Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, SJ (Centro de Espiritualidade Inaciana), como sugestão para rezar o Evangelho da Solenidade da Assunção de Nossa Senhora.
“...o Todo-Poderoso fez grandes coisas em meu favor” (Lc 1,49)
A festa da “assunção” de Maria não é a celebração de um ser divino feminino (eterno, fora do tempo e do espaço), mas a recordação da vida e testemunho de Maria, a Mãe de Jesus, memória viva que foi transmitida pela comunidade judeu-cristã, à qual devemos estar imensamente agradecidos. Em sua realidade história, como mãe de Jesus e membro da comunidade cristã, ela oferece nova identidade ao ser humano, vinculado a Jesus numa história de busca, de encarnação e de fé...
Sem entrar
no tema da historicidade dos relatos da infância, Lucas nos apresenta Maria com
atitudes e valores diferentes daqueles que tinham suas vizinhas. Com Maria, o
destino de uma mulher grávida não se limita a “dar à luz” e criar filhos, mas
que deve ampliar muito mais seu horizonte de vida. O horizonte de uma mulher
que segue a Jesus Cristo se estende até onde a missão, ativada pela sua fé,
pode levá-la.
Ao receber a notícia de que seria a
mãe do Salvador, Maria rompe seus espaços estreitos, sai de seu ambiente
cotidiano e entra no dinamismo do Espírito, deslocando-se para o serviço
gratuito.
Ao encontrar-se com Isabel, ela não pode segurar por mais tempo sua alegria e irrompe em um hino de louvor, o Magnificat, pois a experiência envolvente da grandeza de Deus com a qual se encontrou, instiga-a a exaltá-Lo. É um canto que brota de maneira espontânea e que se centra fundamentalmente na face salvadora de Deus. Um Deus que fixou nela um olhar amoroso, que fez grandes coisas na história do povo de Israel e na vida da própria Maria. Por isso, as gerações futuras a considerarão bendita.
No seu Magnificat Maria canta e faz memória de
sua própria história e a de seu
povo, à luz da santidade e da misericórdia divinas; no “hoje eterno de Deus” tudo adquire sentido,
tudo é relido e ressignificado.
Neste
sentido, a proclamadora do Magnificat é verdadeiramente ícone do Povo de Deus
que caminha; ela deixa transparecer uma “memória agradecida” diante das
ações libertadoras de Deus.
A sua oração é absolutamente original, porque expõe fatos concretos da sua história, mas essa singularidade está inserida numa amplidão comunitária. Isto é, na verdade, o que se espera de toda a oração: a capacidade, por um lado, de ser formulada, como o Magnificat, na primeira pessoa do singular. E, por outro, a capacidade de unir a sua história concreta ao horizonte mais vasto dos planos de Deus e da missão da comunidade que crê.
Aprendemos com Maria a “ler” a História de uma
maneira diferente e instigante. A partir da “memória bíblica”,
somos convidados a “re-ler” nossa história, pessoal e coletiva, com novos olhos,
re-construindo-a, dando a ela um novo significado e deixando-nos impelir a
escrever uma nova história.
Nossa vida é parte da História, e esta, por sua vez, é formada
pelas histórias de nossas vidas, pontilhadas e marcadas pela presença de
outras muitas histórias.
A História, por si mesma, é provocante e nos fascina; ela tem um
estranho poder de sedução. Nós nos reconhecemos nas histórias da História;
isso nos facilita tomar consciência de onde estamos e quem somos, e nos ajuda a
assumir decisões mais maduras frente aos desafios e surpresas que a vida nos
reserva.
A vida só tem sentido quando se torna História, isto é, quando não se limita a repetir o passado, mas quando engendra algo novo e diferente a partir de uma História internalizada e saboreada. É somente no nível mais profundo que o ser humano transforma seu “tempo” em história e seu “espaço” em encontro.
Somos
“seres históricos”, mas, muitas vezes, carregamos uma história pesada,
reprimida, cheia de fracassos e derrotas; isso alimenta culpas, remorsos,
sentimentos negativos..., que nos paralisam e travam o fluir da vida. Todos
temos experiência que o passado
carrega lembranças de fatos e de vivências negativas: crises, fracassos,
rejeições, erros, pecados... Os desencontros, quebras e rupturas... costumam
deixar feridas. Tudo isso pesa na memória
e continua influenciando negativamente no presente.
Com isso,
ao nos fixar no passado, alimentamos uma “memória mórbida, doentia, ferida”:
depósito de rancores, ressentimentos, hostilidades, sentimentos de culpa,
desânimo, angústia..., embotando a vida, queimando energias, paralisando-nos e
não abrindo futuro de sentido.
Sabemos que uma pessoa doente na
memória é doente no seu coração, na sua afetividade, nos seus sentimentos, nas
suas relações...
Se a memória não é “evangelizada”, ela continua remoendo aquilo que
aconteceu, num desgaste muito grande de energia. Não há mudança e conversão se
não houver mudança e conversão da memória.
Somente
através da “memória redentora”, a pessoa é capaz de se colocar diante do
passado, de modo livre e aberta, dando-lhe um novo significado.
A memória
sadia não muda o passado, mas “re-corda” (visita de novo com o coração)
de modo novo e inspirador. A memória
resgata referências, cura feridas, reconcilia-se com a vida e consigo mesma,
com as próprias riquezas e fraquezas, com o próprio passado; ela tem sua função
de lugar santo do louvor e da gratidão, pois ajuda a tomar consciência dos
benefícios recebidos e possibilita ter acesso às recordações não neutras,
mas aquelas que tem um significado para o presente. Ela é capaz de tirar
proveito de todas as vivências pessoais (nada é descartado, tudo é integrado);
abre possibilidade para rever a própria história e lê-la como História de
Salvação.
A memória revela a verdade de um acontecimento. Uma memória
mobilizadora, aberta ao novo e comprometida com o futuro. É através da memória
sadia que somos capazes de descobrir a presença Deus na nossa história,
tornando-a história da salvação.
A história
pessoal e a história do mundo tornam-se, portanto, o “lugar”
habitual da experiência de Deus, a montanha da misteriosa sarça ardente que não
se consome. Só assim a história se converte em “Epifania”
(manifestação) de Deus e permite compreender-nos e aceitar-nos.
Na plenitude final em Deus, toda a história passada será para sempre
realizada na eternidade. O céu é
apenas esse momento eterno de re-visitar tudo o que fomos, fizemos e sentimos
na presença de Deus.
A história
se revela, assim, como um húmus vivente, uma atmosfera
de graça, uma torrente subterrânea na qual se nutre todo o
processo da vida de cada um. Não é fora da História e de sua história
que a pessoa pode reconhecer a Vontade de Deus e escutar Seu apelo; porque “Deus
se fez e se faz História” é que a história de cada um e da
humanidade inteira adquire uma nova luz e um novo sentido.
Cantar o Magnificat nos possibilita viver o “mistério”
da presença e a ação do “Deus na História”. Nesse sentido, assim
como Maria, cada pessoa se “contempla a si mesma”, imersa nesse
acontecimento de graça que á a história da humanidade, assumindo-a e
fazendo-a própria.
A partir do fundamento da História contemplamos nossa própria história (pessoal e institucional): história que deve ser observada, lida, discernida. Tal experiência nos ajuda a abrir os olhos para a novidade inesgo-tável da vida, nos faz “aquecer o coração”, desperta em nós o desejo e mobiliza todas as nossas capacidades para um compromisso de ação transformadora na história pessoal e coletiva.
Texto bíblico: Lc 1,39-56
Na oração:
A História está sempre
aberta, desafiando-nos, arrancando-nos de nosso imobilismo, despertando nossa
criatividade para ser re-escrita de uma maneira diferente.
- Diante da história pessoal e
social, você se sente desafiado(a)? paralisado(a)? com medo? inquieto(a)...?
- Quanto de esperança você
carrega em seu interior frente à nossa história centrada na cultura da morte?
- O que faz abrasar o seu coração
diante de uma história que parece um contínuo fracasso?
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