em cada um de nós quando entramos no fluxo do Seu amor descendente e comprometido.

Texto bíblico: Lc 3,10-18

Na oração:

A originalidade do Advento está em “alargar” o espaço interior para que os outros encontrem lugar. A atitude da partilha, da solidariedade e do compromisso com os últimos são expressões deste Tempo tão nobre e inspirador.

* Na sua vivência cristã, como responder frente ao chamado tão simples e tão humano de João Batista?