“...aprendei
de mim, porque sou manso e humilde de coração” (Mt 11,29)
Uma das devoções que
tiveram (e continua tendo) mais êxito ao longo da história da Igreja é a do Sagrado
Coração de Jesus. As “paredes” do universo estão cheias do eco que as palavras
da famosa jaculatória deixaram – “Sagrado Coração
de Jesus, eu confio em
vós”. São
incontáveis as vezes que foram pronunciadas, e imensurável a fé de que foi portadora.
Graças ao Coração de
Jesus, entronizado em milhares de casas e colocado na porta de milhões de
lares, se manteve firme a experiência de prolongar a humanidade de Jesus em
nossas relações cotidianas, a vinculação do Evangelho com a vida concreta, a vivência
do amor, uma maneira original e inspiradora de se situar no mundo (trabalhos, atividades,
compromissos...), a sintonia com a Presença Providente de Deus...
Para muitos de nossos
contemporâneos, causam uma certa resistência as representações que mostram
Jesus com o coração transpassado e, com frequência, rodeado com uma coroa de
espinhos. Se queremos atualizar esta devoção e encontrar um sentido que
responda aos anseios de muitas pessoas de hoje, é necessário deixar de
concentrar nosso olhar no “coração físico” de Jesus e recuperar o sentido
bíblico e amplo do coração, como centro
de nossa afetividade e de nossas decisões mais íntimas. Neste sentido, o
Coração de Jesus revela a misericórdia de Deus que se expressa em todas as
palavras e atos do Mestre de Nazaré.
A imagem do Coração de Jesus, em sua origem, fala
de amor, com maiúsculas. O Amor. Não
uma imagem suave das coisas nem uma aproximação só emocional à fé, mas o Amor,
que dizemos que é Deus, e que se faz visível em Jesus. Amor verdadeiro, que é
uma maneira original de olhar a realidade, conhecendo-a, assumindo-a e
comprometendo-se com ela. É assim que Deus nos olha. É assim que Jesus nos
olha.
Seu coração se rompeu
numa cruz, mas continua pulsando já ressuscitado. E essa pulsação é hoje clamor
em nossa história e nosso presente.
Jesus vivia a partir de
seu coração e contagiava com a força poderosa de seu amor e de sua entrega.
Por isso, a melhor
devoção ao Sagrado Coração de Jesus é “entrar em Seu coração”, é sentir o
amor que queimava n’Ele; é sentir-nos amados por Ele, é aprender que o caminho
do verdadeiro seguimento não é um ato de piedade, mas uma atitude de vida no
amor. É descobrir que a verdade das “Nove primeiras Sextas-feiras” não se
restringe em “confessar e comungar”, mas está no aprender a amar como Ele nos
amou.
Todos estamos no
coração de Cristo. Todo estamos no Amor de Deus. Todos fomos introduzidos na
Sagrada Humanidade d’Aquele que, sendo Deus, humanizou-se e se fez semelhante a
nós para que todos pudéssemos nos sentir n’Ele e nos tornássemos um pouco mais
humanos.
Uma devoção ao
Coração de Jesus que não nos conduz a estabelecer novas relações humanas,
prolongando o modo humano de ser e de viver de Jesus, torna-se uma devoção
vazia, estéril, marcada por uma piedade alienante e alienada.
Na nossa cultura atual, a
imagem do coração perdeu muito de
sua expressão, tornando-se muito banalizado: corações nas emoções, nos desenhos,
talhados em árvores, nas taças e chaveiros; corações em canções, rompidos,
roubados, feridos, apaixonados, pesados, leves; corações que sentem, e outros
insensíveis. O coração parece como um depósito de sentimentos.
Por outro lado, vivemos
um contexto de muitos “corações de pedra”, intransigentes, cheios de
ressentimentos e juízos implacáveis, corações fechados em jaulas de pré-juizos
e de suspeitas, que acabam envenenando as relações e rompendo os laços humanos.
A devoção ao Coração
de Jesus pode nos ajudar a descobrir as enormes possibilidades de nossos
próprios corações. O Coração divino
que humaniza nosso coração, tornando-o aberto e sensível a tudo o que é humano;
ao mesmo tempo, ativa em nós um coração que faz solidário e comprometido a
afastar de nossas relações tudo o que desumaniza: fechamentos, intolerâncias,
julgamentos, preconceitos, ódios...
O Coração de Jesus
nos capacita olhar a realidade, compreender cada pessoa em sua situação e viver
oblativamente, a partir da gratidão e da responsabilidade. Ao sentir o pulsar de
nosso coração em sintonia com o Coração de Jesus nos ajuda a recuperar o
“humanismo” que estamos perdendo.
Humanizar nosso
coração para humanizar as relações.
No sentido bíblico, “coração” é uma palavra primordial;
ela nos remete ao mais profundo e vital de nossa essência e existência. O
coração designava o complexo mundo
interior do ser humano.
O coração profundo
é o centro de nosso ser, o nosso cerne mais íntimo, o coração do coração, que
não consiste no sentimento, mas no lugar do encontro com Deus. A antropologia
bíblica considera o coração como o interior do ser humano, num sentido muito
mais lato que o das línguas latinas, no qual o coração evoca a vida afetiva.
Trata-se do centro existencial que permite à pessoa orientar-se como um todo e
plenamente em direção a Deus e ao bem.
Recordações,
pensamentos, projetos e decisões são alguns dos componentes essenciais desse
órgão vital por excelência. O que acontece no coração tem caráter decisivo.
“O mistério interior do ser humano, tanto
na linguagem bíblica como no não bíblico, se expressa com a palavra coração” (Xavier León-Dufour).
O despertar da identidade única de cada
pessoa se dá no santuário de seu interior, que é o coração. Nele está estampada nossa imagem e semelhança divinas,
pois no coração está gravada a imagem divina oculta. S. Serafim de Sarov o
denomina “o altar de
Deus”.
“O
sentido de nossa vida não é outro que a busca deste lugar do coração”
(Olivier Clément). Ou
seja, no centro de nós mesmos, unificando nosso ser, está o coração, o “cofre”
onde se guarda/oculta o que é mais nobre e rico em nós. Por isso
Jesus dava tanta importância ao coração: “a boca fala
daquilo que está cheio o coração” (Lc. 6,45); “Bem-aventurados os puros
de coração, porque verão a Deus” (Mt 5,8).
O coração é uma dessas palavras nas quais
toda a multiplicidade se torna uno.
É ele que possibilita
a pessoa chegar à unificação de todo o seu ser, integrando a corporalidade, a
afetividade, a sensibilidade, a razão..., para além da bela expressão de
Pascal: “O
coração tem razões que a razão não conhece”. O fato é que há “olhos no coração” que permitem
compreender o que nem os olhos
do corpo, nem a razão são capazes de perceber: “Rogo a Deus que ilumine os
olhos dos vossos corações, para que conheçais qual é a esperança à qual
fostes chamados”
(Ef 1,18).
Enfim, o coração do ser humano é a
própria fonte de sua personalidade consciente, inteligente e livre. É o lugar
de suas escolhas decisivas, fonte das bem-aventuranças, santuário da ação
misteriosa de Deus e do encontro com Ele. Por
isso, chegar ao lugar do coração é dom de Deus.
Texto
bíblico:
Mt 11,25-30
Na oração:
Talvez o resumo mais belo do que gera a oração do coração
seja o que disse S. João Crisóstomo: “O coração
absorve o Senhor, e o Senhor absorve o coração, e os dois se fazem uno”.
A intimidade não é fechar-se em si mesmo, mas
abertura máxima. A partir do centro do coração, o orante se abre ao coração da
realidade.
- Você deixa “transparecer” seu coração na vivência
cotidiana?
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