terça-feira, 16 de junho de 2020

Coração Divino que nos Humaniza

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho da solenidade do Sagrado Coração de Jesus.


“...aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração” (Mt 11,29)

Uma das devoções que tiveram (e continua tendo) mais êxito ao longo da história da Igreja é a do Sagrado Coração de Jesus. As “paredes” do universo estão cheias do eco que as palavras da famosa jaculatória deixaram“Sagrado Coração de Jesus, eu confio em vós”. São incontáveis as vezes que foram pronunciadas, e imensurável a fé de que foi portadora.
Graças ao Coração de Jesus, entronizado em milhares de casas e colocado na porta de milhões de lares, se manteve firme a experiência de prolongar a humanidade de Jesus em nossas relações cotidianas, a vinculação do Evangelho com a vida concreta, a vivência do amor, uma maneira original e inspiradora de se situar no mundo (trabalhos, atividades, compromissos...), a sintonia com a Presença Providente de Deus...
Para muitos de nossos contemporâneos, causam uma certa resistência as representações que mostram Jesus com o coração transpassado e, com frequência, rodeado com uma coroa de espinhos. Se queremos atualizar esta devoção e encontrar um sentido que responda aos anseios de muitas pessoas de hoje, é necessário deixar de concentrar nosso olhar no “coração físico” de Jesus e recuperar o sentido bíblico e amplo do coração, como centro de nossa afetividade e de nossas decisões mais íntimas. Neste sentido, o Coração de Jesus revela a misericórdia de Deus que se expressa em todas as palavras e atos do Mestre de Nazaré.

A imagem do Coração de Jesus, em sua origem, fala de amor, com maiúsculas. O Amor. Não uma imagem suave das coisas nem uma aproximação só emocional à fé, mas o Amor, que dizemos que é Deus, e que se faz visível em Jesus. Amor verdadeiro, que é uma maneira original de olhar a realidade, conhecendo-a, assumindo-a e comprometendo-se com ela. É assim que Deus nos olha. É assim que Jesus nos olha.
Seu coração se rompeu numa cruz, mas continua pulsando já ressuscitado. E essa pulsação é hoje clamor em nossa história e nosso presente.
Jesus vivia a partir de seu coração e contagiava com a força poderosa de seu amor e de sua entrega.
Por isso, a melhor devoção ao Sagrado Coração de Jesus é “entrar em Seu coração”, é sentir o amor que queimava n’Ele; é sentir-nos amados por Ele, é aprender que o caminho do verdadeiro seguimento não é um ato de piedade, mas uma atitude de vida no amor. É descobrir que a verdade das “Nove primeiras Sextas-feiras” não se restringe em “confessar e comungar”, mas está no aprender a amar como Ele nos amou.
Todos estamos no coração de Cristo. Todo estamos no Amor de Deus. Todos fomos introduzidos na Sagrada Humanidade d’Aquele que, sendo Deus, humanizou-se e se fez semelhante a nós para que todos pudéssemos nos sentir n’Ele e nos tornássemos um pouco mais humanos.
Uma devoção ao Coração de Jesus que não nos conduz a estabelecer novas relações humanas, prolongando o modo humano de ser e de viver de Jesus, torna-se uma devoção vazia, estéril, marcada por uma piedade alienante e alienada.

Na nossa cultura atual, a imagem do coração perdeu muito de sua expressão, tornando-se muito banalizado: corações nas emoções, nos desenhos, talhados em árvores, nas taças e chaveiros; corações em canções, rompidos, roubados, feridos, apaixonados, pesados, leves; corações que sentem, e outros insensíveis. O coração parece como um depósito de sentimentos.
Por outro lado, vivemos um contexto de muitos “corações de pedra”, intransigentes, cheios de ressentimentos e juízos implacáveis, corações fechados em jaulas de pré-juizos e de suspeitas, que acabam envenenando as relações e rompendo os laços humanos.
A devoção ao Coração de Jesus pode nos ajudar a descobrir as enormes possibilidades de nossos próprios corações. O Coração divino que humaniza nosso coração, tornando-o aberto e sensível a tudo o que é humano; ao mesmo tempo, ativa em nós um coração que faz solidário e comprometido a afastar de nossas relações tudo o que desumaniza: fechamentos, intolerâncias, julgamentos, preconceitos, ódios...
O Coração de Jesus nos capacita olhar a realidade, compreender cada pessoa em sua situação e viver oblativamente, a partir da gratidão e da responsabilidade. Ao sentir o pulsar de nosso coração em sintonia com o Coração de Jesus nos ajuda a recuperar o “humanismo” que estamos perdendo.
Humanizar nosso coração para humanizar as relações.

No sentido bíblico, “coração” é uma palavra primordial; ela nos remete ao mais profundo e vital de nossa essência e existência. O coração designava o complexo mundo interior do ser humano.
O coração profundo é o centro de nosso ser, o nosso cerne mais íntimo, o coração do coração, que não consiste no sentimento, mas no lugar do encontro com Deus. A antropologia bíblica considera o coração como o interior do ser humano, num sentido muito mais lato que o das línguas latinas, no qual o coração evoca a vida afetiva. Trata-se do centro existencial que permite à pessoa orientar-se como um todo e plenamente em direção a Deus e ao bem.
Recordações, pensamentos, projetos e decisões são alguns dos componentes essenciais desse órgão vital por excelência. O que acontece no coração tem caráter decisivo. “O mistério interior do ser humano, tanto na linguagem bíblica como no não bíblico, se expressa com a palavra coração” (Xavier León-Dufour).
O despertar da identidade única de cada pessoa se dá no santuário de seu interior, que é o coração. Nele está estampada nossa imagem e semelhança divinas, pois no coração está gravada a imagem divina oculta. S. Serafim de Sarov o denomina “o altar de Deus”.

“O sentido de nossa vida não é outro que a busca deste lugar do coração” (Olivier Clément). Ou seja, no centro de nós mesmos, unificando nosso ser, está o coração, o “cofre” onde se guarda/oculta o que é mais nobre e rico em nós. Por isso Jesus dava tanta importância ao coração: “a boca fala daquilo que está cheio o coração” (Lc. 6,45); “Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus” (Mt 5,8).
O coração é uma dessas palavras nas quais toda a multiplicidade se torna uno.
É ele que possibilita a pessoa chegar à unificação de todo o seu ser, integrando a corporalidade, a afetividade, a sensibilidade, a razão..., para além da bela expressão de Pascal: “O coração tem razões que a razão não conhece”. O fato é que há “olhos no coração” que permitem compreender o que nem os olhos do corpo, nem a razão são capazes de perceber: “Rogo a Deus que ilumine os olhos dos vossos corações, para que conheçais qual é a esperança à qual fostes chamados” (Ef 1,18).
Enfim, o coração do ser humano é a própria fonte de sua personalidade consciente, inteligente e livre. É o lugar de suas escolhas decisivas, fonte das bem-aventuranças, santuário da ação misteriosa de Deus e do encontro com Ele. Por isso, chegar ao lugar do coração é dom de Deus.


Texto bíblico:  Mt 11,25-30

Na oração:
Talvez o resumo mais belo do que gera a oração do coração seja o que disse S. João Crisóstomo: “O coração absorve o Senhor, e o Senhor absorve o coração, e os dois se fazem uno”.
A intimidade não é fechar-se em si mesmo, mas abertura máxima. A partir do centro do coração, o orante se abre ao coração da realidade.
- Você deixa “transparecer” seu coração na vivência cotidiana?

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