“E, além disso, há um
grande abismo entre nós”. (Lc 16,26)
O Evangelho deste domingo volta a
tratar do tema das riquezas com a parábola do rico Epulón e o pobre Lázaro. Uma parábola desconcertante e inquietante porque
nos situa frente a uma cena que sacode o coração, pois concentra, em uma só
imagem, a realidade presente em nosso mundo: o abismo entre ricos e pobres.
Existe a injustiça, existe a humilhação e a indiferença para com os menos
favorecidos; existe o esbanjamento de uns frente à miséria de outros. E isto
acontece também entre nós, comunidades e famílias cristãs.
Há muitos aspectos
da riqueza que podem ser injustos e nocivos; mas nesta parábola Jesus critica a
indiferença do rico diante do
sofrimento do pobre que está próximo, à porta. Jesus nos previne contra essa
tendência a evitar que os problemas alheios perturbem nossa “zona de conforto”.
O pobre
necessitado não é alguém que possamos escolher; ele aparece junto à porta de
nossas vidas...
Assim,
pois, estamos diante de um texto duplamente perturbador: ele nos deixa
inquietos ante a humilhante situação inicial do pobre, coberto de chagas e com
vontade de saciar-se das migalhas que caiam da mesa do rico; e diante do
destino último do rico, que gritava para que Lázaro lhe refrescasse a língua
porque as chamas o torturavam.
Se tivéssemos que
escolher uma palavra que fosse a chave de leitura da parábola deste domingo,
essa palavra seria “abismo”. E se
pudéssemos nomear a atitude denunciada na mesma parábola, essa seria “indiferença”.
Experimentamos um grande pecado
de raiz, que a todos nos envenena: a
cultura da indiferença. Questões gerais, comuns a grande número de pessoas,
não nos provocam e nem nos movem para além de nossos umbigos. Também os
problemas dos outros não nos dizem respeito. E se há fome e sofrimento ao nosso
redor, isso não nos inquieta. A maldade, a violência, as mortes, as
perseguições e escravidões não nos afetam mais. E vivemos como se nada disso
tivesse relação conosco. Não choramos mais as dores do mundo que construímos e
ao qual pertencemos. E o caos que enfrentamos em nossa sociedade nos deixa sem
horizontes e perspectivas de futuro. Sentindo que tudo vai muito mal,
anestesiamos nossa sensibilidade e entramos num estado de apatia e indiferença
para com o mundo, as coisas e as pessoas.
A indiferença é cruel. Ela edifica uma
barreira instransponível entre grupos, classes sociais, ideologias, religiões...
Tornamo-nos uma ilha sem vida e triste, negamos a condição criatural de
vivermos ao lado dos diferentes, nossos semelhantes. Em nós, a indiferença é
sintoma de desumanização. E essa desumanização é tanto prejudicial a nós quanto
às outras pessoas. Todo mundo perde. Aos poucos, nos recolhemos em nossos
medos, em nossas inseguranças e começamos a acreditar que os diferentes são
nossos inimigos. Da indiferença passamos aos discursos fascistas, às práticas
fundamentalistas, à segregação...
“Os
cristãos devem ser ilhas de compaixão num mar de indiferença”.
O grau de humanidade (ou de
indiferença) de nosso mundo se mede pelo grau de sensibilidade diante da dor
humana. E é a compaixão a melhor
expressão dessa sensibilidade e humanidade: deixar-nos afetar pelo que acontece
– ou seja, ter uma sensibilidade limpa, desbloqueada e vibrante.
Definitivamente, a compaixão é central para sermos
humanos. O sofrimento das vítimas nos “descentra” e nos faz “descer com paixão”
aos seus pés e nos situar ao lado (a favor) delas. Sempre podemos fazer a
“travessia para o outro lado”. Ali é onde se abrem espaços à compaixão.
Esta compaixão não
é meramente um sentimento privativo, mas reação “apaixonada” diante das
injustiças sangrentas de nosso mundo. Nos sofredores há algo que atrai e
convoca, que nos faz sair de dentro de nós mesmos e nos tornar próximos deles;
aí reside a origem da solidariedade que suscita uma ação eficaz e um
compromisso de vida a favor de quem é vítima de situações injustas.
Não resta dúvida que o sentimento
nuclear do evangelho, o eixo ao redor do qual tudo gira, é a compaixão. Na sua missão, Jesus sempre
se mostrou um homem compassivo, que revelou um Deus Compaixão e que, como
consequência, nos convida a viver essa mesma atitude: “Sede
compassivos como vosso Pai é
compassivo” (Lc
6,36).
Expressão de fraternidade e
vivida como serviço, a compaixão é a
capacidade de situar-se no lugar do outro, sentir e sofrer com ele. É
provavelmente o máximo sinal de maturidade humana e todas as tradições
espirituais reconhecem isso. No budismo, especialmente, se afirma que, enquanto
alguém não for capaz de colocar-se no lugar do outro, não poderá alcançar a
iluminação.
Se a compaixão constitui a coluna central do evangelho, não causa
estranheza que as denúncias mais fortes de Jesus são dirigidas contra a atitude
de indiferença. É o que Ele revela
na parábola deste domingo, onde a indiferença é retratada na atitude do rico
epulón, que não causa dano ao pobre Lázaro, mas é incapaz de abrir a porta de
sua casa e deixar-se afetar pela situação miserável dele.
Aqui, a chave de
compreensão da parábola é encontrada na expressão “um grande abismo”. Um
abismo que, não só se faz intransponível depois da morte, mas que foi
alimentado exclusivamente pela indiferença do rico. Não tinha feito mal ao
pobre; simplesmente, não tinha visto aquela pessoa necessitada de suas migalhas
para saciar sua fome. É esse “não ver” que cria um abismo profundo em nossas
relações pessoais, em nossos países e em nosso mundo.
Há uma “massa
sobrante” que se torna “invisível” porque nossa sensibilidade está bloqueada ou
petri-ficada, fechando-nos em um caracol egocêntrico e instalando-nos na
indiferença, que está na origem das injustiças e violências que diariamente
ferem o nosso mundo.
Vivemos tempos de “globalização
da indiferença”, ou seja, a indiferença está se convertendo em um
fenômeno mundial. É uma mancha de óleo que invadiu todos os ambientes, é um som
desagradável que molesta todos os ouvidos, é um comportamento nefasto que se
espalhou como pólvora, é um péssimo modo de proceder que se converteu em
denominador comum de toda a humanidade.
Nós,
seguidores(as) de Jesus, precisamos vigiar se não quisermos cair na tentação da
indiferença. Costumeiramente, tendemos ao conformismo. A cultura da indiferença
é fortalecida toda vez que deixamos de acreditar que a realidade pode e deve
ser diferente. Não podemos nos dar por vencidos acreditando que estamos no fim,
que nossas forças já se esgotaram, que não há mais sentido para lutar.
O primeiro
convite que nos faz a parábola deste domingo é o de abrir a porta do nosso
coração ao outro, porque cada pessoa é um dom, seja ela o nosso vizinho ou o pobre
desconhecido. Sempre é tempo propício para abrir a porta a cada necessitado e
nele reconhecer o rosto de Cristo. Cada um de nós o encontra no próprio caminho.
Cada vida que se cruza conosco é um dom e merece aceitação, cuidado, amor.
Nesse
sentido, “amar é abrir a
porta”.
Texto
bíblico: Lc
16,19-31
Na
oração:
É possível superar os tempos sombrios que
estamos vivendo, não nos deixando dominar pela indiferença, alimentando a
capacidade de nos indignar, compadecer e afetar pela situação do outro. Que a
dor, a injustiça, a morte, a fome, a mentira, o futuro não nos seja
indiferente.
- Quê lugar ocupa a “compaixão” em sua
vida interior, em seu compromisso diário, no horizonte de sua vida, nos
encontros cotidianos?
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