Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana), como sugestão para rezar o Evangelho do 5º Domingo do Tempo Comum (Ano B).
Áudio do texto no Spotify: https://open.spotify.com/episode/3cx6pBvRZFzhU1kauc8Klt?si=0rl09A7UQ92W8wTeWiqBVA
“Jesus saiu da sinagoga e foi, com Tiago e João, para a casa de Simão e André” (Mc 1,29)
Neste tempo litúrgico conhecido como “Tempo Comum”,
nos convém ter referências que nos ajudem a caminhar sem cair na rotina ou na
monotonia. O Evangelho deste domingo nos oferece um texto inspirador que
sintetiza o modo com que Jesus organizava sua jornada ou dividia o tempo de sua
vida pública.
É significativo o fato de que Ele se instale em
Cafarnaum, cidade fronteiriça com os povos pagãos, tanto com Tiro e Sidon, como
com as cidades da Decápolis. Com isso, Jesus revela que sua missão é universal,
e isso será demonstrado em sua incursão pelas terras do Norte ou fazendo
travessia para a outra margem do lago, para o leste; por ambas direções
adentrava-se em territórios pagãos.
Embora sua presença pública se dê numa
cidade comercial e de tanto movimento de pessoas, o início do evangelho de
Marcos indica quatro espaços diferentes no quais Jesus se move; cada um deles
se converte em ensinamento e inspiração para todos nós.
Pela manhã, vai à sinagoga; ao meio dia, à casa
de Simão; ao entardecer atende os enfermos na rua, e na madrugada, de forma sigilosa, se retira a um lugar solitário para orar.
A oração comunitária, a relação
doméstica e familiar, a missão evangelizadora e a oração íntima e pessoal com o
Pai se conjugam de modo pleno, para nos indicar como deveria ser nossa jornada,
quanto à harmonia e ao exercício das relações essenciais: o trato com nosso
Deus Pai, a vida social e laboral solidária, a vida de oração e familiar, e a
relação interior. Viver a cotidianidade inspiradora: isso faz a diferença.
Quem sabe, poderíamos nos inspirar no modo de viver diário do Senhor, que deverá ser sempre um referente para o nosso próprio estilo de vida. Do equilíbrio que mantenhamos nas diferentes dimensões dependem o crescimento pessoal, a maturação espiritual e a estabilidade na opção de vida cristã.
Um traço característico de nossa sociedade é o
individualismo, o isolamento narcisista que nos centra e nos concentra em nosso
eu como lugar referencial de
atenção, dedicação, cuidado e investimento de quase todas as nossas energias
disponíveis. Temos a sensação de que tudo, a partir de fora, convida a viver
fechados e surdos às vozes que vem do nosso eu mais profundo. Muitas demandas
externas nos impulsionam a reduzir nossa vida ao tamanho de um “bonsai”, a
atrofiar nossos desejos mais nobres até reduzi-los aos pequenos bens acessíveis
e a conformar-nos com pequenas doses de prazer egoísta.
Ao nos convidar para percorrer, junto
ao Mestre, numa de suas estadias em Cafarnaum, o evangelista Marcos nos
apresenta uma cena na qual vemos, como num relance, tudo o que vai ser a
existência de Jesus: Ele se dirige à casa de Simão e André; ali encontrava-se
acamada a sogra de Pedro.
Uma mulher anônima, que só a conhecemos
quando referida a seu genro e possuída pela febre, foi introduzida na festa
comunitária do serviço fraterno pela mão libertadora de Jesus.
É o primeiro relato de cura em que o Mestre vai ao
encontro de uma enferma. Jesus ouve a conversa dos discípulos sobre a doença da
sogra de Pedro, toma a iniciativa, vai até a mulher doente e a toma pela mão. Ao
tomá-la pela mão, compartilha a sua força. E assim, revigorada pela sua força, a
febre a deixa, ela consegue se levantar e se põe a servir.
Assim soam e ressoam em nosso interior as palavras do evangelista Marcos: “Jesus se aproximou, tomou-a pela mão e a ajudou a levantar-se”. Gestos cheios de carinho, de compaixão, de autoridade interior. Tudo o que faltava à religião oficial, é revelado agora por este galileu diferente, desafiador, que não age movido por leis frias, mas por um coração e uma mente integrados, em sintonia com o Pai.
Vale destacar uma constante no evangelho de Marcos:
a casa como lugar preferencial da ação
de Jesus e da missão dos seus discípulos. Certamente Jesus ensinava nas
sinagogas, mas ali sempre encontrava a resistência e o fechamento daqueles que
faziam da Lei o centro da vida; por isso, Jesus, como um inspirado mestre,
revela um “novo ensinamento”, não em lugares fechados e controlados, mas em
espaços abertos, nos campos, à beira do lago de Genezaré, indo pelos
caminhos...; Jesus se dirige aos lugares onde homens e mulheres realizam suas
atividades comuns, no simples ambiente do trabalho cotidiano e, de maneira
privilegiada, nas casas, começando
pela sua própria, em Cafarnaum, onde fora residir.
Jesus, como itinerante, dá início a um “movimento
de casas”. É que a casa acaba sendo o espaço alternativo que melhor
corresponde à atuação do Mestre, enquanto ponto de partida e de chegada de sua
missão itinerante. É a partir das casas que Jesus exerce, à margem do que está
estabelecido, sua autoridade em favor da vida, sem depender de instituições e
funções previamente normatizadas.
Assim, através de uma rede eficiente, ampliada e centrada no Mestre e com funções complementárias, seus seguidores, a partir das casas, prolongam o ministério de Jesus: “viver em saída”, deslocar-se em direção aos excluídos, revelar a presença do Pai na simplicidade do cotidiano das pessoas, etc. Neste sentido, a casa cumpre uma função vital para a expansão da causa do Reino de Deus. Em outras palavras, a causa de Jesus (Reino) encontra nas casas seu lugar natural.
É fácil concluir que esta rede de seguidores nas
casas acabe se organizando de uma forma concêntrica, ao mesmo tempo que
horizontal, favorecendo de modo definitivo e natural o avanço do Reino; tal
organização se diferencia das estruturas piramidais e hierárquicas, próprias de
toda e qualquer instituição, com os riscos de esclerose que lhe são inerentes.
Aqui, revela-se sumamente estimulante re-situar a continuidade da causa de
Jesus de Nazaré nos ambientes fraternos e igualitários, onde a casa se revela
como espaço próprio da simplicidade e da cotidianidade.
Trata-se, pois, de uma alternativa
urgente, frente à persistência petrificada de conservar formas e estruturas
anacrônicas que, em função do poder, continuam a predominar em nossos ambientes
cristãos, apesar dos apelos insistentes do próprio evangelho.
O Evangelho de Jesus é experiência de casa, de comunhão e palavra para todos, lugar aberto à novidade do Reino. A primitiva comunidade dos seguidores de Jesus não começou formando uma nova religião instituída, nem se preocupou com construções de templos ou com organizações hierarquizadas; ela se apresentou como uma federação de casas abertas, a partir dos pobres e para os pobres, criando redes de comunicação e de vida fraterna, casas-família, impulsionadas pelo testemunho e presença do Espírito do mesmo Jesus.
Ser seguidor(a) é ser chamado(a)
a viver no seu dia-a-dia esta mística do amor
da maneira como Jesus viveu (na família, no trabalho, no descanso, na luta em
favor da vida, nos compromissos sociais...).
O cotidiano é o meio no qual o amor toma densidade e se expressa preferentemente; ele é o lugar privilegiado da vivência da
espiritualidade do seguimento, deixando-nos conduzir pelo mesmo Espírito que
animou Jesus e o levou a inserir-se na trama da vida humana e a dignificá-la.
Falamos de uma cotidianidade humana, isto é, daquelas
atividades de nossa vida diária que, embora irrelevantes em sua aparência, tem
uma razão
de ser, uma motivação que não se reduz à mera casualidade ou a um impulso
instintivo de repetição ou automatismo.
Sabemos que o cotidiano revela um perigo que é a rotina, essa sensação de fazer tudo mecanicamente, inclusive a vivência da fé, e de perder com isso o ardor do novo ou o impacto do extraordinário. O amor é precisamente o lubrificante que dá sentido à nossa vida cotidiana e nos faz superar as dificuldades inerentes à mesma; o descentramento de nós mesmos, a busca da verdade e do bem comum, a ação comprometida com a vida dos outros... se tornam “normais” quando cultivamos o amor.
Texto bíblico: Mc 1,29-39
Na oração:
O Espírito
nos faz abrir os olhos às realidades
novas em nossa vida cotidiana; mas nossos olhos somente se abrirão se formos
fiéis à voz do Espírito nos simples
atos de nossa vida cotidiana.
- Suas atividades
diárias fazem parte do seu caminho para Deus? Você tem consciência que cada
dia é um “tempo de graça”? Você “apalpa” a presença de Deus nas “rotinas
diárias”?
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