Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana), como sugestão para rezar o Evangelho do 24º Domingo do Tempo Comum (Ano A).
“Senhor, quantas vezes devo perdoar, se meu irmão pecar contra mim?” (Mt 18,21)
O Evangelho deste domingo também faz parte do
chamado “discurso comunitário”, capítulo 18 de Mateus.
Hoje, o tema principal é o do perdão. Mateus recolhe as instruções de Jesus sobre a maneira como
os irmãos devem proceder dentro da comunidade cristã. Sem o perdão mútuo
torna-se impossível qualquer tipo de comunidade. O perdão é a mais alta
manifestação do amor; o perdão
é superlativo do amor. Reinhold
Niebuh descreveu o perdão como a “forma
final do amor”.
Em outras palavras, é impensável um verdadeiro amor
que não traga consigo o perdão.
Nesse sentido, o perdão deve ser, não um ato, mas uma atitude que se mantém durante
toda a vida e diante de qualquer ofensa. Por isso, a expressão “setenta vezes sete” quer
dizer que é preciso perdoar sempre. Os rabinos mais generosos do tempo de Jesus
falavam em perdoar as ofensas até quatro vezes.
Pedro se sente muito mais generoso e
acrescenta outras três. Sete, já era um número que indicava plenitude, mas
Jesus quer deixar muito claro que não é suficiente, porque corre-se o risco de
contabilizar o perdão. Ele se deixa guiar
pela “lógica
da superabundância” e não pela lei da reciprocidade, da equivalência...;
revela também que o perdão é amor
superando a justiça, a misericórdia divina superando a lei humana.
À vingança, Jesus opõe o perdão; à exigência do revide, Ele opõe a atitude de reconciliação além de qualquer fronteira. Assim, o perdão revela-se como uma experiência “subversiva”, pois subverte as tendências naturais do ser humano em revidar, vingar, “pagar com a mesma moeda”...
Jesus sabe que somos frágeis como o barro; sabe
também que com o barro de nossas vidas é possível fazer obras de arte.
Contam que uma pessoa tinha
um vaso de barro precioso e de grande valor. Alguém curioso o tomou em suas
mãos e, por um descuido, escorregou de suas mãos e se fez pedaços ao cair no
chão. Podemos imaginar a dor do dono do vaso. Mas ali havia um artista que
prontamente se ofereceu para acalmar os ânimos e refazer o vaso quebrado.
Levou-o para sua casa e foi unindo os pedaços com fios de ouro.
Alguns dias depois,
devolveu-o ao dono. Era uma preciosidade. Impossível imaginar aquela obra de
arte.
Aqueles que a contemplavam
ficavam assombrados. E não faltaram entendidos de arte que começaram a elevar o
preço da obra; um preço muito superior ao que tinha antes.
Este é o sentido e a missão
do perdão. Com frequência, a
comunidade cristã se faz pedaços com as ofensas fraternas. Pode dar a impressão
que ela se quebrou para sempre. Mas, aparece a capacidade de tornar a soldar o
que estava quebrado, com os fios de ouro do perdão. E a comunidade que se havia
quebrado, agora volta a ser uma comunidade nova; uma comunidade de amor, de
fraterna caridade, muito mais evangélica.
O amor que perdoa, é esse o fio de ouro capaz de reconstruir o vaso de nossa comunidade e torná-lo mais belo e formoso que antes. Porque o perdão recria e reconstrói vidas quebradas.
O perdão
só pode nascer de um verdadeiro amor.
Não é fácil perdoar, como não é fácil amar. Vai contra todos os nossos
instintos egoístas. Por isso, a partir de nossa consciência de indivíduos
fechados em nosso ego, é impossível entender o perdão do evangelho. O ego tem
necessidade de enfrentar-se com o outro para sobreviver e potenciar-se,
inclusive aproveitando-se do próprio perdão. Ser bom,
sentir-se justo, fraterno, solidário, honesto, tudo isso - embora exija esforços
- é relativamente fácil e, muitas vezes, alimenta o próprio ego. Difícil é perdoar o agressor, não apenas desculpando-o,
mas sendo capaz de amá-lo na
totalidade do seu ser. Esse é o traço característico da comunidade cristã.
Por isso, a
originalidade do cristianismo está na descoberta da grandeza do ser humano, no
exercício da única força capaz de mudar o mundo: o amor real. Não há revolução maior.
Embora não negue o que possa ter havido um
comportamento maldoso, quem perdoa distingue entre ofensor e seu comportamento
e considera o verdadeiro valor do outro como pessoa humana que, tal qual ele próprio, vive num mundo imperfeito,
cheio de tensões e conflitos diversos.
Apontando para o valor do outro, o perdão é uma “atitude revelatória”, de
si mesmo e do outro
Perdoar supõe reconhecer a grandeza do ser humano; para além da fragilidade, a pessoa que perdoa ou acolhe o perdão encontra-se com o melhor de si mesma. Afirma que nela “há sempre mais coisas dignas de admiração e de respeito”.
A virtude cristã do perdão também traz consigo a dignificação da relação com o outro no
mais elevado grau, a ponto de transformar ódio em amor e o inimigo em irmão.
Quando alguém perdoa, mobiliza a outra pessoa,
suscitando nela um retorno à autenticidade no universo relacional consigo mesma,
com os outros, com o mundo e com Deus.
Deixemos claro que o perdão não é negar, nem
esquecer, nem forçar os sentimentos. Pelo contrário, o ponto de partida do
perdão é o pleno reconhecimento da ofensa que rompeu a relação. Mas, quem perdoa, não se
deixa conduzir pela “memória mórbida”, ou seja, não fica “remoendo” o que de
mal aconteceu; pelo contrário, reconstrói, através de uma memória sadia, a identidade do outro, deixando de ver
nele o mero causador da ofensa para captar sua dignidade mais profunda como ser
humano valioso que é, apesar das fraquezas e limitações.
Do mesmo modo, quem perdoa ativa uma memória sadia na percepção de si mesmo, deixando de considerar-se vítima ou magoado e percebendo-se como pessoa capaz de elevar-se acima da mágoa ou da ofensa. Em última análise, o perdão é um ato de fé na bondade fundamental do ser humano.
No processo de
reconstrução de si mesmo e dos outros, o perdão
também proporciona, àquele que perdoa, uma ocasião para rever as ilusões, as
idealizações infantis, a busca do perfeccionismo... que orientavam sua vida. Quem
perdoa está diante de uma situação propícia para discernir como as falsas
expectativas em relação ao comportamento dos outros podem ter preparado o
terreno para uma frustração profunda.
É uma ocasião privilegiada para a pessoa defrontar-se com seus sentimentos agressivos, suas expectativas e a história passada. No encontro com a verdade, quem perdoa pode conquistar maior liberdade para relações pessoais mais profundas e duradouras. A vida de cada dia atesta que exatamente onde se vive o perdão abre-se um novo futuro de paz. No gesto do perdão, a pessoa pode chegar a uma compreensão mais realista de si mesma.
Os recursos do verdadeiro perdão são infinitos. Eles jamais acabam. Uma pessoa que perdoa
algumas vezes e se recusa a perdoar outras vezes, não conhece o significado do
perdão.
O perdão não é uma operação do tipo “de vez em quando”. É um estilo de vida. É uma disposição permanente. Na verdade, no nível mais profundo, o “perdão não é algo que a pessoa faz, é algo que a pessoa é”. O perdão precisa ser um gesto repetido muitas vezes até se tornar um “hábito do coração”. O Evangelho fala 77x7 vezes.
Texto bíblico: Mt 18,21-35
Na oração:
Jesus colocou no perdão fraterno uma das características do ser cristão; ao
perdoar-nos, Deus cria em nós um coração
novo, feito de acordo com o Seu, capaz de perdoar à sua maneira; não pode dar o perdão quem não tem
consciência de tê-lo recebido; a capacidade de perdoar é diretamente proporcional à experiência de ser perdoado.
- Re-visitar experiências de ter vivenciado o perdão de Deus; trazer à memória situações em que você “entrou no fluxo do perdão divino” e foi presença vísível desse perdão nas relações com as pessoas.
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