“O homem bom tira coisas boas do bom tesouro do
seu coração” (Lc 6,45)
A antropologia bíblica considera o coração como o interior do ser humano
em um sentido muito mais amplo que o das línguas latinas, que evocam a vida afetiva,
a sede dos sentimentos...
O coração é o centro de nosso ser,
o nosso cerne mais íntimo, o coração do coração, que consiste, sobretudo, no
lugar do encontro com Deus.
“O
sentido de nossa vida não é outro que a busca deste lugar do coração” (Olivier Clément).
Ou seja, no centro de nós mesmos, unificando nosso ser, está o coração,
o “cofre” onde se guarda/oculta o que é mais nobre em nós. Por
isso Jesus dava tanta importância ao coração: “a boca fala daquilo que o coração está
cheio” (Lc 6,45); “Bem-aventurados
os puros de coração, porque verão a Deus” (Mt 5,8).
É no “coração” que as forças
vitais se acham disponíveis para ajudar a pessoa a crescer dia-a-dia,
tornando-a aquilo para o qual foi chamada a ser. Trata-se da dimensão mais
verdadeira de si, a sede das decisões vitais, o lugar
das riquezas pessoais, onde ela vive o melhor de si
mesma, onde se encontram os dinamismos do seu crescimento, de
onde partem as suas aspirações e desejos
fundamentais, onde percebe as dimensões do Absoluto e do Infinito
da sua vida.
O coração do ser humano
é a própria fonte de sua personalidade consciente, inteligente e livre. É o
lugar de suas escolhas decisivas, da lei não escrita e da ação misteriosa de
Deus. Trata-se do centro existencial que permite à pessoa orientar-se como um
todo e plenamente em direção a Deus e ao bem.
No coração está gravada a imagem divina oculta, “o homem de coração oculto” (1Pd. 3,4). S. Serafim de Sarov o denomina “o altar de Deus”.
Aqueles que descem às profundidades
do seu interior ficam fascinados pelo esplendor daquilo que contemplam. O coração de cada um está habitado de
sonhos de vida, de futuro, de projetos; aqui, todo ser humano sente-se seduzido
pelo que é verdadeiro, bom e belo; busca ardentemente a pacificação, a unifica-ção
interior, a harmonia com tudo e com todos...; sente ressoar o chamado da verdade, o magnetismo do amor, da plenitude; sente-se atraído
por um desejo irreprimível de auto-transcendência...
Por ser livre e responsável, o
ser humano é capaz de decisões e de realizações, de ser artífice de seu destino
e de sua história. Ele sente por dentro o impulso para a expansão de si; ele
escuta por dentro o chamado a viver e a viver em plenitude.
Nesse sentido, o “coração” é,
de nossa parte, o espaço divino por excelência.
“Só o amor pode adentrar-se no Deus
que é amor”.
Assim, a descoberta do próprio ser profundo aproxima cada
um do autor da vida: Deus.
É no coração, “última solidão do ser”, que a pessoa se decide por Deus
e a Ele adere. Aqui Deus marca “encontro” com cada um. “Deus é mais íntimo a cada um de nós do que nós mesmos” (S. Agostinho).
Chegar ao lugar do coração é dom de
Deus: “Eu lhes darei um coração para conhecer-me;
saberão que eu sou o senhor. Eles serão meu povo e eu serei seu Deus; eles se
converterão a mim com todo seu coração” (Jer. 24,7).
Eis o “lugar” onde poderemos
estar em segurança, profundamente repousados.
Um coração que vibra
harmoniosamente, de modo coerente, “com ondas de frequência elevada”, nos
permite perceber a realidade de um modo igualmente harmonioso; sua energia
radiante, transmissora de paz, de quietude, de confiança, de abertura, alcança
os outros, tornando possível o sonho da unidade entre nós e aqueles que estão
ao nosso redor.
Para os antigos monges, o contrário desta abertura de coração é a “sklerokardia”,
ou seja, a “dureza de coração”, que impede a entrada em si mesmo e o encontro
com os outros e com Deus. O coração pode
palpitar ao ritmo da soberba ou da humildade, do amor ou do ódio, do egoísmo ou
da generosidade. E está cheio de mesclas: de trigo e de joio.
Quando nosso coração está “fechado”, nossos olhos
não veem, nossos ouvidos não ouvem, nossos braços e pés se atrofiam e não se
movimentam em direção ao outro; vivemos voltados sobre nós mesmos, insensíveis
à admiração e à ação de graças. Quando nosso coração está “fechado”, em nossa
vida não há mais compaixão e passamos a viver indiferentes à violência e
injustiça que destroem a felicidade de tantas pessoas. Vivemos separados da
vida, desconectados. Uma fronteira invisível nos separa do Espírito de
Deus que tudo dinamiza e inspira; é impossível sentir a vida como Jesus sentia.
A viagem para a própria interioridade, para a terra sagrada do coração,
necessita de um hábil discernimento para conhecer as armadilhas e os “inimigos”
que aparecem ao longo do percurso.
Quando, numa
visão mais profunda de nós mesmos e do mundo, nos vemos como criaturas que
surgem do amor de Deus, e quando
essa visão é fruto de uma vivência interior e transbordante, começa a brotar no
coração humano um movimento de unificação para Deus.
Esse movimento é
feito de confiança, de canto, de amor, de entrega, de serviço...
Por
ser imagem de Deus, e porque “Deus é Amor”, o coração do ser humano é capaz do melhor: tem, dada por Deus como dom da
Criação, a potencialidade de amar aos outros com o mesmo amor com que Deus lhe
ama, ou seja, com um amor gratuito e generoso.
Mas,
por ser uma imagem ofuscada pela limitação e pela fragilidade, o coração humano
é também capaz do pior: de negar sua
origem e sair ao encontro com a realidade a partir de suas potencialidades necrófilas
(forças de morte); de viver dando as costas a Deus e distorcendo a imagem
essencial de seu Criador; de se preocupar com o “cisco” no olho do outro,
assumindo atitudes intolerantes e julgadoras...
Quando nosso coração está centrado em Deus, ou seja,
quando ele se percebe que vem d’Ele, vive para Ele e para Ele retorna, tudo
está em seu lugar, tudo vai bem. É “árvore boa que
dá bons frutos”.
As “coisas”
não são obstáculos, e as pessoas muito menos. Nem sequer o nosso próprio e
ambíguo “eu” é tentação.
Até nossos
instintos mais primários ficam integrados nessa corrente de amor recebido e
amor entregue.
Mas quando se
produz um des-centramento do coração, dá-se um corte com a Fonte e,
portanto, com seu destino; quando o coração é presa do “diá-bolos” (aquele que
desune, que divide), então tudo começa a desandar: o “eu” inflado se converte
num depredador; os instintos básicos se transformam em obsessões; a vida fica
fragmentada e dispersa. Tudo se petrifica. O coração torna-se “oxidado”, pois
seus impulsos oblativos não são ativados. “Não
se colhem figos de espinheiros, nem uvas de plantas espinhosas”.
É a
deriva do coração humano, a inversão de sua vocação mais profunda.
Faz-se
urgente re-conectar-se com a Fonte,
onde o coração é continuamente gerado, sustentado, alimentado pelo amor de Deus
que o irriga, que o restaura. O coração
profundo pode estar desprezado, adormecido, fechado, mas não pode morrer.
Texto bíblico: Lc 6,39-45
Na oração: A
oração é o caminho interior que faz
você chegar até o seu próprio “eu
original”, aquele lugar santo, intocável, onde reside não só o lado
mais positivo de você mesmo, mas o próprio Deus. Este é o nível da graça,
da gratuidade,
da abundância,
onde você é chamado a mergulhar no silêncio, à escuta de todo o seu ser.
- Nas profundezas do seu coração, acolha, escute e
reconheça o murmúrio da voz de Deus,
que, como um rio calmo e ao mesmo tempo vivaz, o(a) acompanha, da nascente ao
mar aberto.
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