segunda-feira, 31 de agosto de 2020

A Correção Fraterna Inspirada pelo Amor

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana), como sugestão para rezar o Evangelho do 23º  Domingo do Tempo Comum (Ano A).

“Se o teu irmão pecar contra ti, vai corrigi-lo, mas em particular, a sós contigo!” (Mt 18,15)

Como pessoas, somos seres sociais, comunitários. Todas as dimensões de nossa existência são vividas socialmente: família, povo, Igreja, comunidades, associações, partidos políticos, etc... Desde o nascimento até à morte, somos para e com os demais.

Saber se relacionar com os outros é uma necessidade fundamental da pessoa humana; esta, revela sua maturidade e se realiza humanamente quando se abre às relações interpessoais e descobre o prazer de conviver.

Jesus veio restabelecer um novo tipo de relações, e nos motiva a colocá-las em prática e estendê-las em todos os nossos encontros.

A vida de relação também ocupa o centro da comunidade cristã, que é pensada e vivida como mistério de comunhão e de missão, fundada na relação com Deus, comunhão de Pessoas e fundamento de nossa fraternidade. Tal fundamento dá vida e equilíbrio às realidades comunitárias, onde a atenção recíproca ajuda a superar a solidão, a comunicação favorece a corresponsabilidade, o perdão cicatriza as feridas e cada pessoa é motivada a sair de si para viver o compromisso com o outro.

Cremos no “Deus dos laços”, das conexões e das relações criativas. Deus, já desde o princípio, faz resplandecer seu rosto trinitário na expressão “façamos o ser humano à nossa imagem e semelhança”. Ele deixou sua pegada de amor recíproco e compartilhado em cada ser humano.

Por isso, para curar na raiz os males que provocam as falsas relações e as forças desagregadoras, temos de aprender do Deus trinitário o segredo de um amor oblativo, de um esvaziamento recíproco de nossos egos, a fim de que nossos laços fraternais também sejam alimentados por um amor expansivo.

O evangelho deste domingo é um texto significativamente comunitário. Mateus emprega, pela primeira vez aqui, o termo “irmão”, para fazer referência às pessoas que faziam parte da comunidade cristã, e mostra costumes que, seguramente, faziam parte da organização e do modo de vida das primeiras comunidades.

O relato reflete, a partir da memória destas comunidades ‘mateanas’, a importância que o cuidado das relações interpessoais tinha para aqueles(as) que professavam a fé em Jesus Cristo. Por isso, o evangelista põe na boca de Jesus o que conhecemos como correção fraterna, o perdão e a oração em comum.

O ponto central do relato (a correção fraterna) é “ganhar” o irmão. Jesus buscou salvar sempre o que estava perdido. A finalidade de sua vida não foi a de condenar ou castigar, mas “ganhar” o irmão, encontrar a ovelha perdida, acolher o filho perdido, receber no Reino o bom ladrão.

Isto nos recorda a necessidade do diálogo e da compaixão em nossas relações humanas. Relações que são, em definitiva, o eixo principal de nossa vida comunitária e eclesial. De nada servem as reuniões, celebrações ou projetos que realizamos se não cuidamos, concretamente, da relação com os outros, com as irmãs e irmãos que o Senhor nos presenteou como companheiros(as) de caminho.

Jesus, com suas palavras, mostra mais uma vez compreensão e firmeza, sensatez e liberdade. A correção fraterna, em qualquer grupo, se torna difícil. Talvez seja uma das atitudes que mais nos custa viver com maturidade. Mas, a correção se torna simples quando brota do carinho e da humildade, quando está permeada pelo amor e pela misericórdia. Afinal, somos humanos e todos cometemos equívocos em algum momento da vida. Esta correção busca, a partir do coração, não humilhar, mas sustentar o(a) irmão(a) nas dificuldades.

E isto é assim porque lhe mostra o mal que fez para que possa crescer e ser melhor pessoa.

A “correção fraterna” é gesto humilde que não humilha, porque é discreto e silencioso. A correção fraterna “não faz ruído”; por isso Jesus convida a corrigir a sós com o ofensor e só em último caso, recorrer à comunidade.

Corrigir com amor não significa pôr o(a) outro(a) de joelhos para que reconheça as suas faltas; a correção nasce de um coração “educado” pela Misericórdia divina e se manifesta externamente com uma atitude mansa e condescendente. Esse Amor é uma força poderosa, não se rende diante do mal, porque é sempre capaz de redescobrir o bem ou de salvar a intenção do outro, de ativar novamente nele a esperança...

A correção fraterna é mais um estilo de vida que um ato ligado a uma transgressão. É um modo de pôr-se diante do outro e de sua fraqueza, mas que não se realiza exclusivamente depois da queda; antes, pode às vezes impedir essa queda porque é um estilo de bondade, compreensão, magnanimidade, estilo de quem não presta atenção ao que o outro merece nem se escandaliza com sua miséria. "Devemos corrigir como pecadores(as)”,  não como “justos(as)”.

O cristianismo é tão revolucionário que exige do ser humano não apenas a grandeza de compreender e desculpar o ofensor, mas a capacidade de amá-lo.

Corrigir é ter esperança naquele que ofende, acreditar em sua humanidade, oculta sob a sua fragilidade.

O ser humano é muito mais que um ato falho ou uma decisão equivocada. É reconhecer sua liberdade de ser, de abrir uma nova possibilidade para sua vida e de reiniciar-se a si mesmo.

A pessoa misericordiosa salva e redime só enquanto ama: quer o bem do(a) outro(a) e se entristece com seu mal, sente o dever de fazer alguma coisa por ele(a). Trata-se da motivação mais nobre e verdadeira de sentir-se responsável pelo(a) outro(a).

Sua correção é fundamentalmente uma mensagem de estima e confiança no(a) outro(a), crer na sua amabilidade. Quem corrige está convencido de que o(a) irmão(ã) é melhor que aquilo que aparenta ser. Por isso, a correção é aquela energia escondida nas palavras de Jesus:

           Vai e não peques mais”.  Força que realiza aquilo que diz.

No momento da correção fraterna, que é um momento de parto e de libertação, dá-se ao(à) outro(a) o direito de “ser um outro”, não o(a) aprisionando numa única possibilidade de ação e de decisão errada. Tal correção é muito mais uma atitude de vida que pede um olhar mais amplo sobre o(a) outro(a), contemplá-lo (a) a partir de outra perspectiva. É enxergar no(a) outro(a) não o mal que fez, mas sua verdadeira identidade de filho(a) de Deus. Correção expansiva, que abre futuro; faz emergir outros recursos latentes na pessoa; é impulso de vida, pois destrava e coloca a pessoa em movimento, impulsionando-a a ir além de si mesma.

Na realidade, a correção fraterna deve fazer parte de nossa vida cotidiana, das relações familiares, de amizade, relações comunitárias... Ela não se restringe a um ato pontual mas deve se tornar um “modo de viver” no qual a outra pessoa é mais importante para nós que os atos equivocados que realiza. Por isso, buscamos seu bem, seu crescimento, seu desenvolvimento como pessoa, a partir do amor verdadeiro.

Bem vivida, a correção é das experiências mais enriquecedoras para ambas pessoas, porque o desafio não é só para aquele(a) que deve acolher a correção, mas também para aquele(a) que a realiza, pois, para este(a) implica maturidade, amor, bondade, liberdade e espírito de discernimento. Igualmente, este(a) deve ter consciência de que todos são “santos(as) e pecadores(as)” e, portanto, todos necessitam de pessoas amigas que as façam ver, com maior claridade, se desviaram do caminho por alguma causa. Como costuma acontecer em tudo o que é humano, quem melhor sabe propor a correção fraterna é quem já a experimentou em sua própria pele e saboreou o bem que isso traz.

Podemos concluir afirmando: fazem parte da comunidade dos(das) seguidores(as) de Jesus, aqueles(as) que perdoam e se deixam perdoar, aqueles(as) que acolhem a mútua correção fraterna. Mas, aqueles(as) que negam o perdão (dar e receber), acabam se afastando da mesma comunidade.

Não é a comunidade em si que exclui o “irmão que pecou”, mas é este que se auto-exclui, porque não é capaz de entrar no fluxo do perdão. Aqui aparece a grande novidade: a comunidade cristã é capaz de regular-se e criar comunhão a partir da autoridade do perdão do evangelho. O centro é o perdão, sempre oferecido, acima da lei, como graça fundante.

Texto bíblico: Mt 18,15-20

Na oração:

- Olhar cada uma das pessoas com quem convive. Dar-se conta daquilo que sente para com cada uma delas, como as trata, como as acolhe...

- Contemplar o outro respeitando-o em seu modo de ser, de agir, de pensar, de falar, ajudando-o a ser mais humano no seu modo de ser, de pensar, de viver...

- Observar e descobrir seus valores, suas riquezas, sua originalidade, sua profundidade; lentamente, mas com um olhar sereno e profundo... tentar descobrir “algo mais” presente em cada pessoa com quem convive (família, trabalho, comunidade);  vê-la com os olhos do coração: imagem de Deus, amada por Deus,  templo do Espírito, presença de Deus no mais profundo de seu ser.

CRIAÇÃO: o amor fecunda o universo

Programa "Tempo da Criação" - Roteiro 1 (Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj - Centro de Espiritualidade Inaciana)

Tudo está relacionado, e todos nós, seres humanos, caminhamos juntos como irmãos e irmãs numa peregrinação maravilhosa, entrelaçados pelo amor que Deus tem a cada uma das suas criaturas e que nos une também, com terna afeição, ao irmão sol, à irmã lua, ao irmão rio e à mãe terra (Laudato Si’, n. 92). 

O núcleo da experiência bíblica é a tomada de consciência do Amor divino presente e atuante no mundo. Este mistério primordial da relação de Deus com a Criação constitui o centro mesmo da Revelação. A Criação aparece então como um grande gesto de Amor e todas as expressões de vida tornam-se a história da fidelidade desse Amor gratuito. A Criação é obra do Amor exagerado de Deus.

E foi do transbordamento do Amor divino que brotou a vida, pois o Amor é sempre criativo, original: ele cria e re-cria continuamente e desencadeia um movimento expansivo em direção à plenitude.

E o Amor de Deus é irradiante e expansivo; por isso, tudo está habitado e perpassado por esse Amor. Tudo está inter-ligado, conectado e enredado pelo Amor. É o Amor que nos faz sentir a inter-dependência, pois ele mantém inter-conectados os fios da vida. Tudo é dom do Amor; o Amor está presente em tudo; ele continua trabalhando e renovando tudo, e em tudo encontramos vestígios dele.

Assim, um universo que é fecundado pelo Amor de Deus é um universo abençoado, salvo e seguro. O amor é a força maior existente na Criação, nos seres vivos e nos humanos. Porque o amor é uma força de atração, de união e de transformação. O amor é a expressão mais alta da vida que sempre irradia e pede cuidado, porque sem cuidado ela definha, adoece e morre.

- O que é que nos une? O que é que nos põe em relação uns com os outros?

É a “comunidade universal de vida”, isto é, tudo o que existe, tudo o que vive e que tem sentido pelo fato de estar em relação, em comunhão, desde o mais ínfimo ser ao mais elevado. Pertencemos a uma comunidade cósmica de vida tal como foi criada e sustentada por Deus.

Há uma interação entre nós, seres humanos, e a natureza. Nosso corpo e nosso cérebro são compostos das mesmas partículas que tecem o brilho das galáxias que ardem nas profundezas siderais. Impossível estabelecer uma nítida separação entre o ser humano e o universo. Somos quem somos somente na relação e por nossa relação com todas as criaturas e com o próprio planeta.  Os acontecimentos da evolução estão inter-relacionados.

É um desafio, para a experiência de oração, assumir que o mundo é um santuário que deve ser respeitado e cuidado, que é a morada de tudo, que foi a morada do Filho de Deus, e que continuará sendo a morada da Humanidade e da Criação.

A fé na Criação diz que no princípio do processo da evolução do cosmos há um amor criador. Os textos ligados à Criação falam de Deus como Pai, mas também como Mãe; devemos integrar, nesta visão de Deus criador, a dimensão feminina da Mãe Divina que sofre dores de parto e gera o Universo como ato de amor. Todo o Universo é um suspiro do amor misericordioso.

No poema da Criação (Gen 1) o verbo usado para “criar” (“qaná”) pode ser traduzido por gerar; a criação é uma espécie de parto divino. Deus diminui a si mesmo para que o Universo possa nascer.

A Palavra criadora e amorosa de Deus gera e sustenta toda a Criação. Isso significa que a ação criativa de Deus não diz respeito apenas à origem do mundo, mas à uma relação de aliança com esse Universo hoje. Não foi uma vez que Deus criou, mas continua permanentemente a “gerar”, a “dar à luz” tudo o que existe. Acreditar na Criação é ver por trás de cada ser do Universo o amor de Deus nele presente e atuante.

Para a Bíblia, a natureza é sagrada, porém não é divina. É de Deus e manifesta Deus. Podemos sempre encontrar Deus no contato com a natureza, mas ela é criatura e sacramento, não a divindade em si mesma; a natureza também é mãe geradora. Conforme o Gênesis, Deus dá à terra e ao mar capacidade para gerar vegetais, animais e peixes, segundo a sua espécie. A criação não é só criada. É co-criadora, participa do ato criador de Deus. Por participação, é também divina. A Bíblia insiste que é criação de Deus para salientar que toda ela depende de um amor que a ordena. Esse amor é que a tornará ecológica, isto é, casa comum para todos os seres vivos.

A Criação não se completa com a chegada do ser humano, embora a criação do homem e da mulher ocupe o centro do segundo relato do Gênesis (Gen. 2). Deus cria a humanidade da argila da terra, indicando que a natureza do ser humano é a mesma da terra. O ser humano tem uma relação visceral com a terra (em hebraico: “adamá”), de onde veio e para onde volta. E o sentido de tudo é a vida.

Deus não criou o ser humano para ser senhor absoluto da criação, mas para “cultivar e guardar a criação” (Gen 2,15) com carinho e ser para com as outras criaturas como Deus é: amor e ternura.

A visão bíblica sobre a criação revela que existe uma pertença mútua, um parentesco cósmico, uma irmandade universal entre todos os seres. Fora de Deus, tudo é criatura. Todos os seres da terra são criaturas de Deus. Todos tem impresso em seu ser mais profundo a marca do seu Criador, uma dignidade própria e maravilhosa. Por isso o Universo é sagrado e é lugar de contemplação e encontro íntimo com o Criador. O Universo é o teatro da glória de Deus, isto é, da manifestação da presença divina.

Por isso, no primeiro relato da criação, o cume está na instituição do “sétimo dia”, o shabat, o descanso divino ou, em termos mais precisos, a plenitude da relação gratuita e amorosa do Divino com o Universo.

O termo “shabat” significa descanso e, ao mesmo tempo, plenitude, realização profunda. Isso significa que a realização mais profunda das pessoas e da natureza está na gratuidade, não no seu aspecto utilitário. O sentido da celebração do sábado é novamente se conceber a si mesmo, e à criação, como parceiros da aliança de Deus. O sábado é completude da criação: o repouso, a festa, o coroamento da criação. O sábado faz o casamento entre Deus e a criação. A instituição do sábado é um dos elementos mais ecológicos de toda a Bíblia. “O ano sabático é uma política ambiental de Deus com suas criaturas e com a terra” (J. Moltmann).

A Aliança com Deus é ligada à relação com a terra. Nessa visão de aliança, a Bíblia destaca que a criação tem uma bondade estrutural: “Deus viu tudo o que tinha criado e viu que tudo era muito bom” (Gen. 1,31). Em toda a Bíblia, a terra aparece sempre como aliada do ser humano; ela nos ensina a viver com a água, com a terra e com todos os seres do Universo uma relação de aliança, não de dominação arbitrária e exploradora. Os profetas do Primeiro Testamento insistiram em que quando o povo guarda a aliança com Deus e respeita a terra, esta fica fértil e generosa. Quando as pessoas rompem a aliança com Deus e se afastam d’Ele, a terra fica estéril.

Uma leitura deformada do livro do Gênesis deu margem a uma ruptura de harmonia com todos os seres da terra. “Sede fecundos e multiplicai-vos, enchei a terra e subjugai-a! Dominai sobre os peixes do mar, as aves do céu e todos os animais que se movem pelo chão” (Gen. 1,28).

O termo “subjugar” (“kabas”), na maior parte dos textos bíblicos é usado no sentido de “amparar”, “proteger”. Da mesma forma, o verbo hebraico usado para “dominar” (“radah”), é um termo usado para expressar o caminhar do pastor com o seu rebanho, conduzindo-o às pastagens, protegendo-o contra o ataque dos animais selvagens. “Dominar”, portanto, vem do latim “dominus”, que significa “senhor”.

Dominar significa exercer o senhorio sobre as demais criaturas, e este exercício do senhorio deve ser exercido à maneira do “senhor”, que é o próprio Deus. A narrativa da Criação nos mostra como Deus exerce o senhorio em relação à Criação: ele a cria, ordena o seu crescimento e a sua evolução, garante a sua continuidade, cuida dela e a abençoa.

Assim, o exercício do senhorio, ou a dominação, por parte do ser humano, deve significar respeito à ação criativa divina, contribuir com o crescimento e a evolução da natureza em todas as suas dimensões, cuidado com o meio ambiente e fazer dele uma fonte de bênçãos, ou seja, de comunhão com ela e, a partir dela, harmonia interior, comunhão com as outras pessoas e caminho de conhecimento e estreitamento de relações com o próprio Criador.

Textos bíblicos: Gen 1; Dan 3,51-90; Sl 136(135)

Na oração:

Durante o tempo de oração deixe que seu sentimento de “irmandade universal” se expresse como gratidão, assombro, louvor, admiração...

Programa "Tempo da Criação"


De 01 de setembro a 04 de outubro, acontece o período de oração e ação em favor da nossa Casa Comum. Trata-se do programa "Tempo da Criação", com o lema: "Jubileu da Terra: novos ritmos, nova esperança".

Incentivado pelo Papa Francisco e pelo Conselho Mundial das Igrejas, milhares de cristãos e de instituições religiosas de diferentes denominações, estarão envolvidos nesta celebração global, ajudando a inspirar a todos para atuarem em favor do cuidado para com a Criação, que está sendo continuamente destruída, sobretudo em nosso país.

Neste "Tempo da Criação" e em meio à crise que sacode nosso mundo, devemos nos despertar diante da urgente necessidade de curar nossas relações com a Criação e as relações entre nós, muitas vezes carregadas de ódios, intolerâncias, violências... Trata-se da "ecologia integral": todas as expressões de vida estão inter-conectadas, são interdependentes; por isso, devem ser cuidadas. Quem ama, cuida.

Para mais informações, podem entrar nos sites: - movimento católico global pelo clima - www.seasonofcreation.org

Por isso, nos próximos cinco domingos, além da reflexão dominical, será disponibilizado mais um roteiro de oração, inspirado na "Laudato sí", para ajudar a entrar em sintonia com este "Tempo da Criação", tanto no nível pessoal como comunitário.

Matéria sobre o Programa no site de notícias do Vaticano: “Tempo da Criação”: um mês de oração e ação ecumênica

sábado, 29 de agosto de 2020

Na Vida de Jesus, a Cruz Revela seu Sentido

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do 22º  Domingo do Tempo Comum (Ano A).

“O que poderá alguém dar em troca de sua vida?” (Mt 16,26) 

O evangelho deste domingo é continuação daquele do domingo passado; também hoje, Jesus e seus discípulos se encontram em Cesareia de Filipe, fora do território da Palestina. O que Mateus relata da boca de Jesus, nem sequer é aceitável para os seus seguidores. Jesus tinha acabado de felicitar a Pedro por expressar pensamentos divinos. Agora o critica duramente por pensar como os homens. A diferença é enorme e só umas linhas de distância, no mesmo evangelho.

Como Pedro, também nós, seguidores(as) de Jesus, ficamos escandalizados com a cruz. Nenhum de nós teria escolhido para Jesus esse caminho. Onde fica a imagem do Messias vitorioso, Senhor ou Filho de Deus?

Apesar das palavras de Pedro, no domingo passado, sua atitude diante do anúncio da paixão e morte de Jesus demonstra que, nem ele e nem os outros discípulos, entenderam o que significava a pessoa e a missão do Mestre de Nazaré. Queriam segui-lo, mas sem as consequências do seguimento.

Para compreender Jesus, é preciso deixar de pensar como os homens e começar a pensar como Deus; é deixar de ajustar-nos a este mundo e entrar em sintonia com o modo original de ser e de viver do próprio Jesus; é transformar-nos pela renovação da mente e abertura do coração.

Para aceitar a mensagem de Jesus, temos de mudar radicalmente nossa imagem de Deus.

Quê significado tem para nós, hoje, a morte de Jesus na Cruz? Não é fácil entrar na dinâmica da Cruz. Mas, por outra parte, é impossível compreender a mensagem de Jesus sem compreender a Cruz. Ela é expressão de uma vida doada; por isso se converteu no “sinal chave de nosso seguimento”.

A vida é constantemente chamada a ser Páscoa. Porque, só na vitória da vida entregue, ela ganha sentido, avança, como uma torrente que rega terras secas, ávidas de água, como um fogo que, na noite mais escura, traz uma luz que permite vislumbrar a vida oculta.

A vida é movimento e, portanto, energia expansiva. Podemos consumi-la em benefício do ego (falso eu) e então vem o fracasso. Podemos re-orientá-la em benefício dos outros e da causa do Reino; e então, consumá-la, dando-lhe plenitude. Pois, só uma vida consumada faz fecunda a morte.

Alguém já teve a ousadia de afirmar que a morte é mais universal que a vida; todos morrem, mas nem todos sabem viver, porque incapazes de re-inventar a vida no seu cotidiano. Por isso, viver é uma arte; é necessário re-criar a vida no dia-a-dia, carregá-la de sentido.

A morte do falso eu é a condição para que a verdadeira vida se libere.

O “depois da vida” é um grande encontro onde seremos perguntados: “o quanto você viveu sua vida?”

De fato, aqueles que mais desfrutam da vida são os que deixam a segurança do conhecido e se dedicam apaixonadamente à missão de comunicar vida aos outros. Ter apego à própria vida é destruir-se; entregar a vida por amor não é frustrá-la, mas levá-la à sua completude. Aqui há uma inversão na lógica natural das coisas; ganha-se quando perde, vive-se quando morre, multiplica-se quando divide.

Estranhas atitudes estas que Jesus propõe, tão contrárias em uma cultura como a nossa que nos apresenta a apropriação e a acumulação como meta da existência. Ele, imperturbável, apresenta sua alternativa: perder, vender, dar, deixar, não armazenar, não reter avidamente, desapropriar-se, esvaziar-se, partilhar...

Perder-ganhar, morrer-viver, entregar-reter, doar-receber..., parecem dimensões ou realidades contraditórias, mas captar a profundidade da verdade contida nesta “contradição aparente” é descobrir o Evangelho.

“Morrer”, “perder”, “entregar”, “renunciar”... é este instante de ruptura, onde toda uma vida incubada, trabalhada no silêncio e no sofrimento, marcada de alegrias e tristezas, vitórias e fracassos, desponta luminosa para a vida eterna. Pois vida é um contínuo despedir-se e partir; ela nos desaloja de nossos “lugares estreitos” e nos faz caminhar em direção a novos horizontes.

A vida aumenta quando compartilha e se atrofia quando permanece no isolamento e na comodidade.

A morte do falso EU é a condição para que a verdadeira Vida se liberte. É preciso passar pela morte do que é terreno, caduco, transitório (aderências afetivas, apegos desordenados...) para deixar emergir a vida interior, a vida divina, a vida de Deus em nós.

O essencial não é encontrar um caminho para alcançar a imortalidade, mas aprender a “morrer em Cristo”.

Como Jesus encarou a Cruz? Ele não buscou a cruz pela cruz. Buscou a fidelidade à sua missão que consistia em evitar a proliferação de cruzes, para si mesmo e para os outros. Pregou e viveu o amor e revelou as condições necessárias para que esse amor se tornasse realidade nas relações entre as pessoas.

Jesus anunciou a boa nova da Vida e do Amor e se entregou por ela. Quem ama e serve não cria cruzes para os outros; é o egocentrismo e a maldade que geram cruzes.

A realidade, dividida e conflituosa, se fechou à proposta de Vida apresentada por Jesus, impondo-lhe cruzes em seu caminho e finalmente O levantou no madeiro da Cruz.

Nela mesma, a cruz é aquilo que limita a vida (as cruzes da vida), que nos faz sofrer e dificulta nosso caminhar, por causa da má vontade humana (carregar a cruz de cada dia); ela é a corporificação do ódio, da violência e da exclusão humana. Mas Jesus continuou amando, apesar do ódio; continuou investindo sua vida a serviço da vida, apesar da cultura de morte na qual se encontrava. Assumiu a cruz em sinal de fidelidade para com o Pai e para com os seres humanos. Por isso, na vida de Jesus a Cruz é salvífica.

Nesse sentido, a cruz de Jesus não é um “peso morto”; ela tem sentido porque é consequência de uma opção radical em favor do Reino. A Cruz não significa passividade e resignação; ela nasce de sua vida plena e transbordante; ela resume, concentra, radicaliza, condensa o significado de uma vida vivida por Jesus na fidelidade ao Pai. que quer que todos vivam intensamente.

“Renunciar a si mesmo” e “carregar a sua cruz”, é entrar em sintonia e comunhão com Jesus, assumindo, com seu mesmo espírito, os sofrimentos que se seguem a uma adesão concreta e responsável à sua pessoa e à sua causa. É este seguimento fiel que nos introduz na cruz genuína d’Aquele que foi fiel até o fim.

A partir desta atitude de seguimento precisamos entender esse “renunciar a si mesmo” que Jesus pede ao discípulo. “Renunciar a si mesmo” não significa mortificar-se, castigar-se a si mesmo e, menos ainda, anular-se ou autodestruir-se. Nunca se deve confundir a cruz com atuações masoquistas, nunca alimentadas por Jesus. “Renunciar a si mesmo” é descentrar-se, sair de seus próprios interesses, para fixar a existência na pessoa de Jesus, a quem deseja seguir. É libertar-se de si mesmo para aderir radicalmente a Ele.

A mortificação tem um lugar importante na vida de quem segue a Jesus. Não qualquer mortificação, mas aquela que vai libertando a pessoa de seu egocentrismo, de sua comodidade ou de sua covardia para seguir mais fielmente a Ele. Buscar sofrimento para “agradar a Deus” não tem sentido; é tortura inútil, que alimenta nosso “ego” e nos afunda numa espiritualidade doentia.

A cruz tem sentido quando é consequência de uma opção autêntica de vida em favor da vida: por exemplo, quando sofremos por levar adiante uma causa justa, por defender as pessoas que são vítimas das estruturas sociais, políticas e econômicas injustas, por assumir a radicalidade na vivência do amor, lutando contra toda expressão de ódio, preconceito, intolerância..., por evitar o mal e denunciar uma injustiça, etc. A cruz salva quando aponta para a vida.

Texto bíblico: Mt 16,21-27

Na oração:

 - “Fazer memória” de tantas mulheres e homens que se associaram à Cruz de Jesus, na solidariedade com os pobres, na fidelidade à vida evangélica, na descida aos porões das contradições sociais e políticas, às realidades inóspitas, aos terrenos contaminados e difíceis, às periferias insalubres, onde os excluídos deste mundo lutam por sobreviver. Ali se encontraram com o Crucificado, o “Justo e Santo”, identificado com os crucificados da história. 

- Recordar as cruzes que apareceram na sua vida por causa da fidelidade ao Evangelho.

sexta-feira, 21 de agosto de 2020

A Solidez em nossa Vida

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do 21º  Domingo do Tempo Comum (Ano A).

“Quem dizem os homens ser o Filho do Homem?” (Mt 16,13) 

Outra vez Jesus se retira com seus discípulos, agora para a região de Cesareia de Filipe. Vão tratar assuntos que ultrapassam a problemática estritamente judaica; por isso, Mateus situa a cena em outro território, fora do espaço onde prevalece uma concepção do Messias estritamente nacionalista, para dar a entender que Jesus está aberto a outros povos.

De fato, Jesus entrou em conflito com a religião judaica e suas instituições (sinagoga, templo de Jerusalém).

Ele não foi sacerdote, nem funcionário do Templo, nem ostentou cargo algum relacionado com a religião; não foi um mestre da Lei; Jesus foi um leigo. Fugiu de todo poder, e se preocupou especialmente em cuidar das pessoas mais pobres e marginalizadas. Não se preocupou em fundar estritamente uma religião.

Cercou-se de pessoas, mulheres e homens, dispostos a continuar seu caminho, anunciando a mensagem do Reino de Deus, proclamando as bem-aventuranças como projeto humanizador, denunciando as opressões e injustiças e tornando realidade a salvação do Deus Pai e Mãe.

Este grupo de homens e mulheres acompanha Jesus em todas as partes, fazendo com Ele vida itinerante; mas também encontramos um grupo mais amplo de pessoas que, vivendo em suas casas e continuando em suas tarefas, são, no entanto, discípulos(as) de Jesus, apoiando-o, recebendo-o, seguindo-o. Todos eles formam o “movimento de Jesus”.

No evangelho deste domingo é a primeira vez que encontramos o termo “Igreja” para determinar a nova comunidade dos(as) seguidores(as) de Jesus. Mateus utiliza a palavra que na tradução dos setenta se emprega para designar a assembleia (“eklesia”). Evidentemente, Jesus não “instituiu” nenhuma “estrutura eclesial” propriamente dita: uma doutrina, uma liturgia, um governo... Jesus pôs em marcha um movimento de vida, que, através de muitas circunstâncias e vicissitude históricas, desembocará em comunidades organizadas e, muito mais tarde, em uma Igreja centralizada.

Jesus começou atuando sozinho, mas logo reuniu um grupo de discípulos em torno a si. Assim fizeram os grandes mestres na história da humanidade: Buda, Confúcio, Sócrates...

Professar nossa adesão à pessoa de Jesus de Nazaré, é entrar no movimento de vida iniciado por Ele, em torno à sua pessoa e à sua mensagem que cura e liberta de toda escravidão e dominação.

Também nós nos sentimos e queremos ser discípulos(as) de Jesus. É o Reino de Deus que nos congrega, que reforça vínculos e nos faz comunidade.

Seu movimento nos impulsiona e queremos impulsioná-lo. Move-nos a alegria, muitas vezes oculta, da mesma boa notícia e a esperança difícil do Reino de Deus.

Somos Igreja de Jesus. Mas, como é a “Igreja” que Jesus quis? É, antes de tudo, comunidade de pessoas, homens e mulheres que vão amadurecendo no seguimento d’Ele. E é comunidade totalmente aberta ao mundo, casa onde todos encontram lugar de acolhida e comunhão; uma “igreja em saída”.

O que é radicalmente contrário ao Evangelho da fraternidade é o sectarismo, o fanatismo, o fechamento diante da realidade desafiante e a discriminação de toda e qualquer pessoa.

Também hoje, Jesus dirige a cada um de nós a mesma pregunta que um dia fez aos seus discípulos: “E vós, quem dizeis que eu sou?” Ele não nos pergunta para saber nossa resposta teológica sobre a identidade d’Ele, mas para que revisemos nossa relação com Ele. Que podemos lhe responder a partir de nossas comunidades? Somos seguidores(as) da pessoa de Jesus ou só seguidores(as) de uma determinada religião, doutrinas, normas, leis? Conhecemos cada vez melhor a Jesus, ou O fechamos em nossos velhos esquemas doutrinários de sempre? Somos comunidades vivas, interessadas em colocar Jesus no centro de nossas vidas e de nossas atividades, ou vivemos estancados na rotina e na mediocridade?

Diante da pergunta de Jesus – “E vós, quem dizeis que eu sou?” – o Evangelho deste domingo realça a resposta de Pedro e a missão que Jesus lhe confere. Pedro é instigado a entrar no fluxo do amor-serviço do Mestre; e isso não pode ser confundido com “transferência de poder”. Pior ainda é quando confundimos o “poder das chaves” com a “chave do poder”. Quem tem a chave tem o poder.

Nenhum exercício do poder é evangélico; muito menos o “poder religioso”. Não há nada mais contrário à mensagem de Jesus que o poder. Jesus não transfere “poder” a Pedro; reforça nele a liderança para o cuidado e o serviço aos outros. Nenhum ser humano é mais que outro, nem está acima do outro. “Não chameis a ninguém de pai, não chameis a ninguém chefe, não chameis a ninguém senhor, porque todos vós sois irmãos”. A única autoridade que Jesus admite é o serviço.

Jesus não exerceu poder porque o poder nunca é mediação para a libertação do ser humano (seja poder político, religioso, ou qualquer outra expressão de poder).

Jesus despoja-se do poder; Ele tem autoridade: “ensinava-lhes com autoridade e não como os escribas”. Sua autoridade é caminho para o serviço e a promoção da vida.

Por isso a autoridade de Jesus não tem nada a ver com o poder que domina ou a liderança que se impõe.

Jesus tem “autoridade” porque o “centro” está no outro; Ele veio para servir. Jesus tem autoridade porque ativa a autoria e a autonomia no outro; sua autoridade desperta o melhor que há em cada pessoa; ela não cria dependência e nem tira do outro a capacidade de dar direção à sua própria vida.

Quem tem “poder”, ao contrário, o centro está em si mesmo; por isso é que toda expressão de poder é violenta, exclui, impõe-se ao outro, decide por ele... O poder alimenta dependência e submissão.

O olhar profundo de Jesus levará Pedro também a se conectar com seu ser mais profundo (aquilo que é mais sólido), com sua realidade mais verdadeira, com os desejos de seu coração ainda não configurados pelo amor. Quando Jesus fixa o olhar em Simão, seus olhos descobrem no interior deste homem um nome escondido (Pedro), e ao pronunciá-lo, possibilita-lhe despertar essa vocação já inscrita no mais profundo de seu ser. Aqui começa para Pedro uma nova história, que já não será narrada por ele sozinho, mas em comunhão com Jesus, entre idas e vindas, fragilidades e fortalezas, tentativas no amor e fracassos...

Nas itinerâncias de Jesus, Pedro foi convidado a “fazer caminho com Ele”, começando pelo próprio interior; impactado pela ternura cuidadosa de Jesus em sua vida, Pedro irá sendo conduzido a descobrir-se, a ser cada vez mais consciente de si mesmo e adentrar-se por rotas novas de liberdade, de vida, de entrega...

Mateus faz um sugestivo jogo de palavras entre dois nomes gregos comuns: “petros” (pedra) e “petra” (rocha). “Petros” tem o significado de pedra comum, pedregulho, sem consistência; “petra”, por sua vez, significa rocha, pedra sólida sobre a qual se assenta um edifício. “Tu és petros e sobre esta petra...”

Aparece, então, a comparação-oposição entre a fragilidade e a pequenez da pedra frente à segurança e robustez da rocha. Pedro é “pedra” em sua fragilidade humana, mas é “rocha” em sua manifestação de fé. A rocha não é a pessoa de Pedro, mas a fé de Pedro. Sobre essa rocha-fé de Pedro Jesus deseja edificar sua comunidade de seguidores.

Nesse sentido, o Evangelho de hoje também nos ajuda a ler nossa vida. Ali afirma-se também a nossa identidade; e a nossa identidade se revela por aquilo que é sólido, consistente... no nosso interior, que não se desfaz com as adversidades do mundo no qual vivemos (crises, fracassos...).

Toda pessoa possui dentro de si uma profundidade que é seu mistério íntimo e pessoal. Sobre essa “rocha” construímos nossa maneira de seguir a Jesus.

 

Texto bíblico: Mt 16,13-20

Na oração:

Devemos aprender a olhar a vida e as pessoas como Jesus as olhava, ou seja, um olhar capaz de vislumbrar o mais humano e mais divino em cada um(a), um olhar que faz emergir a rocha consistente, sobre a qual construir um estilo de vida, à maneira de Jesus.

- Ao sentir-se olhado por Jesus, como Pedro, você é capaz de vislumbrar outros dons, recursos, capacidades... do seu próprio interior e que darão a solidez à sua própria vida? O que é “petra” no seu interior?

segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Assunção de Maria: plenitude do seu “ser visitante”

 Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho da festa da Assunção de Nossa Senhora.

“Maria ficou três meses com Isabel; depois voltou para casa” (Lc 1,56)

Descobrimos o sentido da Assunção de Maria não tanto contemplando o céu, mas a terra. Na terra não veneramos a tumba de Maria, nem celebramos funerais por ela, ou em sua memória. Embora possa parecer estranho, os santuários onde se venera a memória de Maria são, para nós, não lugares funerários, mas fontes de vida, espaços onde a sentimos vivente, mãe, mulher do serviço, cuidadora nossa.

Ascenção, Assunção são dois nomes que damos a esta experiência de presença transformadora. Em Jesus, e a partir de Jesus, Maria também “é assunta” e se faz presente junto a seus filhos e filhas. Sua bendita presença nos abençoa e nos enche de graça.

Maria “foi assumida por Deus” porque “desceu” ao mais profundo da vida, comprometendo-se e sendo presença solidária. Ela viveu a “assunção” em todos os momentos de sua vida, de maneira especial, quando se deslocou em direção aos outros.

Por isso, o Evangelho, indicado para a festa de hoje, nos fala da “presença visitante” de Maria.

Maria fecha a porta de sua pequena casa em Nazaré e inicia, apressada, o caminho para a montanha, onde vivia Isabel. O impulso do seu coração movia velozmente seus pés. Este relato nos mostra o que é “visitar”.

Maria “saiu em visita” porque, antes, foi “visitada” pela presença surpreendente de Deus. Ela entrou no fluxo do “Deus visitador”, prolongando e visibilizando as visitas divinas. Ela foi “assunta” porque, nas suas “visitas”, ela “subiu e desceu” em direção aos outros, numa atitude de serviço gratuito.

Maria foi visitar; podia não ter ido. Isabel, com mais idade e grávida, seguramente estava bem atendida. Mas, Maria foi... para estar, escutar, partilhar, ajudar...

Visitar implica mover-se, para perto ou para longe, sair, pôr-se em marcha; abandonar o espaço de conforto, adentrar-se na realidade do(a) outro(a), na expectativa de que este(a) outro(a) abra a porta de seu espaço e de sua vida, entrando em profunda sintonia com quem o(a) visita.

É uma ação pessoal, uma atitude aberta, um estar atentos aos detalhes da vida próxima, do entorno. Visitar não conta nas estatísticas. É uma ação muito silenciosa que não requer estruturas organizativas, nem contratuais. Visitar exige irremediavelmente investir tempo, gratuitamente; quem tem tempo hoje para presenteá-lo desinteressadamente?

A pessoa visitada tem também sua vida “expandida”, pois, receber o(a) outro(a) implica mudar a rotina do seu cotidiano, acolher a nova presença que vem, dedicar atenção e escuta...

Se re-lemos com atenção o relato de Lucas, encontraremos Isabel, a prima de Maria, como protótipo de uma vida “visitada”, de uma existência que poderia fechar-se na pequena felicidade de sua fecundidade surpreendente; no entanto, ela abriu passagem a uma voz que vinha mais além dela mesma. Isabel escutou aquela voz e soube reconhecer Maria como a nova Arca da Aliança que carregava a salvação dentro dela. E Lucas realça o detalhe de que “a criança pulou de alegria no ventre de Isabel”.

Vamos nos deixar conduzir por Maria e vamos com ela “de visita” à casa de Isabel, para recuperar o sentido do “visitar” e “ser visitado” no nosso contexto atual.

Deus visita a nós e visita através de nós, assim como Ele nos visita por meio dos outros. Há uma infinidade de anjos mensageiros, cruzando nossos espaços cotidianos, inspirando-nos, ajudando-nos, movendo nossas vidas a saírem de seus lugares fechados, a romper muros, a ultrapassar fronteiras... A intolerância, o medo do diferente, a suspeita, o preconceito... são a morte de toda possibilidade de viver a “cultura da visita”.

Uma característica de nossa sociedade é o individualismo, o fechamento narcisista que nos centra e nos concentra em nosso “ego” como lugar preferencial de atenção, dedicação, cuidado e investimento de quase todas as nossas energias disponíveis. Neste contexto social em que vivemos, cada vez mais fragmentado e individualizado, as relações vão se tornando líquidas, restando as manifestações muito superficiais, reduzidas, talvez, a um mero contato tecnológico através das redes sociais.

Temos a sensação de que, a partir de fora, tudo nos convida a viver auto-referenciados e surdos às vozes que nos vem do mais além de nós mesmos. Muitas forças externas a nós nos pressionam a reduzir nossa vida ao tamanho de um “bonsai”, a atrofiar os desejos até reduzi-los aos pequenos bens acessíveis e a conformar-nos com pequenas doses de prazer egoísta.

Mesmo numa vida fechada, também aí irrompem as “visitações”; Maria, a “visitante” e Isabel, a “visitada”, podem nos ensinar a reconhecer Aquele que nos visita e vem a nós escondido no humilde e insignificante.

Aquelas duas mulheres grávidas, Maria e Isabel, cheias e fé e grandes expectativas, envolvidas no silêncio da promessa de Deus, se encontram e no mesmo instante do abraço, a palavra se faz presente com a intensidade da compreensão, da acolhida, da alegria e da intimidade partilhada.

A visita começa a dar fruto desde o primeiro instante se há uma boa predisposição. A atitude de quem vai ao encontro e quem acolhe é elemento primordial.

Elas estavam felizes. Isabel gritou de júbilo e “a criança saltou de alegria em seu ventre”. E Maria proclamou, exultante, a oração de louvor e agradecimento ao Deus da Vida. “O Magnificat recolhe a prece da orante que se descobre, desde a humildade, fecundada por seu Senhor dentro da História da Salvação” (Mari Paz Lopes).

O Magnificat é o grande resumo da experiência de Maria; Magnificat não é um parêntese: supõe tudo o que Maria viveu. É impossível conhecê-la sem saborear demoradamente estas palavras, que são a tradução dos seus sentimentos íntimos diante da nobre missão de ser a mãe do Salvador.

No Magnificat, Maria canta a sua própria história. E isso nos desafia a fazer o mesmo. Ninguém vive uma vida espiritual fecunda enquanto não for capaz de construir a relação com Deus como um diálogo vivo entre um “eu” e um “Tu”. A oração de Maria não é feita de fórmulas. Ela expõe a sua vida naquilo que diz.

Através do Magnificat Maria vai ter a oportunidade de prolongar o seu “sim”, revelando que conhece bem as suas implicações profundas. No Magnificat, Maria sai de seu silêncio e explica o que significa o seu consentimento a Deus. E faz isso da forma mais simples e verdadeira, interpretando primeiro a sua própria experiência de fé e ancorando-se, depois, naquilo que a História da Salvação lhe ensina sobre a ação de Deus e sobre a missão do Povo de Deus neste mundo.

Maria permaneceu em casa de Isabel “três meses e voltou para sua casa”. Moveu-se, investiu seu tempo e podemos imaginar quê maravilhosos três meses passaram juntas, vendo como a vida crescia dentro delas, cuidando-se, rindo, partilhando.... Deixemo-nos inspirar por este “ícone da Visitação”.


Texto bíblicoLc 1,39-56

Na oração:

Depois de empapar-se do evangelho deste dia é preciso perguntar-se: “o que me inspira o ‘movimento’ de Maria visitando Isabel? E se realmente, o fato de visitar, tem um significado em minha vida.

- Diante da situação pandêmica, quê outras formas de visita poderiam ser ativadas? São tantas as pessoas que estão esperando uma visita, mesmo virtualmente. Há muitas carências de abraços e de afeto.

- Recorde aqui as obras de misericórdia: duas delas se referem ao fato de “visitar” – “enfermos e presos”.


quinta-feira, 6 de agosto de 2020

A Arte de Enfrentar Tempestades

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do 19º  Domingo do Tempo Comum (Ano A).

“A barca, já longe da terra, era agitada pelas ondas, pois o vento era contrário” (Mt 14,24) 

Poderíamos dizer que o relato da “travessia tormentosa” é uma síntese da história de nossas vidas. Seguramente as primeiras comunidades cristãs, como todos nós hoje, se identificaram facilmente com esse grupo de discípulos em meio a uma tormenta que sacode com força a barca em que estavam. Viver com Jesus ausente requer confiança absoluta, esperança firme e capacidade para descobri-Lo presente em sua aparente ausência. No envio que recebemos d’Ele para ir à outra margem é possível que nossa barca seja também sacudida pelos movimentos das ondas dos medos que nos fazem ver fantasmas, impedindo-nos reconhecer o Ressuscitado, caminhando ao nosso lado.

Todos compartilhamos, para além do tempo e do espaço no qual nos encontramos, a mesma bela e frágil natureza humana. Por isso, embora as circunstâncias que nos envolvem sejam diferentes, e certamente estas podem favorecer ou dificultar nosso seguimento de Jesus, reconhecemos que os verdadeiros obstáculos, para viver centrados n’Ele e comprometidos com seu Reino, não nos vem de fora, mas brotam de nosso próprio interior. E o maior deles é o medo.

Os medos acompanham nossa vida cotidiana. Quem se pergunta honestamente – o que eu temo? – reconhecerá, sem dúvida, uma pequena ou grande lista de medos que o habitam, travando o fluir de sua vida.

Quando o ser humano quebrou sua aliança com Deus no Paraíso, o medo foi sua reação imediata. “Ouvi teus passos no jardim; fiquei com medo, porque estava nu, e me escondi” (Gen. 3,10).

O medo se instalou em seu coração. E o ser humano continua a temer através dos desertos e cidades, de dia e de noite, no coração e na sociedade..., onde quer que esteja; ele vive sob um medo constante, sentido com maior ou menor intensidade, mas sempre presente.

Medo dos passos de Deus e de seus próprios passos; medo de estranhos e de amigos; medo do futuro; medo do diferente; medo de seu corpo e da sua afetividade; medo de decidir; medo de se comprometer; medo de romper as amarras do passado; medo do novo; medo de viver e de morrer, medo de si mesmo. Uma longa cadeia de medos, da primeira à última respiração, nesta terra de sombras.

Todos os medos estão inter-relacionados e, qualquer que seja seu objeto imediato, todos têm em comum o sentimento sombrio do perigo ameaçador.

Sabemos que o medo deixa as pessoas vulneráveis à manipulação. Não existe depósito de munição mais potencialmente explosivo do que os estoques de medo nas escuras profundezas de suas vidas.

As pessoas ficam tensas e projetam estas tensões na realidade circundante. Encaram os outros como inimigos, e as oportunidades como ameaças. O trabalho é competição, e a vida, um campo de batalha.

O medo quebra o ritmo biológico e ataca os tecidos do corpo; ele nasce na mente, mas sua influência é sentida nos nervos, no pulso, nos músculos e na respiração.

As pessoas temem os perigos que conhecem e mais ainda os que não conhecem, mas os vislumbram presentes em cada esquina. Um medo que pode ser nomeado perde o terror e a capacidade de ferir; no entanto, um medo sem nome, um fantasma sem rosto, escuro como uma sombra e rápido como uma tempestade aumenta o pavor e paralisa a ação. Medo sem nome que assombra e queima as energias que poderiam ser canalizadas para algo criativo.

O medo distorce a percepção da realidade; ele gera muitos fantasmas e pré-juízos que, como consequência, maximizam os fatores objetivos causantes do perigo.

Sendo uma emoção primária, o medo, com frequência, impede o discernimento e a busca da solução mais inteligente para os problemas; longe de resolvê-los, pode agravá-los a médio e longo prazo.

Quando o medo e a sensação de impotência impregnam nossa vida cotidiana, se aviva em nós a consciência permanente de “vulnerabilidade”. Não estamos preparados para acolher nossa fragilidade, nossa condição humana.

Enfim, o medo obscurece o sentido e a direção da vida, tira o brilho tão próprio do amor; ele nos acovarda e nos enterra na acomodação mesquinha.

É bom lembrar que o ser humano amadurece através do confronto entre desejo e medo. Não há medo sem um desejo escondido e não há desejo que não traga consigo um medo. O desejo e o medo estão ligados. Temos medo do que desejamos e desejamos o que nos faz medo.

DESEJO e MEDO: existe, na natureza humana, a tendência natural de ultrapassar o imediato, de caminhar para a “outra margem”... para arriscar novos horizontes; necessidade de afrontar o perigo, de tentar, de se aventurar...

Mas existe também a tendência oposta de se poupar e de se acautelar, a necessidade inata de evitar o perigo, de se afastar dos obstáculos, de fugir das tempestades... O ser humano que confia é também o ser humano que teme; o ato de coragem carrega, também, o medo.

No nosso crescimento humano e espiritual, o medo não superado, ou desejo bloqueado, vão gerar tempestades. Ou, pelo contrário, o medo superado, o desejo desatado, vão permitir a maturação. E nossa vida evolui assim, através do nosso desejo de plenitude e o nosso medo de destruição (impulso de vida x impulso de morte).

Todos nós, no nível pessoal ou coletivo, vivemos experiências de tempestades; algumas como um “tsunami”, como este que vivemos no atual momento.  Estamos diante de uma “onda nova” de risco e de vida, na madrugada de um dia que pode e deve ser de salvação: “Coragem! Sou eu. Não tenhais medo!”

Uma coisa é sentir medo; outra, é permanecer paralisado com medo de arriscar e não aventurar por novas terras, na descoberta infindável que é a vida.

É preciso não ter medo do medo, e fazer dele uma mediação para o próprio crescimento, descobrindo o desejo de viver que se esconde atrás de cada medo. E que vai permitir ir mais longe.

As batalhas mais profundas do espírito (a quebra de limites da mente e do costume, o avanço sobre novos ideais e sonhos...) se conquistam com o atrevimento da coragem, com a força da fé, com a imaginação solta, com a criatividade livre e desimpedida.

Desafiando os medos aprende-se a ter coragem. Aceitar os medos é o caminho para tornar-se destemido. O conhecimento da própria fraqueza é a maior força.

Cada medo não resolvido é um peso na vida. É preciso descobri-los, identificá-los, nomeá-los e tomá-los como são até que se possa dissolvê-los em consciência e coragem.

Também a Igreja se mostra, muitas vezes, presa ao medo, matando seu espírito profético. Uma Igreja medrosa torna-se conivente com a cultura da violência e da morte. Enquanto mais teme, mais se fecha e se entrincheira atrás de normas, doutrinas, ritos...; e quanto mais se entrincheira, mais frágil se torna.

A grande comunidade dos seguidores de Jesus é chamada por Ele a viver contínuas travessias, a sair dos seus espaços estreitos e “normóticos” (normalidade doentia), a ser “provada” pelas tormentas e ventos contrários, a esvaziar sua barca de tantos pesos para poder fluir com mais leveza, levantando suas velas e aproveitando da força dos mesmos ventos.

É o mesmo Espírito de Jesus que sopra as velas da grande barca, conduzindo-a para a “outra margem”, a margem do compromisso em favor da vida.


Texto bíblico:  Mt 14,22-33

Na oração:

Entre na barca de sua vida, em companhia do Senhor; deixe que a presença d’Ele desmascare os medos que atrofiam sua identidade e originalidade.

- Dê nomes aos seus medos; nomeá-los, já é dar o primeiro passo para não se deixar determinar por eles.

- O que você faria, se não tivesse medo?