Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho da Solenidade de Cristo Rei, que encerra o ano litúrgico.
“Todo aquele que é da verdade escuta a minha voz”
A Igreja Católica celebra, no último domingo do
Ano Litúrgico, a festa de Cristo Rei. Uma imagem provocativa, pois
quebra toda concepção que temos de “rei” e “reinado”.
Esta é a ousadia de Jesus: proclamar-se “rei” sem
tomar a Capital, sem conquista militar como os imperadores romanos, nem por
eleições, nem por herança de família, nem por estratégia de partido...
Certamente, Jesus utilizou a imagem de rei e de reino, mas não quis ser rei na linha do domínio econômico, social ou militar, mas de serviço mútuo, revelando aos homens o testemunho da verdade de Deus e do sentido da vida. Por isso, não veio para anunciar uma guerra apocalíptica, nem a destruição dos perversos, mas semear humanidade, a partir da Galileia, oferecendo a Palavra aos enfermos, marginalizados e pobres, pois outros haviam se apropriado dela, deixando-os sem nada. Quis assim que todos fossem reis, em um Reinado fundado na verdade de Deus e na fraternidade entre os homens.
O evangelho deste domingo nos apresenta uma cena
inusitada: o poder terreno se depara com alguém que diz: “sou rei”, sendo um
condenado à norte, sozinho, frágil, pobre, despojado de todo poder, que passou
a noite submetido a terríveis torturas, coroado de espinhos, sangrando e com as
mãos atadas. Esse Rei é Jesus, um profeta que desafiou os dogmas do poder
terreno representado por Pilatos.
Aqui, nesta cena, se enfrentam o opressor e o
oprimido.
Jesus tem autoridade sem
governar, exige sem dominar nem oprimir; propaga sua verdade sem conquistar nem
impor. Seu reinado não cria instituições de poder terreno, senão que cria
fraternidade.
Onde se apoia a autoridade de Jesus
e a precariedade da autoridade do governador Pilatos? No testemunho da Verdade.
Pilatos não dizia a verdade, não caminhava na verdade, nem estava a serviço da
verdade. E Jesus era a Verdade. Em sua vida, Jesus sempre se revelou verdadeiro
e transparente; ensinou e realizou a verdade: “para
isto nasci, para dar testemunho da verdade”.
Jesus, sendo autêntico, sendo verdade, era o verdadeiro Rei. Mas o que lhe pedia seu verdadeiro ser era colocar-se a serviço de todo aquele que lhe necessitava, sem impor nada aos demais.
Nesse sentido, Jesus é Rei,
porque vem dar testemunho da verdade, mas não de uma verdade racional ou
teológica, separada da Vida, mas da mesma vida como transparência de amor, em
comunhão com todos.
Jesus é Rei e todos podemos ser
“reis” n’Ele e com Ele; “ser rei” é viver des-centrado, sensível à realidade de
quem sofre, criativo no espírito de serviço; “ser rei” é viver na verdade do
que somos, em gesto de transparência, que é amor mútuo, conhecimento compartilhado,
sem armas, sem negociatas políticas, sem manipulação da religião para
enriquecimento ilícito.
Esta é a festa da Igreja, a festa da Verdade. Não
se trata de dizer que Jesus é a Verdade e viver depois na mentira estruturada.
Trata-se, simplesmente, de viver na verdade: verdade que é transparência
afetiva, pessoal e relacional; só a verdade nos cura e nos liberta do apego ao
poder, da ganância do dinheiro, da imposição sobre os outros...
É da essência do ser humano existir
sempre na verdade. É preciso des-velá-la e não escondê-la. A verdade é
indobrável. Mesmo ensanguentada, não capitula.
Verdade exige honestidade, pois, sem honestidade, a verdade passa a ser produto de barganha. Verdade violentada por interesses mesquinhos, verdade esvaziada de compaixão e de sentimentos.
Percebemos no contexto atual que o importante não
é a verdade do ser, mas a do aparentar; o importante não é a coerência de vida,
mas a mentira camuflada de verdade.
A ocultação da verdade é um dos
sintomas mais fortes do processo de desumanização que estamos vivendo; a
“cultura da mentira”, a destruição da reputação dos outros através das “fake
news”, os negócios escusos, os orçamentos secretos, o negacionismo como hábito
de morte... constituem a chamada “crise da mentira”. Quanta incoerência!
Dizemos que somos seguidores d’Aquele que “veio testemunhar a verdade” e, no
entanto, procedemos como canais por onde flui a mentira deslavada.
Des-velar a verdade de si mesmo e
acolher a verdade no outro é sinal de maturidade. A verdade é limpa. É
inocente. A verdade retira o mundo das trevas da ignorância, do negacionismo,
do “terra-planismo”.
Os “pilatos” da atualidade estão a
postos violentando a verdade em nome de uma ideologia que alimenta ódios,
preconceitos, intolerâncias...
Também nós, em nosso interior,
alimentamos um Pilatos para quem vale a mentira, o engano, a falsa promessa, a
falsa imagem... Acaso somos o que dizemos ser? Acaso vivemos o que falamos?
Desse modo, quem se fecha numa crença ou numa ideologia, sente-se automaticamente dono da verdade. Daqui brotam a exclusão de quem pensa e sente diferente, o fanatismo, o proselitismo... Tudo isso a partir de uma atitude arrogante, que pretende auto-justificar-se, apelando à posse da verdade.
Diante dos donos do poder e das autoridades
religiosas que se julgam em posse da verdade e que tem um
“deus” feito à medida de seus interesses, Jesus
afirma que “veio
para dar testemunho da verdade”.
A Verdade é uma das grandes carências
existenciais; ela aponta para o sentido da existência, expressa a grande e
permanente busca do ser humano. Não se trata de uma necessidade periférica, mas
uma dimensão que nos humaniza. Jesus, diante de Pilatos, se apresenta como
resposta a esta busca.
“Conhecer a verdade” é aspiração humana inata. O ser humano tem
sede de verdade. Vai buscá-la nas dimensões mais profundas de seu
espírito. Antes que “ter” a verdade, ele quer “ser verdade”, ele
deseja existir na verdade. Descobrir a verdade é desejo
mobilizador.
Compensa atravessar vigílias e trilhar veredas
para chegar à verdade. Uma das angústias humanas é não alcançar o manancial da
verdade. Enquanto existir verdade encoberta, o ser humano vive inquieto.
A verdade clareia a vida. Sem a verdade, a existência é sombria. A verdade gera autenticidade. Onde falta a verdade, instala-se lacuna na existência. Quem não vive a verdade, está “carunchado” por dentro. Impregnar-se da verdade é humanizar-se.
Ser “testemunha
da verdade” requer
“viver na verdade”; e viver na verdade inclui o reconhecimento e
a aceitação
da própria verdade (com suas luzes e sombras) e da verdade dos
outros. Quando alguém transita por este caminho, começa a viver na humildade
e isso é já “caminhar
na verdade”
(S. Teresa).
Ser seguidor de Jesus é fixar o olhar
n’Ele, pois Ele é o centro do nosso caminho; ao caminhar com Ele, vamos nos
revelando e a partir d’Ele vamos descobrindo nosso ser verdadeiro
(que nos abre para acolher a verdade presente em cada ser humano –
verdade que vai além das verdades religiosas, políticas, ideológicas...). É
significativo que os antigos gregos entenderam a verdade como “a-létheia”
(“sem véu”), ou seja, quando emerge a verdade de nós mesmos.
Quem se descobre verdadeiro e sem
máscara, vive profundamente, alarga sua vida a serviço dos sem-vida.
E esse reconhecimento da verdade –
isso é a humildade – se transforma em luz, descanso e liberdade.
Esta é a via da humanização; e quanto mais nos humanizamos, mais nos divinizamos.
Texto bíblico: Jo 18,33-37
Na oração:
Jesus Cristo é a
única Verdade; é na Verdade d’Ele que todos “somos, vivemos e existimos”.
- Devemos fazer um
exame do consciente coletivo diante d’Aquele que é “Testemunha da Verdade”.
- É preciso
atrever-nos a discernir com humildade o que há de verdade e o que há de mentira
em nosso seguimento de Jesus.
- Onde há verdade
libertadora e onde há mentira que nos escraviza?
- Precisamos dar
passos em direção a maiores níveis de verdade humana e evangélica em nossas vidas,
em nossas comunidades, em nossas instituições.
Esses textos profundos e esmiuçados daquilo que vivemos e do que vive em nós, são possibilitadores de um aprofundamento em si e reconhecimento avaliativo de quem somos e de onde estamos, em nossos caminhos de todos os dias. São preciosos por margearem um caminho, delineando os limites laterais da estrada e permitindo um seguir mais luminoso. É incrível esse Rei que reina absoluto sem se impor e aguarda a resposta nossa ao seu chamado em cada ação nossa. Padre Adroaldo, Deus abençoe esse seu dom divino de tocar com palavras o coração da gente, numa proximidade admirável de nossa humanidade tão frágil em tantos sentidos e condutas. Não é possível permanecer do mesmo jeito ao ler seus textos de luz pois, algo sempre se acende e ganha novo contorno, após. Traz esperança e entendimento para dentro do que, enquanto aqui, nao podemos nos apartar: nosa vida.
ResponderExcluirObrigada! Deus o abençoe!
A mensagem acima foi escrita por mim, Ana Patrocínia, em agradecimento ao Sr., Padre Adroaldo, pelo tanto de amor que suas palavras trazem ao coração de tantos de nós.
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