“Enquanto rezava, seu rosto mudou de aparência e
sua roupa ficou muito branca e brilhante” (Lc
9,29)
O evangelho deste
domingo recorda a Transfiguração de Jesus no monte (o Tabor da vida),
face a face, diante do Pai e diante de seus três amigos, revelando assim seu rosto
diante de todos. Ele quer que o vejam, que todos o vejamos (com Moisés e
Elias), descobrindo assim o rosto do “Deus invisível” no rosto dos homens e das
mulheres, para compartilhar com eles(as) vida e conversação.
O
evangelista Lucas insiste em centrar a atenção do rosto de Jesus, que
“muda de aparência”, se ilumina e aparece como revelação de Deus. Neste tempo
quaresmal, Jesus nos faz subir ao monte e se transfigura (se desnuda e se
reveste de glória), para que descubramos seu rosto, para que o vejamos, o
contemplemos, de forma que saibamos quem Ele é, e possamos dialogar com Ele, em
admiração, beleza e compromisso de seguimento evangélico. Pois bem, esse rosto
de Deus que se ilumina em Jesus sobre a montanha se estende e se encarna no
rosto de cada ser humano, sobretudo dos mais pobres e excluídos.
Dessa forma, Jesus
identifica a estética (beleza do rosto) com a ética: move-nos a descobrir Deus
nos rostos dos outros, acolhê-Lo presente nestes rostos e dialogar com Ele;
deixar-nos interpelar por cada um destes rostos (enfermo, encarcerado,
estrangeiro, excluído...), pois eles são em Cristo (sobre o Tabor da história)
a beleza e presença suprema de Deus.
É muito frequente na Bíblia a menção à Face
de Deus para indicar a sua presença e o reconhecimento recíproco entre Ele e o
ser humano. “É
tua face, Senhor, que eu procuro, não me escondas tua face” (Sl 27,8).
A face humana tem sempre muito a dizer; por isso,
é preciso iluminá-la com a transparência da Face de Deus. E, assim, a face
humana se tornará, cada vez mais, face divinizada.
A
revelação bíblica, ao afirmar que Deus se “fez rosto” e que o ser humano é imagem de Deus, privilegiou o
rosto humano. No entanto, hoje, a “deformação do rosto de Deus” ameaça essa
face humana, desprezada pela violência preconceituosa, pela intolerância e pelo
anonimato das grandes cidades.
Daí a
urgência de uma reflexão sobre o rosto que se abre à eternidade, ao
inesgotável, e que nos conduzirá ao “Rosto dos rostos”, o de Deus
“humanizado”, para permitir-nos decifrar nele a face humana e o ícone do ser
humano divinizado. Além disso, todo rosto, por mais desgastado ou destruído que
esteja, revela-se único e inimitável, para quem consegue ver com o olhar do
coração.
Nós conhecemos os rostos, temos
familiaridade com os rostos, aprendemos a colher as suas expressões e nelas ler
o interior da pessoa. Na realidade, não vemos com os olhos, vemos com o nosso
rosto.
Dizendo de outro modo: o “olhar” não se encontra
nos olhos, mas no rosto. Os olhos nada dizem, mas o rosto com que
olhamos guarda um segredo. É o rosto que desvenda o mistério do olhar. O
rosto da mãe revela à criança o segredo do seu olhar. E o rosto da criança
revela à mãe o segredo do seu olhar.
A palavra
é a linguagem dos pensamentos, o rosto a linguagem das emoções, uma
linguagem universal, não ensinada e não aprendida em parte nenhuma, mas por
todos compreendida. As emoções falam a mesma língua em todos os tempos e
lugares.
A face
humana é carregada de sentido. Fala, sem utilizar palavras; diz, sem soltar a
voz. De repente, a face humana apresenta-se, comparece inesperadamente.
A
face humana é mistério. Ata e desata segredos. É presença. Está exposta a
todos. É patente. Está aí. Pode ser vista, pode ser comentada, pode ser
seguida.
As expressões do semblante, o olhar, a voz, o
sorriso, é uma linguagem na linguagem, um dizer no dizer, um texto
inconsciente, nascido das profundezas, que se insere no texto verbal
consciente. Palavras e expressões do rosto andam juntas e se interpenetram. As
expressões do rosto falam mais do que as palavras, porque manifestam inúmeros
significados a partir da personalidade humana; elas completam, confirmam e por
vezes contradizem o que é dito com palavras e revelam, muitas vezes melhor que
as palavras, a veracidade da pessoa. Acrescentam um complemento inconsciente de
cor e de verdade às palavras, às vezes absolutamente contra a vontade de quem
fala. A sua espontaneidade imediata precede as intenções.
A
linguagem do rosto vem do fundo. Falamos do “rosto interior”; nas suas expressões aflora o íntimo do indivíduo,
o mundo dos seus estados de ânimo, os quais, sendo intrinsecamente não verbais,
fogem à linguagem articulada. E é uma linguagem verdadeira porque as emoções
não mentem. Na face humana, escondem-se mensagens intrigantes.
A face expressa a identidade da pessoa; ela revela o universo humano, é cenário
de certezas, de decisões, de dúvidas, de aspirações, de dramas, de temores, de
arte...
Nesse
sentido, a transfiguração re-vela outra
realidade de Jesus e nossa; este “mistério” nos des-vela e nos move a ultrapassar nossas “falsas
imagens” e encontrar-nos com a luz que nos habita. Podemos
“entrar” dentro de nós mesmos porque em nós está a dimensão de eternidade, de
transparência, de divino.
A transparência
é algo mais estável e faz referência à luz,
à vida interior, ao conhecimento próprio, ao desejo de deixar-se ver, à pureza
de intenção, à simplicidade e ao deixar-se conduzir pelo mesmo Espírito de
Jesus. Tem a ver com a capacidade de conhecer-se a si mesmo e de comunicar aos
outros a verdade de si mesmo, que se visibiliza no rosto iluminado.
Tomamos
este conceito como aquela qualidade de uma pessoa que vive e se manifesta aos
outros por atos e por palavras, de maneira que fica clara sua verdade, seu sentido
de pertença à comunidade dos seguidores de Jesus e sua confiança nos demais
membros da mesma comunidade.
Não basta contemplar rostos humanas; importa
deixar-se interpelar por eles. É preciso ser perspicaz para ler e interpretar o
sentido da face humana. Só quem é transparente, possui um olhar límpido para
captar o “mistério” escondido no rosto do outro. Ao contemplar um rosto, o
olhar chega ao coração humano, ali onde se encontra o sabor divino mais genuíno
na vida da pessoa. E quando somos capazes de olhar em profundidade o rosto do
outro, com simplicidade podemos encontrar no coração dele uma “imagem” de meu
próprio coração. O olhar transfigurado deve ser portador do bom aroma que atrai
ao encontro e à fraternidade.
Em nosso corpo, o “rosto” tem uma
importância muito especial: através dele e de seu olhar, nos mostramos e somos
percebidos e encontrados. O rosto, o olhar, dão ao nosso corpo sua beleza
verdadeira, tão diferente da beleza postiça dos cosméticos, das joias e
vestimentas. É a beleza de um rosto que nos leva para a transcendência, a
santidade. Quem se unifica e se dilata encontra, sem buscá-lo, seu verdadeiro rosto,
porque a beleza do rosto, é “epifania da pessoa”. O verdadeiro rosto nasce do
coração, quando este se transfigura.
Texto bíblico: Lc 9,28-36
Na oração:
Deixe que
o Espírito lhe conduza até onde seus medos não ousam chegar, dentro da luz, da verdade, e da vida plena.
- É
dentro de uma luz mais clara que o
seu verdadeiro
rosto se revela, se refazem todos os caminhos e se superam
todos os conflitos.
-
Coloque-se diante de tantos rostos
humanos: faça um “percurso”, começando pelos rostos mais próximos e
familiares; lentamente, vá ampliando sua visão acolhendo os rostos dos mais
distantes, excluídos, rostos desfigurados, sofridos, rostos que sofrem
preconceitos, julgamentos... Por detrás da aparência de cada rosto, capte a
presença do “rosto divino”; entre em sintonia e comunhão com todos os rostos,
constituindo o grande painel do rosto universal da humanidade. Em cada rosto
humano, sinta ressoar a voz do Pai: “este é o meu(minha) filho(a), o(a) escolhido(a)”.
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