Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, SJ (Centro de Espiritualidade Inaciana), como sugestão para rezar o Evangelho do 21º Domingo do Tempo Comum (Ano B).
“As palavras que vos falei são espírito e vida” (Jo 6,63)
Segundo o evangelista João, Jesus resume assim a
crise que vai se estabelecendo em seu grupo: “As
palavras
que vos falei são espírito e vida”. Jesus desperta um
“espírito novo” naqueles que o seguem; suas palavras tem um peso e ativam vida; são palavras inspiradoras
porque brotam do mais profundo do seu coração; são palavras provocativas, que
colocam em questão o verdadeiro motivo daqueles que o seguem.
Por isso, elas despertam uma ressonância no
interior dos ouvintes e desencadeiam um movimento de ruptura com o antigo,
movendo-os a um distanciamento das “palavras domesticadas” pela tradição e pela
religião. As palavras de vida pronunciadas por Jesus podem gerar um movimento
capaz de orientar o mundo para uma vida mais digna e plena.
Um dos maiores dramas de nossa atual cultura é
que temos esvaziado as palavras de sentido, e, com frequência, as utilizamos
para expressar coisas totalmente diferentes e até opostas ao seu significado
original. Chamamos liberdade o que na realidade é arbitrariedade e imposição; felicidade
passou a significar consumo e vaidade; a qualidade de vida está ligada à
quantidade de coisas; negócio passou a ser grosseira especulação
e roubo; ordem estabelecida à dominação e à injustiça; diplomacia
ao engano e à mentira; sinceridade à falta de respeito; amor
à atração física, ou ao desejo de posse... Uma gravíssima desvalorização da
palavra acaba se expressando na desvalorização da ética, da política, da vida.
Há palavras que, de repente, se põem de moda
entre nós, expressões felizes que por força da repetição acabam se esvaziando.
Os “comerciantes da morte” mataram
as palavras, arrancaram dela o coração e as transformaram em meras máscaras
ocas, em sons sem alma, com os quais pretendem nos seduzir, nos enganar e nos
manipular. Não há pior escravidão que a mentira; ela oprime, tortura, impede
sair de si mesmo para viver uma comunicação sadia com quem pensa, sente e ama
diferente. Não há nada mais desprezível que a eloquência de uma pessoa que não
diz a verdade. É preciso libertar a consciência dizendo sempre a verdade. É
preferível perturbar com a verdade que agradar com adulações.
Vivemos hoje uma “crise gramatical”, ou seja,
temos cada vez menos palavras. O leque de palavras carregadas de sentido
é muito limitado. Daí a dificuldade de encontrar palavras para nomear a
experiência de Deus, para expressar as grandes questões da vida, para dar
sentido a uma busca existencial.
Vivemos tempos de “fratura da palavra” e,
portanto, “fratura de sentido”. E a raiz disso tudo está na carência de uma
interioridade, lugar da gestão das palavras de sabedoria que inspiram
nossa vida.
Vivemos cercados de “palavras vãs”,
condenados a uma civilização que teme o silêncio
(há demasiado ruído em nós e em torno a nós). Fala-se muito para dizer bem
pouco.
Jornais, revistas, tevê, outdoors, celular, Whatsapp,
internet, correio eletrônico... há demasiado palavrório. Carecemos de
profundidade.
Se, segundo o Gênesis, Deus fala e
com sua Palavra cria, as palavras nos fazem sentir como “deuses”: com elas
podemos fortalecer a vida ou asfixiá-la, expressar amor ou ódio, elevar o outro
ou afundá-lo...
Há palavras que são golpes,
bofetadas; e palavras que são carícias, estímulos, abraços. Com as palavras
podemos criar ou destruir, dar vida ou matar. A palavra pode se converter em
insulto e condenação, mas também em canção ou poema que cultiva a sensibilidade
e nos abre à beleza.
“Tomem cuidado contra a murmuração inútil, e da maledicência preservai a língua. Não há palavra oculta que caia no vazio e a boca mentirosa mata a alma” (Sab 1,11).
No momento final do discurso no cap. 6, de João,
Jesus busca aclarar as condições de pertença à sua nova comunidade: adesão a
Ele e revestir-se de sua proposta de vida; deixar que Sua Palavra desperte palavras mobilizadoras em nosso íntimo, palavras
abertas, oblativas e que apontem para o sentido de nossa própria existência.
Mas, não basta estar em seu grupo
para garantir a adesão ao modo livre de ser e viver de Jesus; há aqueles que
resistem aceitar seu espírito e sua vida. Sua presença em torno a Jesus é
fictícia, seu seguimento se restringe a um ritualismo vazio. A verdadeira crise no interior do cristianismo
sempre é esta: cremos ou não cremos em Jesus? Somos seguidores (as) de uma
Pessoa ou meros cumpridores de alguns ritos, normas, doutrinas… que nos fazem
estéreis e esvaziam todo compromisso com os outros?
São muitos os que resistem aceitar o “espírito e vida” de Jesus. O narrador do Evangelho
deste domingo nos diz que “muitos discípulos
o abandonaram e não mais andavam com Ele”. É na
crise que se revela quem de fato são os verdadeiros seguidores de Jesus. A
opção decisiva é sempre esta: quem volta para trás e quem permanece com Ele,
identificados com seu espírito e sua vida? Quem está a favor e quem está contra
Seu projeto em favor da vida?
Para os despreparados
(imediatistas) a crise representa estresse e colapso. Para os atentos
(contemplativos), significa um trampolim para o aprendizado e para o novo.
A crise provoca uma decisão que
abre um novo caminho de crescimento e rasga um horizonte de possibilidades que
vão moldando um novo estilo de vida. Não havendo decisão, protela-se a crise,
e as forças positivas nela contidas nunca chegam a se manifestar.
Crise é o
momento crítico da decisão, onde algo é deixado para trás e se abre um patamar
superior que possibilita uma nova forma de vida.
Nos momentos de crise vive-se com especial intensidade
o “kairós” (momento de graça), onde
o essencial
surge com mais clarividência. Tudo o que é acidental, periférico, perde sua
consistência e validade. É chance de vida nova num outro nível e dentro de um
horizonte mais aberto.
Se compreendermos que a crise é o lugar generoso onde se prepara o amanhã, então teremos a oportunidade de amadurecer e de dar um salto para dentro de um horizonte mais rico de vida, humana e divina. Nesse sentido, a crise é oportunidade para despertar nossa humanidade; ela nos humaniza.
O grupo que
seguia Jesus começa a diminuir, mas Ele não teme o fracasso, não se irrita e
não pronuncia nenhum julgamento contra ninguém. Só faz uma pergunta aos que
permanecem junto a Ele:
“Vós
também quereis ir embora?”
Seguimento é questão
de decisão pessoal, é exercício da liberdade.
Esta é a pergunta que ressoa
no interior de cada um de nós: Quê queremos? Por quê permanecemos? É
para seguir
a Jesus, acolhendo seu espírito e vivendo seu estilo? É para trabalhar em seu
projeto?
A resposta de Pedro é exemplar: “Senhor, a quem
iremos nós? Tu tens palavras de vida eterna”.
Os que permanecem o farão por
Jesus. Só por Ele; comprometem-se
com Ele. O único motivo para permanecer
em seu grupo é Ele. Ninguém mais.
O messianismo triunfal fica definitivamente excluído. Jesus não busca glória humana ou divina, nem a promete aos que o seguem. Segui-lo significa renunciar toda ambição, e aceitar a entrega total de si mesmo em benefício dos outros.
Texto bíblico: Jo 6,60-69
Na oração:
Fazer
memória das crises na vida pessoal: elas
foram ocasião para uma mudança ou acomodação, movimento em direção do novo ou
re- traimento? Medo ou ousadia? Criatividade ou “normose”?
-
Que implicações tem para sua vida o fato de ser seguidor (a) de Jesus? Faz
diferença?...
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