“O Espírito conduziu Jesus ao deserto...” (Mt 4,1)
Na
experiência do batismo, Jesus escutou a voz do Pai. Trata-se do principal
momento teofânico de sua vida, juntamente com a transfiguração. Mateus se serve
deles para proclamar que a identidade de Jesus consiste em ser o Filho amado do
Pai. Essa é sua identidade e nela se revela que seu “código genético” consiste
em ser o Filho, o Amado, o Predileto..., sobre quem se visibiliza a
complacência do Pai.
Agora podemos compreender sua ida
ao deserto, movido pelo Espírito,
como uma necessidade imperiosa de “processar”, no silêncio e na solidão, essa
revelação, de alargar espaço, em sua interioridade, para o deslumbramento e o
assombro.
O significado do deserto não é
prioritariamente o penitencial. “Levá-lo-ei ao deserto e falar-lhe-ei ao coração”, tinha dito Oséias (2,16),
convertendo o deserto em um lugar privilegiado de encontro pessoal e de escuta
da Palavra. Jesus é conduzido ao deserto para acolher a Palavra escutada em seu
coração no momento de seu batismo. Ele precisava de tempo para assentar no mais
profundo de seu ser uma Palavra que o descentrasse para sempre de si mesmo e o
situasse à sombra da ternura incondicional de Alguém maior.
O
evangelista Mateus apresenta a estadia de Jesus no deserto como um tempo de lucidez,
fazendo-nos perceber que a relação filial da qual Ele tinha tomado consciência,
iluminou de tal maneira sua visão, que se tornara impossível confundir a Deus
com os falsos ídolos que o tentador lhe apresenta: um deus em busca de um mágico
e não de um Filho; um “deus” contaminado das vazias pretensões do pior da
condição humana: ter, brilhar, ostentar poder, exercer domínio...
O que parece claro é que Jesus buscou o deserto
para um tempo de discernimento, em
oração e em solidão, diante do Pai que o proclamou seu Filho; Ele teve de
refletir e discernir sobre o modo como assumiria sua missão
em sua vida pública.
Ora,
essa missão comportava, de fato, não só um fim que havia
de realizar (a salvação e a libertação total da humanidade) senão, também, um meio,
ou seja, um caminho e uma maneira de proceder, tendo em vista alcançar aquele fim.
E esse meio ou esse procedimento era, essencialmente, a solidariedade
com todos os pecadores e excluídos da terra, a ponto de morrer com eles e por
eles.
Não podemos esquecer que o tentador
não propõe a Jesus que se afastasse de seu fim, ou seja, de seu projeto
messiânico de salvação (“Se és o Filho de Deus...”), senão que, na realidade, o que ele
faz é oferecer a Jesus alguns meios determinados para realizar a
implantação do Reino do Pai.
Como viver sua missão e a partir de
quê lugar? Buscando seu próprio interesse ou escutando fielmente a Palavra do
Pai? Como deverá atuar? Dominando os outros ou pondo-se a seu serviço? Buscando
sua própria glória ou a vontade de Deus? Centrando sua vida na busca de poder e
riqueza ou assumindo uma vida pobre, como expressão de solidariedade com os mais
excluídos?
Na
cena das tentações, vemos Jesus
reagindo do mesmo modo como fez ao longo de toda sua vida: centrado e em
sintonia afetiva com tudo aquilo que Ele vai descobrindo como o querer de seu
Pai: a vida abundante daqueles que
veio buscar e salvar. Ele não veio para preocupar-se de seu próprio pão, mas de
preparar uma mesa na qual todos pudessem se sentar para comer; Ele não veio
para que os anjos o carregassem sobre as asas, para angariar fama e “ter um
nome”, mas para dar a conhecer o nome do Pai e carregar sobre seus ombros todos
os perdidos, como um pastor carrega a ovelha extraviada. Não veio para possuir,
dominar ou ser o centro, mas para servir e dar a vida.
O que livra Jesus de cair nos
enganos do tentador é sua ex-centricidade, sua referência ao Pai e à sua
Palavra, e, a partir desse Centro, receberá o impulso para abandonar o deserto
e se deixar conduzir pela corrente de Vida, alimentada pelo Espírito. A partir
desse momento, vê-lo-emos caminhando pela Galileia, entrando em relação com o mundo
dos pobres e excluídos, anunciando o Reino, criando uma nova comunidade de
vida, buscando colaboradores, aproximando-se das pessoas, entrando nas casas,
acolhendo, curando, ensinando, abrindo um horizonte de sentido para a vida das
pessoas...
A
passagem evangélica das tentações também
nos inspira a encontrar com o mesmo Deus a quem Jesus conheceu no deserto: um
Deus que não exige de nós proezas nem gestos espetaculares, mas somente
alimentar nossa confiança n’Ele e nosso agradecimento; um Deus que nos dirige
sua Palavra, não para nos impor obrigações ou para apontar nossas fragilidades,
mas para nos alimentar e nos fazer crescer; um Deus que não é encontrado nos
lugares carregados de prepotência, de poder, de vaidade e consumismo, mas nos
lugares do despojamento e da simplicidade de vida, nos lugares dos
“descartados” e excluídos.
Muitas vezes pensamos que Deus é um
“estraga-prazeres”, ou um Deus triste que não quer que vivamos prazerosamente.
E, então, temos a sensação que as
tentações são essas coisas fascinantes que nos seduzem, mas que temos de
renunciá-las em nome de uma suposta “perfeição”. Porém, Deus não é Aquele que
complica nossa vida com leis, sacrifícios, renúncias... Ele quer que vivamos e,
de maneira intensa.
Para cruzar os desertos da vida é
preciso ativar uma atitude de esvaziamento de tudo aquilo que é “peso morto”
para chegar ao mais profundo e verdadeiro de nosso ser. O deserto nos revela de
onde viemos e para onde vamos; ele nos remete inteiramente ao Doador da vida e
desperta outros recursos vitais, aninhados em nosso interior.
Tudo o mais é pouco para a sede do
coração. “Só Deus basta”, nos sussurra o deserto.
Desde sempre, a humanidade inteira e cada um de
nós, estamos expostos à tentação.
Faz parte de nossa condição humana. Trata-se de um conflito permanente que pode
travar nossa existência por dentro.
Por um lado, sentimos o apelo e o impulso para o
bem, para a liberdade, para o compromisso e a fraternidade. Mas por outro,
sentimos também a sedução e a tendência para o egocentrismo, o prestígio e os
instintos de poder e posse. Sentimo-nos simultaneamente santos e pecadores,
oprimidos e libertados.
As tentações sempre estão diante de nós, como pedras que se convertem
em pães, como aplauso buscado a partir dos critérios do mundo, ou como joelhos
que se dobram frente às promessas de um ídolo com pés de barro. São dinamismos que bloqueiam o fluxo da vida,
impedindo-a de se expandir e de se colocar a serviço de outras vidas.
Ser tentado é próprio do humano,
mas o que é divino pode também ser encontrado em nosso interior.
Quem é conduzido pelo Espírito, é
capaz de acessar à própria interioridade e não se deixa enredar pelos estímulos
externos nem pelos impulsos egóicos.
Diante das tentações do poder, do ter e do prestígio, o(a) seguidor(a) de Jesus
responde com a partilha, o serviço, a comunhão, a solidariedade...
O tempo quaresmal vem ativar esse dinamismo expansivo. E a Campanha da
Fraternidade nos motiva a fazer da vida
um grande dom e um profundo compromisso.
Só quem
se deixa conduzir pelo Espírito, como Jesus, consegue romper com tudo aquilo
que atrofia a vida; só assim consegue fazer o salto libertador
Trata-se de ser dócil para
deixar-se conduzir pelos impulsos do Espírito, por onde muitas vezes não
entende e não sabe. É Ele que ativa o que há de melhor em si mesmo, expandindo
sua vida em direção aos valores do Reino: desapego, serviço, esvaziamento do
ego...
Na realidade, só existe uma “grande tentação” para os cristãos: a tentação radical da infidelidade a Cristo e a seu Reino. É
a tentação de traçar para si mesmo
um caminho,
isto é, de projetar uma vida para si, dando uma direção diferente daquela
que lhe deu o próprio Deus. Esta é a maneira de trair o melhor de si mesmo, de renunciar ao que há de melhor em si mesmo. Tentação essa que significa o fracasso da
própria vida.
Texto
bíblico: Mt 4,1-11
Na
oração:
Diante de “Jesus
tentado”, recorde experiências pessoais de tentação: quais são aquelas que mais
lhe afetam e lhe seduzem? Como você procede para não se deixar conduzir e nem
se determinar por elas?
- Recorde dimensões da vida que precisam ser
ampliadas a partir da experiência do deserto.