Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana), como sugestão para rezar o Evangelho do 1º Domingo da Quaresma (2021).
Áudio do texto: https://open.spotify.com/episode/0IapT57LW79MmaEpzFbt65?si=hvjn435dQLGq55K3sitXUQ
“E imediatamente o Espírito impeliu Jesus para o deserto...” (Mc 1,12)
É um privilégio iniciar este tempo litúrgico,
intenso e forte, chamado “tempo quaresmal”, deixando-nos “arrastar” pelo mesmo
Espírito de Jesus; tempo único que nos oferece a possibilidade de fazer uma
estratégica parada, de buscar o deserto em meio ao cotidiano, de plantar os pés
na terra firme do evangelho e assim viver um compromisso transformador em nossa
realidade. Nesse espaço e nesse tempo de maior despojamento, podemos sair de
nossas inércias, podemos deixar de lado nossas seguranças e comodidades para
transitar por novas paisagens. Há muitos modos de fazer isso: assumir com
seriedade esse momento, investir no cuidado interior, abster-nos do rotineiro para
abrir-nos ao inesperado e surpreendente...
Enfim, Quaresma sempre indica um tempo especial,
de crise-crescimento; hoje diríamos, de discernimento.
E o que devemos discernir? Qual é o crescimento-maturação que o tempo
quaresmal nos propõe?
O discernimento implica, em primeiro lugar, uma escuta atenta e uma profunda sintonia com o mesmo Espírito que atuava em Jesus, para fazermos opções mais evangélicas, a serviço da vida. É o Espírito, força de vida e amor, que nos conduz ao deserto para “desintoxicar-nos” de um modo de viver atrofiado, imposto por um contexto social centrado na busca de poder e prestígio, com seus inimigos mortais da competição, do consumismo, do preconceito e que, lentamente, envenenam nossa vida, instigando-nos a romper as relações de comunhão e compromisso. É preciso, de tempos em tempos, sair de nossos espaços rotineiros e “normóticos”, deslocar-nos para os amplos espaços do deserto, lugar despojado de tudo, para ali viver de novo o encontro com a Voz e a Força que nos devolvem à vida, com outra inspiração. Ali, guiados pelo Espírito, teremos a oportunidade de aprofundar nossa relação com a Fonte do Amor que, depois, se expandirá numa nova relação com os outros e com a natureza.
Neste ano, a CF está centrada no tema do “diálogo”; e o deserto quaresmal ajuda a limpar os canais de comunicação que estão obstruídos pelo excesso de gordura do nosso “ego”: auto-centramento, busca dos próprios interesses, vaidades... Sabemos que o diálogo implica um des-centramento, uma saída de si, para escutar e acolher o outro na sua diferença. O diálogo entre diferentes nos humaniza. Aqui não há mais lugar para o julgamento, a suspeita, o fanatismo, a intolerância..., nas diferentes situações da vida: religiosa, social, política, cultural, racial... Dialogar é abrir-nos ao outro diferente, sair do nosso próprio mundo, criar vínculos com outras pessoas, conhecer seu modo de ser e pensar..., multiplicando assim os pontos de vista, para enriquecer-nos humanamente, dilatar os horizontes, crescer pessoalmente.
Todo primeiro domingo da quaresma a liturgia nos
conduz até o deserto, onde Jesus foi “tentado”.
Tradicionalmente, as tentações de
Jesus foram interpretadas num sentido moralizante; costumava-se dizer que Jesus
nos queria dar o exemplo de fortaleza para nos ajudar a superar nossas
tentações cotidianas.
Tal interpretação não capta em toda sua
profundidade o sentido das “tentações de Jesus”.
As tentações não são tanto uma “prova”
a superar quanto um projeto que deve ser discernido.
O que parece certo, teológica e historicamente, é
afirmar que Jesus, depois do batismo, buscou o deserto para um tempo de
discernimento, em oração, em solidão, diante do Pai que o proclamou seu Filho,
sob o impulso do Espírito; de algum modo teve de refletir e discernir sobre qual
seria seu estilo de messianismo que deveria assumir para sua missão, em
sua vida pública. É um tempo de confronto interior, de crise.
A “crise” põe à prova sua atitude frente a Deus: como viver sua missão e a partir de quê lugar? buscando seu próprio interesse ou escutando fielmente Palavra do Pai? Como deverá atuar? dominando os outros ou pondo-se a seu serviço? buscando poder e sua própria glória ou a vontade de Deus?...
As tentações são, pois, expressão
da oferta de dois tipos de messianismos, dois projetos, duas lógicas que se
opõem.
* Por um lado, está a lógica da autossuficiência, da
segurança, a partir do centro, a partir de cima, um messianismo
triunfalista, evitando conflitos com o poder político e religioso, alheio ao
sofrimento do povo; uma lógica que supõe adaptação ao “sistema”, ser servido
antes que servir.
* E, por outro lado, aparece a lógica da solidariedade, a partir da margem e da periferia da sociedade política e religiosa, a partir do povo, a partir de baixo, vivendo a filiação e a confiança no Pai, em gratuidade, num estilo de simplicidade e pobreza alternativo ao “sistema”, optando por servir antes que ser servido; uma lógica de inclusão e de vulnerabilidade frente o sofrimento do povo, na linha do Servo de Javé e dos grandes profetas de Israel.
Fruto da experiência batismal de sentir-se Filho
e do discernimento do deserto, Jesus elege a lógica da solidariedade e do
serviço, a partir dos últimos. Assim como foi “impelido” pelo Espírito ao
deserto, Jesus se deixa conduzir pelo mesmo Espírito em direção às margens
excluídas, às “periferias existenciais”.
A partir deste discernimento e opção, o messianismo
de Jesus se manifesta como “diferente” daquilo que muitos esperavam em Israel. O
fato surpreendente é que Jesus começa a falar e a agir a partir da margem geográfica, cultural, religiosa
e econômica da Palestina: a Galileia.
Jesus rompeu com a família, afastou-se
da vida normal que levava, iniciou uma vida itinerante e passou a viver a partir de um sonho: a utopia do Reino.
Vivendo no meio de uma realidade
conflituosa, de exploração, de desintegração das instituições, de injustiças...
Jesus, unido ao Pai, torna-se aluno dos fatos,
descobre dentro deles a chegada da hora
de Deus e anuncia ao povo: “O tempo já se completou e o REINO de Deus está próximo. Convertei-vos e crede no Evangelho!” (Mc 1,15).
Ele vem realizar as esperanças
do povo, despertadas e alimentadas ao longo dos séculos, pelos profetas.
Com sua vida e sua palavra, Jesus interrompe o discurso dos especialistas sobre Deus. Ele não tinha uma instituição em que pudesse se apoiar; tudo brotava de dentro.
Enquanto todos tinham os olhos voltados para o centro (sobretudo para o templo de Jerusalém onde era elaborado o saber
que ia se expandindo até chegar à menor das sinagogas), Jesus revela sua
presença nas “periferias” do mundo. A partir daí, todos nós também devemos
dirigir constantemente o olhar para as “novas periferias”, lugar onde Ele
continua nos convocando.
“O discípulo-missionário é um des-centrado: o centro é
Jesus Cristo que convoca e envia. O discípulo é enviado para as periferias
existenciais. A posição do discípulo-missionário não é a de centro, mas de
periferias: vive em tensão para as periferias” (Papa Francisco)
Quê significa “fronteiras geográficas e existenciais”?
É preciso sair dos limites conhecidos; sair de nossas seguranças para
adentrar-nos no terreno do incerto; sair dos espaços onde nos sentimos fortes
para arriscar-nos a transitar por lugares onde somos frágeis; sair do
inquestionável para enfrentarmos o novo...
É decisivo estar dispostos a abrir espaços em nossa
história a novas pessoas e situações, novos encontros, novas experiências...
Porque sempre há algo diferente e inesperado que pode nos
enriquecer...
A vida está cheia de possibilidades e surpresas;
inumeráveis caminhos que podemos percorrer; pessoas instigantes que aparecem em
nossas vidas; encontros, diálogos, aprendizagens, motivos para celebrar, lições
que aprenderemos e nos farão um pouco mais lúcidos, mais humanos e mais
simples...
A periferia passa a ser terra privilegiada onde nasce o “novo”, por obra do Espírito. Ali aparece o broto original do “nunca visto”, que em sua pequenez de fermento profético torna-se um desafio ao imobilismo petrificado e um questionamento à ordem estabelecida.
Texto bíblico: Mc 1,12-15
Na oração:
Quaresma
é tempo para desintoxicação
existencial: feridas mal curadas, fracassos, modos fechados de viver,
intolerâncias, legalismos e moralismos, ...
-
De que você precisa se desintoxicar? De que você precisa se alimentar ao longo
deste tempo quaresmal?
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