Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana), como sugestão para rezar o Evangelho da Solenidade de todos os Fiéis Defuntos.
“Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, ainda que tenha morrido, viverá” (Jo 11,25)
Ontem, celebramos “Todos os Santos e Santas”: santidade
universal. Hoje, fazemos memória de todos os Defuntos: realidade
universal. Neste dia, poderíamos projetar sobre a lembranças dos nossos
mortos a luz de “Todos os Santos e Santas”, a festa da vitória de Deus sobre as
forças da morte, a festa do destino final da humanidade e festa também da
solidariedade.
As festas dos(as) Santos(as) e de Finados não são
uma relíquia do passado, nem um negócio de floriculturas; é a oportunidade que
temos de nos perguntar: que significa a morte para nós?
É o momento propício para recordar, de forma
agradecida, todos(as) que nos precederam e, ao mesmo tempo, de nos perguntar,
pelo menos uma vez ao ano, como queremos viver.
Tendo presente as palavras de
Jesus, nós recordamos todos os(as) falecidos(as), sobretudo aqueles(as) com
quem convivemos e deixaram marcas evangélicas em nossas vidas; recordamos não
só como ausentes, mas também como presentes. Estão presentes porque estão vivos
“em-Deus”, que é Deus dos vivos;
estão vivos em nosso coração pelo amor que lhes dedicamos; estão vivos nos
frutos positivos que semearam em suas vidas e em nossas vidas; estão vivos
porque continuam amando, e de uma maneira mais plena, em Deus.
Sabemos que o ser humano é o único animal que
sabe que vai morrer. De fato, a morte
é inevitável e costuma nos surpreender, às vezes de maneira muito violenta; ela
é a única certeza absoluta que temos.
No entanto, apesar de ser algo tão certo e que
todos os seres vivos compartilhamos dessa realidade, não é fácil falar da
morte; no contexto atual, ela passou a ser um tabu; por isso, ela é escondida.
Hoje, evitamos falar da morte, mesmo estando
continuamente presente na nossa vida familiar e em nosso círculo de relações.
Acima de tudo, queremos evitar pensar sobre a nossa própria morte, o único
evento certo que está diante de nós.
O ser humano pós-moderno, inventa
toda sorte de artifícios para não encarar este destino que lhe é insuportável.
Ele brinca, arrisca, ri, inventa mil coisas para adiar o prazo do fim. Lança-se
no ativismo e na fuga para protelar esse inaceitável momento. É melhor o
barulho, a sucessão de desafios e até mesmo o fracasso do que o mergulho no
silêncio da morte. Mesmo estando frente à morte dos outros, pensa ainda poder
escapar desta decisiva prova.
Esta é a constatação: a morte é
afastada para lugares apropriados, tornando-se a única realidade "obscena"
que não deve ser vista, contemplada, considerada.
Mas, a vida marcada pelo medo da
morte é uma vida “em terra de sombras”, que contradiz nossa vocação de sermos
filhos(as) do dia e da luz. Se a morte nos surpreende apegados apaixonadamente
à vida, terminaremos humilhados e derrotados.
Para
a fé cristã, a morte é passo para a comunhão plena. Último passo. Por
isso, não pode ser escondida; antes, preparada. A fé revela-nos a morte como
momento em que a pessoa se abre para dimensões nunca antes imaginadas.
Podemos “viver de modo eterno”
vivendo as experiências que são eternas: amar, perdoar,
ajudar, compreender, aceitar, consolar...
A fé nos diz que fomos feitos por mãos celestiais, chamados à vida, para a liberdade, para a bondade, para a amplidão dos céus. Confessamos que a vida é de Deus e, como Ele, é eterna.
Os(as) santos(as) e os(as) falecidos(as) que
conhecemos pessoalmente, sobretudo nossos parentes e ancestrais, são as raízes
das quais vivemos. Finados é uma
ocasião privilegiada para aprofundar sobre a árvore que nós mesmos somos. Nossa
árvore tem raízes profundas e ela abre uma copa no alto; somos seres da terra e
do céu. Nossas raízes são nossos antepassados; por meio de rituais
compartilhamos de seu vigor e de sua fé.
A morte não entende de títulos, de êxito ou
fracasso. E de duração entende algo, mas não muito, porque ninguém tem uma
idade garantida, salvo a que temos neste momento. Não é que devamos viver assustados,
temerosos de um acidente ou ameaçados por uma doença que nos está esperando
atrás de alguma esquina. Não é que a perspectiva de morrer, ou de perder a quem
amamos, tenha de nos paralisar. Mas sim, deveria nos dar perspectivas para
dedicar mais tempo àquilo que cremos ser importante.
De fato, se rezamos por e com nossos mortos não é para que Deus lhes conceda algo que não obteriam sem a nossa intervenção: o amor de Deus por eles(as) ultrapassa infinitamente o nosso. O que buscamos é tomar consciência da nossa comunhão com eles(as). Todas as suas falhas passadas são também falhas nossas, e todas as suas “virtudes” nos pertencem. Em Deus, a humanidade é, toda ela, una como o próprio Deus é Um. Enfim, a nossa oração com e pelos nossos falecidos deve nos transformar, para que façamos nosso o amor de Deus por eles(as).
Como cristãos, temos o privilégio de olhar a
morte de frente. Por quê? Porque podemos olhá-la com esperança, com a certeza
de que a morte não é o final do caminho senão a porta para a vida eterna. Jesus
Cristo nos precedeu na morte, e ressuscitou para nos dizer que não tenhamos
medo. O fato de assumir com inteireza que vamos morrer, pode nos ajudar a viver
de uma maneira mais autêntica e inclusive mais alegre, pois nos conecta com
nossa realidade de seres finitos.
A “reverência pela vida” exige que sejamos sábios
o bastante para permitir que a morte chegue quando a vida deseja ir. Por isso
não devemos nos preocupar com a morte, mas com a vida. A verdadeira pergunta
não é: “existe vida após a morte?” O místico e o sábio se perguntam: “existe vida antes da morte?”
Perguntar-nos
sobre o que o pós-morte tem a nos oferecer é uma desfeita à vida.
A vida
é tanta surpresa, tanta novidade e riqueza que querer especular sobre o que
acontece depois dela é grosseria. O “depois da vida” é um grande encontro onde
seremos perguntados: “o quanto você viveu sua vida?”
Alguém
já teve a ousadia de afirmar que a morte é mais universal que a vida; todos morrem, mas nem todos “vivem”, porque
incapazes de re-inventar a vida no seu dia-a-dia. Uma vida pensada sem
morte perde-se, no final, na total irresponsabilidade.
Através
do “viver para sempre” nos permitimos o prazer, a alegria, o
desafio, a criatividade, a festa...
Através do “morrer amanhã” criamos em nós a responsabilidade para viver o hoje com mais intensidade.
Somos todos peregrinos e vivemos
contínuas “travessias provisórias” até fazermos a grande travessia para
Deus. Quando nascemos recebemos o sopro do Criador;
quando morrermos seremos “aspirados” para dentro de Deus.
Nosso destino é o Coração de Deus: “D’Ele viemos e para Ele
retornamos”.
Por isso,
somos eternos: já
vivemos a eternidade nesta vida. Descobrimos no coração de nossa vida mortal a eternidade
que vive em nós.
Na verdade, a morte nunca fala sobre si
mesma. Ela sempre nos fala sobre aquilo que estamos fazendo com a própria vida,
as perdas, os sonhos não realizados, os riscos que não tomamos por medo...
Nesse sentido, a morte não é o fim da
vida, mas sua plenitude, quando esta é vivida com sentido.
A vida
não deve ser corroída pela tirania do egoísmo mesquinho: vida é encontro,
interação, comunhão...
A existência histórica cresce no útero do tempo e a morte é o parto para a vida plena. A morte é este instante de ruptura, onde toda uma vida incubada, trabalhada no silêncio e no sofrimento, marcada de alegrias e tristezas, vitórias e fracassos, desponta luminosa para a vida eterna.
Texto bíblico: Jo 11,17-27
Na
oração:
No
silêncio de seu coração, “faça memória” de seus entes queridos que já cumpriram
sua missão.
Diga: “Eu continuo amando a todos(as) vós, mas já não sei como encontrar-me convosco, nem o que fazer por vós. Minha fé é frágil e carregada de medo. Mas, eu vos confio ao amor de Deus, vos deixo nas mãos d’Ele. Esse amor de Deus é hoje para vós um lugar mais seguro que tudo o que eu possa vos oferecer. Desfrutai da vida plena. Experimentai o calor da intimidade divina, em comunhão com todos aqueles(as) que retornaram ao ventre materno do Deus/Mãe. Um dia, voltaremos a nos encontrar. Será uma festa sem fim”. Amém.
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