“Não
só de pão vive o homem” (Lc 4,4)
Antes da Quaresma, carnaval...; o carnaval é o tempo dos disfarces, o
tempo das máscaras, quando ninguém quer mostrar seu próprio rosto e cada um se
esconde detrás de seu próprio disfarce. Às vezes, temos a impressão que é
preciso sempre estar usando máscaras, trocando-as de acordo com as
circunstâncias.
Somos os mesmos, mas disfarçados. Somos
os mesmos, mas dissimulando nossa identidade e revestindo-nos de qualquer outro
personagem. Debaixo da aparente segurança, pulsa um rosto temeroso; detrás de
uma face risonha há uma expressão de dor.
Agora, quando se apagam os ecos do
carnaval, é tempo de tirar as “maquiagens”. Começamos o tempo quaresmal, o tempo do “des-velamento” (tirar o véu, ou a
máscara), tempo privilegiado para deixar transparecer nossa verdade mais
profunda e nossa real identidade.
Mas, o mais curioso é que a Quaresma
começa também com um “disfarce”. Com as tentações,
percebemos que elas não são outra coisa senão o disfarce do “demônio” para enganar
e enredar Jesus. Se examinarmos bem qualquer das três tentações, nos daremos
conta de que são “disfarces do mal” “sob a aparência
de bem” (S. Inácio).
A tentação tem muito de sedutora e
maliciosa; aí está precisamente sua força de atração. A tentação é uma sedução que atrai irresistivelmente nossa liberdade,
exerce uma fascinação que nos deslumbra.
Acaso alguém quer o mal pelo mal? Acaso
alguém quer afastar-se de Deus livre, voluntária e conscientemente? A mentira
reveste-se de algo que a esconda e a apresente como verdade.
A tentação necessita revestir-se do bem
para que nós a aceitemos livremente.
A tentação nunca apresenta o rosto descoberto.
Sempre aparece escondida e disfarçada. E assim foram também as tentações de
Jesus. Tratava-se de demonstrar que realmente era Filho de Deus; ou de fazer-se
poderoso e dono do mundo; ou simplesmente demonstrar que nada lhe iria
acontecer e que ganharia a admiração de todo o mundo se pulasse da parte mais
alta do templo.
Mas, onde está o verdadeiro “disfarce”
das tentações de Jesus? Está justamente no fato de procurar justificá-las com a
Palavra de Deus. Portanto, utilizar Deus como uma justificação e legitimação para
alimentar o ego, para fazer-se o centro, para dominar... E esta é a pior tentação e o pior dos
disfarces.
Os evangelhos sinóticos (Mc, Mt e Lc) colocam o
relato das tentações de Jesus no
início de sua atividade pública. Talvez, com isso, eles estão nos dizendo que,
antes de começar o percurso quaresmal, é necessário confrontar-nos com nossos
próprios “demônios interiores”.
Sem ter passado por aí, o mais provável é que
comecemos a ver “demônios” nos outros, ou que estejamos à mercê dessas forças
que permanecem ocultas, mas bem ativas, em nós, conduzindo-nos aonde não
queríamos ir.
Os “demônios” dos quais o relato evangélico deste
domingo fala são três e que caracterizam bem o nosso ego: o ter, o poder e a vaidade
(aparentar). É neles onde o ego se entrincheira e onde se apega para sentir-se
que é “algo”. Bens materiais e consumismo, poder e influência, imagem e
prestígio: eis aí os interesses do ego. Então, é quando o instinto de viver se transforma em obsessão pela saúde e pela vida longa;
o instinto de ter se transforma em cobiça de acumular
sempre mais; o instinto de valer, em
obsessão pelo prestígio e pelo poder. É a deriva do coração humano, a inversão
de sua vocação mais profunda.
Se nos damos conta, o que se
busca detrás deles, é uma mesma coisa: segurança.
Precisamente por isso, a maneira de “desmascarar” esses “demônios” é reconhecer
suas artimanhas e descobrir a falsidade de suas promessas.
O relato das tentações
de Jesus não é “história” mas teologia; não é crônicas de um acontecimentos,
mas as tentações são descaradamente reais. Empregando símbolos conhecidos por
todos, os evangelhos nos querem fazer ver uma verdade espiritual fundamental: a
vida humana se apresenta sempre situada entre dois movimentos internos opostos:
um, de saída de si, de vida expansiva, aberta a todos, comprometida...; outro,
de retração, de medo, de fechamento no próprio “ego”. Trata-se do “joio” e do
“trigo”, presente nas raízes de nosso ser. A questão fundamental é esta: “qual
dos dois dinamismos alimentamos em nossa vida?”
Que as tentações sejam três, não é casual. Trata-se de uma síntese perfeita de todas as relações
que o ser humano pode desenvolver. A tentação consiste em entrar numa relação
equivocada conosco mesmo, com os outros e com Deus. Uma autêntica relação
humana com os outros depende, queiramos ou não, de uma adequada relação conosco
mesmo e com Deus.
1ª.
tentação: “Se és Filho de Deus, manda que
esta pedra se mude em pão”. A tentação permanente é deixar-nos levar pelos instintos,
pelos apetites, pelas “afeições desordenadas”. Ou seja, fazer em todo momento o
que o ego exige. É negar-nos continuar crescendo e superando a nós mesmos,
porque isso exige descentrar-nos, sair do círculo fechado do “eu autossuficiente”.
Nossa grande tentação hoje é converter tudo em pão. Reduzir cada vez mais o horizonte
de nossa vida à satisfação de nossas necessidades, viver obcecados por um
bem-estar sempre maior ou fazer do consumismo indiscriminado e sem limites o
ideal quase único de nossas vidas.
Estamos vendo claramente que uma sociedade que
arrasta às pessoas para o consumismo sem limites e para a auto-satisfação não
faz outra coisa senão gerar o vazio e o sem-sentido nas pessoas e alimentar o
egoísmo, a falta de solidariedade e a irresponsabilidade na convivência.
2ª.
tentação:
“Se
te prostrares diante de mim em adoração, tudo isso será teu”. O poder, em qualquer de suas expressões, é a idolatria suprema. O
poder traz sempre consigo a opressão, nunca é mediação de libertação. Adorar a
Deus não significa incensar um “deus exterior”. Trata-se de descobrir o que de Deus há em nós e viver em sintonia
com Ele. Nosso autêntico ser não está no ego aparente, mas no “eu profundo”. Se
descobrimos nosso ser essencial, não nos importaremos esvaziar nosso falso eu
e, em vez de buscar o domínio sobre o outros, buscaremos o serviço para com
todos.
3ª.
tentação:
“Se
és Filho de Deus, atira-te daqui abaixo”! Realizar um ato verdadeiramente
espetacular, para que todos vejam o quão grande somos. Todos nos exaltarão e
nossa soberba chegará ao limite.
A resposta é esta: que deixemos Deus ser Deus.
Aceitemos nossa condição de criaturas e, a partir disso, alcancemos a
verdadeira plenitude.
Que esse tempo quaresmal possa ser um tempo
precioso para “afinar” nosso interior: sermos mais sensíveis à realidade que
nos cerca, buscar nela as pegadas de Deus que nos conduzem ao encontro, e
deixar-nos alcançar pela graça de um Pai que deseja para todos nós a felicidade
e a alegria.
Texto
bíblico: Lc 4,1-13
Na oração: Para chegar a teu verdadeiro ser, é
preciso atravessar teu próprio deserto. Liberta-te de tudo que
acreditas ser, para chegar ao que és de verdade. Somente em teu próprio deserto
se desvelará o sentido verdadeiro de tua vida. Isso sim, impulsionado pelo
Espírito.
Sozinho e no deserto, tens que tomar a decisão definitiva.
A “terra prometida” já está aí, do outro lado de teu falso eu. Mantém-te
em silêncio, até que se derrube o muro que te separa de ti mesmo: o muro do
poder, da vaidade, da riqueza... Deixa que a luz, que já está em teu interior,
te invada por completo. Serás feliz e farás felizes àqueles que vivem junto de
ti.
- Como sermos fiéis seguidores(as) de Jesus se não somos conscientes das
tentações
mais perigosas que nos podem desviar hoje de seu projeto e estilo de vida?
Desmascará-las e “dar nomes”.
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