Programa "Tempo da Criação" - Roteiro 1 (Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj - Centro de Espiritualidade Inaciana)
“Tudo está relacionado, e todos nós, seres humanos, caminhamos juntos como irmãos e irmãs numa peregrinação maravilhosa, entrelaçados pelo amor que Deus tem a cada uma das suas criaturas e que nos une também, com terna afeição, ao irmão sol, à irmã lua, ao irmão rio e à mãe terra” (Laudato Si’, n. 92).
O
núcleo da experiência bíblica é a tomada de consciência do Amor divino presente
e atuante no mundo. Este mistério primordial da relação de Deus com a Criação
constitui o centro mesmo da Revelação. A Criação aparece então como um grande gesto de Amor e todas as expressões de
vida tornam-se a história da fidelidade desse Amor gratuito. A Criação é obra do Amor exagerado
de Deus.
E foi do transbordamento do Amor divino
que brotou a vida, pois o Amor é sempre
criativo, original: ele cria e re-cria continuamente e desencadeia um movimento
expansivo em direção à plenitude.
E o Amor de Deus é irradiante e expansivo; por isso, tudo está habitado e perpassado por esse Amor. Tudo está inter-ligado, conectado e enredado pelo Amor. É o Amor que nos faz sentir a inter-dependência, pois ele mantém inter-conectados os fios da vida. Tudo é dom do Amor; o Amor está presente em tudo; ele continua trabalhando e renovando tudo, e em tudo encontramos vestígios dele.
Assim, um universo que é fecundado pelo Amor de Deus é um universo abençoado, salvo e seguro. O amor é a força maior existente na Criação, nos seres vivos e nos humanos. Porque o amor é uma força de atração, de união e de transformação. O amor é a expressão mais alta da vida que sempre irradia e pede cuidado, porque sem cuidado ela definha, adoece e morre.
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O que é que nos une? O que é que nos põe em relação uns com os outros?
É a “comunidade universal de vida”, isto é, tudo o que existe, tudo o que vive e que tem sentido pelo fato de estar em relação, em comunhão, desde o mais ínfimo ser ao mais elevado. Pertencemos a uma comunidade cósmica de vida tal como foi criada e sustentada por Deus.
Há uma interação entre nós, seres humanos, e a natureza. Nosso corpo e nosso cérebro são compostos das mesmas partículas que tecem o brilho das galáxias que ardem nas profundezas siderais. Impossível estabelecer uma nítida separação entre o ser humano e o universo. Somos quem somos somente na relação e por nossa relação com todas as criaturas e com o próprio planeta. Os acontecimentos da evolução estão inter-relacionados.
É um desafio, para a experiência de oração, assumir que o mundo é um santuário que deve ser respeitado e cuidado, que é a morada de tudo, que foi a morada do Filho de Deus, e que continuará sendo a morada da Humanidade e da Criação.
A
fé na Criação diz que no princípio do processo da evolução do cosmos há um amor
criador. Os textos ligados à Criação falam de Deus como Pai, mas também como Mãe;
devemos integrar, nesta visão de Deus criador, a dimensão feminina da Mãe
Divina que sofre dores de parto e gera o Universo como ato de amor. Todo o
Universo é um suspiro do amor misericordioso.
No
poema da Criação (Gen 1) o verbo usado para “criar” (“qaná”) pode
ser traduzido por gerar; a criação é uma espécie de parto divino. Deus
diminui a si mesmo para que o Universo possa nascer.
A
Palavra criadora e amorosa de Deus gera e sustenta toda a Criação. Isso
significa que a ação criativa de Deus não diz respeito apenas à origem do
mundo, mas à uma relação de aliança com esse Universo hoje. Não foi uma vez que
Deus criou, mas continua permanentemente a “gerar”, a “dar à luz” tudo o que existe.
Acreditar na Criação é ver por trás de cada ser do Universo o amor de
Deus nele presente e atuante.
Para a Bíblia, a natureza é sagrada, porém não é divina. É de Deus e manifesta Deus. Podemos sempre encontrar Deus no contato com a natureza, mas ela é criatura e sacramento, não a divindade em si mesma; a natureza também é mãe geradora. Conforme o Gênesis, Deus dá à terra e ao mar capacidade para gerar vegetais, animais e peixes, segundo a sua espécie. A criação não é só criada. É co-criadora, participa do ato criador de Deus. Por participação, é também divina. A Bíblia insiste que é criação de Deus para salientar que toda ela depende de um amor que a ordena. Esse amor é que a tornará ecológica, isto é, casa comum para todos os seres vivos.
A
Criação não se completa com a chegada do ser humano, embora a criação do
homem e da mulher ocupe o centro do segundo relato do Gênesis (Gen. 2). Deus
cria a humanidade da argila da terra, indicando que a natureza do ser humano é
a mesma da terra. O ser humano tem uma relação visceral com a terra (em
hebraico: “adamá”), de onde veio e para onde volta. E o
sentido de tudo é a vida.
Deus não criou o ser humano para ser senhor absoluto da
criação, mas para “cultivar e guardar a criação” (Gen 2,15) com carinho e ser
para com as outras criaturas como Deus é: amor
e ternura.
A visão bíblica sobre a criação revela que existe uma pertença mútua, um parentesco cósmico, uma irmandade universal entre todos os seres. Fora de Deus, tudo é criatura. Todos os seres da terra são criaturas de Deus. Todos tem impresso em seu ser mais profundo a marca do seu Criador, uma dignidade própria e maravilhosa. Por isso o Universo é sagrado e é lugar de contemplação e encontro íntimo com o Criador. O Universo é o teatro da glória de Deus, isto é, da manifestação da presença divina.
Por
isso, no primeiro relato da criação, o cume está na instituição do “sétimo
dia”, o shabat, o descanso divino ou, em termos mais precisos, a
plenitude da relação gratuita e amorosa do Divino com o Universo.
O termo “shabat” significa descanso e, ao mesmo tempo, plenitude, realização profunda. Isso significa que a realização mais profunda das pessoas e da natureza está na gratuidade, não no seu aspecto utilitário. O sentido da celebração do sábado é novamente se conceber a si mesmo, e à criação, como parceiros da aliança de Deus. O sábado é completude da criação: o repouso, a festa, o coroamento da criação. O sábado faz o casamento entre Deus e a criação. A instituição do sábado é um dos elementos mais ecológicos de toda a Bíblia. “O ano sabático é uma política ambiental de Deus com suas criaturas e com a terra” (J. Moltmann).
A
Aliança com Deus é ligada à relação com a terra. Nessa visão de aliança,
a Bíblia destaca que a criação tem uma bondade estrutural: “Deus
viu tudo o que tinha criado e viu que tudo era muito bom”
(Gen. 1,31). Em toda a Bíblia, a terra aparece sempre
como aliada do ser humano; ela nos ensina a viver com a água, com a terra e com todos os seres do
Universo uma relação de aliança, não de dominação arbitrária e exploradora. Os
profetas do Primeiro Testamento insistiram em que quando o povo guarda a aliança
com Deus e respeita a terra, esta fica fértil e generosa. Quando as pessoas
rompem a aliança com Deus e se afastam d’Ele, a terra fica estéril.
Uma leitura
deformada do livro do Gênesis deu margem a uma ruptura de harmonia com todos os
seres da terra. “Sede fecundos e
multiplicai-vos, enchei a terra e subjugai-a! Dominai sobre os peixes do mar,
as aves do céu e todos os animais que se movem pelo chão” (Gen. 1,28).
O termo “subjugar”
(“kabas”), na maior parte dos textos bíblicos é usado no sentido de “amparar”,
“proteger”. Da mesma forma, o verbo hebraico usado para “dominar” (“radah”),
é um termo usado para expressar o caminhar do pastor com o seu rebanho,
conduzindo-o às pastagens, protegendo-o contra o ataque dos animais selvagens. “Dominar”,
portanto, vem do latim “dominus”, que significa “senhor”.
Dominar significa exercer o senhorio sobre as demais criaturas, e este
exercício do senhorio deve ser exercido à maneira do “senhor”, que é o
próprio Deus. A narrativa da Criação nos mostra como Deus exerce o senhorio
em relação à Criação: ele a cria, ordena o seu crescimento e a sua evolução,
garante a sua continuidade, cuida dela e a abençoa.
Assim, o exercício do senhorio, ou a dominação, por parte do ser humano, deve significar respeito à ação criativa divina, contribuir com o crescimento e a evolução da natureza em todas as suas dimensões, cuidado com o meio ambiente e fazer dele uma fonte de bênçãos, ou seja, de comunhão com ela e, a partir dela, harmonia interior, comunhão com as outras pessoas e caminho de conhecimento e estreitamento de relações com o próprio Criador.
Textos bíblicos: Gen 1; Dan 3,51-90; Sl 136(135)
Na
oração:
Durante o tempo de oração deixe que seu sentimento de “irmandade universal” se expresse como gratidão, assombro, louvor, admiração...
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