“...vendo as multidões, Jesus
compadeceu-se delas, porque estavam cansadas e abatidas” (Mt 9,36)
Depois do percurso quaresmal e pascal, retomamos
o tempo litúrgico conhecido como “Tempo Comum” (Ano A), seguindo o evangelista
Mateus. Trata-se de uma longa “caminhada contemplativa”, deixando-nos inspirar
pelo modo de ser e de agir de Jesus. Estamos na escola do discipulado, deixando-nos
modelar pelo Mestre de Nazaré: seu estilo de vida, sua forma de pensar e de
viver a relação com o Pai, sua maneira de entender o ser humano, sua relação
com os outros, seu modo de conhecer, de crer, de esperar, de amar, sua
liberdade diante da religião e das tradições, sua atitude diante das vítimas,
dos sofredores e excluídos...
E o evangelho de hoje nos indica
que Jesus vive uma presença diferente e inspiradora no contexto social e
religioso de seu tempo; seu olhar contemplativo vê o emergente,
o alternativo, o novo..., nas mesmas realidades que para outros são uma lixeira
de coisas mortas, de amargura e desalento. Ele tem uma sensibilidade para
perceber o Reino de Deus onde aparentemente não está, onde outros veem uma
massa de pecadores, de excluídos que não conhecem a lei, de impuros, de publicanos
a serviço do império romano.
A partir do olhar misericordioso do
Pai, Jesus também contempla a vida e vislumbra aquilo que o olhar superficial e
acostumado à linguagem da sinagoga não é capaz de descobrir.
Ao
deixar-se impactar pela “massa sobrante”, “cansada e abatida”, Jesus sente o
despertar de suas entranhas compassivas. Esse é o sentido da verdadeira compaixão: “amor de entranhas”. Elas são o lugar onde estão
localizadas as nossas emoções mais íntimas e mais intensas. Constituem o centro
de onde brota o amor oblativo, que nos move a sair de nós mesmos para entrar em
sintonia com a dor e a miséria do outro.
Quando os evangelhos falam da compaixão de Jesus como estremecimento
de suas entranhas, eles ex-pressam algo muito profundo e humano. A compaixão
que Jesus sentia era obviamente muito diferente dos sentimentos superficiais ou
passageiros de pesar ou de simpatia pela situação do outro. Pelo contrário, ela
está relacionada com a palavra hebraica “rahamim”, que se refere ao ventre
materno de Deus.
Na verdade, a compaixão é uma emoção tão profunda, central e poderosa em Jesus,
que só pode ser descrita como um movimento de contração do “ventre de Deus”. Nele,
está oculta toda a ternura e toda a bondade divina. Nele, Deus é pai e mãe,
irmão e irmã, filho e filha. Nele, todos os sentimentos, emoções e paixões são
uma só coisa no amor divino. Nesse sentido, a compaixão revela o abismo de
ternura imensa, inesgotável e insondável de Deus.
Jesus, presença visível da
compaixão do Pai, sofre ao ver a distância que havia entre o sofrimento dos
enfermos, excluídos, desnutridos e estigmatizados pela sociedade, e a vida que
o mesmo Pai queria para todos. Jesus, então, põe em marcha um “movimento
compassivo”, constituídos de discípulos e discípulas, que se deixaram
seduzir por Ele, para prolongar na vida o mesmo compromisso compassivo do
Mestre.
Aqui, não se trata de adesão a um mero programa ou
a uma doutrina, mas do convite a um seguimento (“vir comigo”), no calor
e intimidade de uma relação pessoal que é dirigida a cada um em
particular. Para isso, requer-se uma resposta sem reservas, com a marca
da compaixão.
Sem compaixão, todo seguimento de Jesus torna-se
vazio, burocrático, rotineiro, normativo...
A compaixão
é princípio de humanidade e expressão da identidade do ser humano. Na sua
essência, a pessoa pode ser definida como ser compassivo. Sem compaixão, não há
humanidade, pois predominam a violência, a dureza de coração, a indiferença, o
fechamento fanático da mente e da inteligência.
Enquanto compassivo, o ser humano se sente
solidário, terno, próximo... tanto diante da situação dos outros seres humanos,
vítimas de exclusão e violência, como diante da natureza ferida, de forma que
todo ato de homi-cídio e de eco-cídio se converte em sui-cídio;
matar a outra pessoa ou destruir a natureza é matar-se ou destruir-se a si
mesmo. Sem compaixão, o ser humano se torna lobo solitário que se guia pela lei
da selva. Sem compaixão, não há respeito pela vida dos outros, mas a guerra de
todos contra todos.
De fato, a com-paixão não é um sentimento menor de “piedade” para com os que
sofrem.
A com-paixão não é passiva, mas sim altamente ativa; é a capacidade
de com-partilhar a própria paixão com a paixão do outro. Trata-se de
sair de si mesmo e de seu próprio círculo e entrar no universo do outro
enquanto outro, para sofrer com ele, para cuidar dele, para alegrar-se com ele
e caminhar junto a ele, e para construir uma vida em comunhão e solidariedade.
Quem já foi tocado por um olhar de
uma pessoa pobre ou sofredora, e deixou que este olhar penetrasse no fundo do seu coração, sabe que não sai “ileso”
desta experiência; algo mudou dentro de si.
É uma experiência que o modifica
profundamente, tanto que muitos interpretam como uma “experiência de Deus”,
uma experiência de ter conhecido no rosto do pobre o rosto de Cristo.
As comunidades cristãs, ao longo de sua história,
se moveram entre duas atitudes: a insensibilidade diante do sofrimento humano e
a compaixão para com as vítimas. Hoje, só terá credibilidade o cristianismo se,
como o bom Samaritano, deixa-se afetar pela situação do outro e realiza gestos
compassivos.
Por isso, às notas tradicionais aplicadas à
Igreja: una, santa, católica, apostólica (os tradicionalistas acrescentam uma
quinta: “romana”, que não faz parte do Credo), poderíamos acrescentar outras
duas: samaritana e compassiva. Não é evangélica uma Igreja só
preocupada com ritos, leis, doutrinas, sacrifícios..., desprovida de compaixão.
É na vivência compassiva que a Igreja mais se identifica com Aquele que é
centro mesmo dela, o Jesus Compassivo. Afinal, somos
seguidores de uma pessoa compassiva e não simples adeptos de uma religião ou de
uma determinada doutrina.
E que é a Igreja senão a grande comunidade,
constituída de pequenas comunidades, seduzidas por esta compaixão ousada de
Jesus? A Igreja, para ser Igreja, precisa fundamentar-se na compaixão de Jesus.
Para que serve a Igreja se não mantém aceso o fogo
da compaixão de Jesus que aquece os corações e transforma sem cessar as
estruturas? Jesus não estabeleceu nenhum sistema de dogmas, normas e ritos. Não
é o fundador de uma religião, mas de um movimento vivo, ativado pela
compaixão e animado por uma esperança sempre nova, renovadora da vida. Para que
servem todos os dogmas, normas e ritos se não despertam a compaixão nem ajudam
à vida em sua incessante renovação, diversidade e criatividade?
O Evangelho deste domingo também nos possibilita
considerar nossa interioridade como “Israel”; Jesus nos envia às “ovelhas
perdidas” de nosso interior: afetos, desejos, sentimentos, paixões, feridas,
fracassos, traumas... Re-ordenar a vida interior, evangelizar nossas profundezas
para que sejamos presenças compassivas.
A evangelização começa pela própria interioridade.
No percurso interior (caminho), levar a luz do Evangelho, a mensagem da
boa-nova. Tudo deve ser integrado, acolhido, iluminado... para dar um novo
sentido à nossa própria existência. Carregamos muitos “nomes”, muitas presenças
que ainda não foram acolhidas.
A
finalidade da evangelização das profundezas é colocar Deus em seu
devido lugar em nossa vida. É retornar a Ele, vivendo plenamente nossa humanidade
e deixando-a vivificar pelo seu Espírito. Trata-se, dessa maneira, de experimentar
a salvação em todas as dimensões de nosso ser, de recompor-nos, reajustando-nos
às leis fundamentais da vida.
É
indispensável “unificar-nos” por dentro e descobrir que podemos re-inventar-nos
a cada dia, a cada passo, conduzindo conscientemente nossa vida em direção à
plenitude e não arrastá-la pelo chão.
Quem
está “unificado” tem a coragem de redefinir-se, de eleger, de
assumir-se; é alguém preparado para dar um salto arrojado e criativo.
A discreta
presença do nosso Mestre interior nos move a acolher nosso potencial de
ternura, de cuidado e de resistência diante de todas aquelas situações e forças
que desintegram a vida e nos dividem por dentro. Então, nossa interioridade
evangelizada fará emergir a força compassiva que estava reprimida.
Só
poderemos ser compassivos na relação com os outros quando formos compassivos
com nossa própria história de vida.
Texto bíblico:
Mt 9,36-10,8
Na
oração:
A
compaixão está cada vez mais ausente da esfera pública e de nossas
relações com o outro diferente e com o outro que sofre. Aqui está a chave da
incapacidade de nossa sociedade para responder aos desafios atuais. Afirmamos
ser seguidores(as) do Jesus Compassivo e, no entanto, a realidade deixa
transparecer a trágica face da “sem-paixão”; está se tornando
“normal” ser intolerante, violento, preconceituoso, racista, misógino,...
-
Sua presença, frente ao contexto pandêmico, social, político, religioso...,
revela “compaixão profética” ou “massa de manobra” da violência
institucionalizada?
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