Programa "Tempo da Criação" - Roteiro 2 (Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, SJ - Centro de Espiritualidade Inaciana)
“Essas situações provocam os gemidos da irmã terra, que se unem aos gemidos dos abandonados do mundo, com um lamento que reclama de nós outro rumo. Nunca maltratamos e ferimos a nossa casa comum como nos últimos dois séculos” (Laudato Si’ n. 53)
Depois
de considerar o sentido de nossa existência diante de Deus (texto anterior),
agora nos é pedido que façamos oração sobre os pecados estruturais da comunidade humana e sobre os nossos pecados pessoais, até que alcancemos a
graça que nosso coração deseja. No exercício anterior, enchemo-nos de gratidão
e assombro pela nos-sa existência, pelo amor da Trindade e pela
comunidade universal de vida que nos sustenta.
No entanto, contemplando o cenário da Criação, vamos
também tomando consciência que perdemos o sentido da corrente única da
vida e de sua imensa diversidade. Esquecemos a teia das interdependências e
da comunhão de todos com a Fonte originária de tudo.
Por isso, em nossa oração, situados diante da Bondade infinita do Criador, vamos implorar sua misericórdia por termos sidos negligentes no “cuidado da Casa comum”, plena de beleza e harmonia; misericórdia que nos chama a uma “metanoia”, ou seja, para uma conversão nos nossos relacionamentos com a Mãe natureza, tal como ela foi criada.
Todos somos filhos e filhas da Terra. Mais ainda, como
humanos, somos a própria Terra em seu momento de sentimento, de pensamento, de
amor e de veneração. Historicamente cometemos um sacrilégio: rompemos a aliança
fundamental de todo o universo, a solidariedade cósmica pela qual nunca
existimos sozinhos, mas coexistimos e inter-existimos uns pelos outros, com os
outros e para os outros. Separamo-nos da comunidade planetária, colocando-nos
acima de todos os seres, ao invés de vivermos a comunhão com eles.
Na perspectiva bíblica, o pecado aparece em primeiro lugar como a ruptura de uma aliança com o Criador, com os outros e com as criaturas. Cometemos um pecado ecológico. Ficamos surdos e mudos diante das mil mensagens que nos vem de cada ser e do universo inteiro. O pecado se mostrou como uma força de desintegração do ser humano com sua Fonte Original, como força de desintegração do ser humano consigo mesmo e, por fim, como força de desintegração com o Todo.
Por
trás da palavra “pecado” se esconde o drama da existência
humana. Esse drama mostra-se trágico, pois revela uma aparente situação
insolúvel que dilacera o coração e estraçalha a esperança humana.
A
experiência do pecado é de desvio de rota, de frustração da própria vocação,
experiência que nos desumaniza e nos faz viver uma existência vazia; com isso
passamos a viver exilados, desterrados, solitários...
Nossa
comunhão sagrada com a natureza, nossa fonte de vida e de significado, foi
substituída por um profundo desespero.
De fato, temos lavrado nosso próprio “inferno”.
Hoje constatamos as chagas ecológicas estampadas por
toda parte e os próprios seres humanos deformados pela miséria e exclusão. Não
levamos em consideração a vulnerabilidade
dos equilíbrios vitais dos ecossistemas. Nesse sentido crescem as situações em
que os seres vivos e o próprio ser humano encontram-se fragilizados e ameaçados
em sua sobrevivência e desenvolvimento.
A degradação do ambiente natural e social fragiliza e
ameaça o próprio ser humano.
Buracos na camada de ozônio, mutações climáticas provocadas pelo efeito estufa, enchentes diluvianas, secas prolongadas e devastadoras, desertificação de imensas áreas, erosão de solos férteis, desaparecimento de florestas devido ao desmatamento e às chuvas ácidas, rios assoreados e poluídos devido ao esgoto doméstico e aos detritos industriais, ar irrespirável pela presença de monóxido de carbono e outros gases venenosos, poluição sonora e visual das grandes cidades, crescimento e acúmulo de lixo urbano e industrial, esgotamento das fontes de energia não renováveis e dos lençóis freáticos de água, extinção continuada e crescente de espécies vegetais e animais, pondo em risco a biodiversidade e o equilíbrio dos ecossistemas são pecados do nosso dia-a-dia...
O
drama do ser humano é perder a memória de que é parte do todo: seu instinto de posse e domínio o leva a
romper a relação cordial com todas as criaturas, caindo num devastador
vazio existencial. A “centração em si mesmo”, sem levar em conta a rede de relações
que o envolve, provoca a quebra da “re-ligação” com tudo e com
todos. Este é o veneno que corrói o ser humano por dentro: petrificação de sua
interioridade, a perda do gosto pela verdade, pelo belo e pelo bem, o extravio
da ternura e da transcendência, a atrofia da comunhão com o todo cósmico...
Diante da Misericórdia
reconstrutora de Deus, devemos tomar consciência de que o ser humano está
procedendo de maneira destrutiva contra a natureza e contra si mesmo,
produzindo um verdadeiro colapso ecológico e humano. Há uma crise ecológica
que se alastra rapidamente, corroendo o equilíbrio vital que sustenta a Criação
toda.
A natureza está sendo “desnaturada”
e o ser humano “desumanizado”. Esta crise aponta para um ser
humano doente e a doença consiste justamente na separação entre o ser humano e
a natureza, no esquecimento de seu parentesco e solidariedade.
A crise ecológica é a própria crise do ser humano. Nossa “oikós” (casa) está em ruínas, devido à maneira como a habitamos. Arrancamos pedaços dela para satisfazer nossos interesses individuais e não nos damos conta que estamos destruindo nosso próprio habitat. “O ser humano transformou o Éden num matadouro e o Paraíso ocupado num paraíso perdido” (E. Wilson)
Em termos inacianos, podemos qualificar tudo isso de
desolação
comunitária: o lugar pós-moderno do inferno. Conquistamos
demais e cuidamos de menos. A ameaça provém da atividade humana altamente
depredadora da natureza.
No entanto, a experiência
cristã afirma: o ser humano é resgatável. Ele não está condenado
definitivamente à condição de pecador; ao
contemplar o universo desolado e devastado, a misericórdia de Deus faz
brotar do seu interior uma “exclamação
de admiração com intenso afeto”
(EE. 60).
Na
oração, considero a fidelidade com que o sol ilumina a terra para que a vida se
desenvolva e se multiplique; a fidelidade com que a rotação do planeta nos traz
a noite e o repouso. Recordo como a água limpa, o ar e a boa alimentação me
sustentam cotidianamente; como a madeira das árvores me protegem dos rigores do
tempo, como as fibras das plantas e dos animais me servem de abrigo; recordo
como os micróbios produzem antibióticos para curar-me. Fico admirado e
assombrado diante da generosidade da natureza que me proporciona todas as
coisas boas em abundância.
Assim
também, o amor, os cuidados e os sacrifícios de muitas pessoas e criaturas
fazem minha vida mais fácil e enchem-na de alegria.
Louvo a misericórdia da Trindade que me re-cria a cada momento e revela Seu rosto nas criaturas.
Podemos parafrasear o nº. 60 dos EE, dizendo: “Quando contemplo a maravilhosa harmonia da criação, fico admirado que ela não tenha se voltado contra mim, considerando-me uma nódoa no conjunto de sua beleza. Quando me fecho em mim mesmo, a terra continua me sustentando e o sol se nega a me queimar como a um plástico. Quando expresso violência, as flores me oferecem sua fragrância. Quando eu me afasto de Deus e dos outros, o ar continua entrando em meus pulmões e a luz ilumina meus olhos... Apesar de estar totalmente fora de sintonia com tanta beleza, a natureza inteira está sempre disposta a me perdoar, a me reconquistar e a me embelezar. Do meu coração brota uma exclamação de admiração com intenso afeto”.
Textos bíblicos: Os 2,9-10.16-25; Rom 1,18-32; Is. 24; Ef 6,10-13
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