domingo, 24 de fevereiro de 2019

Misericórdia: Deus Ama a Fundo Perdido

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do 7º Domingo do Tempo Comum.


 “Sede misericordiosos, como também o vosso Pai é misericordioso”  (Lc. 6,36)

Tornar presente o Pai como Amor e Misericórdia foi, para Jesus, o cerne de sua missão: toda a sua vida foi uma eloquente demonstração da misericórdia divina para com a humanidade.
Jesus, que encarna e torna visível no mundo a misericórdia do Pai, se faz também misericordioso. Anuncia aos pecadores que eles não estão excluídos do amor do Pai, mas que Ele os ama com infinita ternura. O Evangelho só aparece como Boa-Nova se compreendermos esta novidade introduzida por Jesus.
Ele, em sua presença misericordiosa, revela um Deus desprovido de dogmatismos, de controle e de poder. O Deus de Jesus não é um juiz com um catálogo de leis que tem necessidade de mandar, controlar, verificar; o seu Deus é o Deus da misericórdia, da bondade sem limites e da paciência para com todos.
Jesus propõe um modo de ser humano inseparável da misericórdia do Pai:
                        “Sede misericordiosos como o Pai é misericordioso” (Lc 6,36)
Ser misericordioso “como” Deus constitui o mais elevado convite e a mensagem mais profunda que o ser humano recebe sobre como tratar a si mesmo e aos outros.
Deus, em sua misericórdia reconstrutora,  libera em nós as melhores possibilidades, riquezas escondidas, capacidades, intuições... e nos faz descobrir em nós, nossa verdade mais verdadeira de pessoas amadas, únicas, sagradas, responsáveis... É ele que “cava” no nosso coração o espaço amplo e profundo para nos comunicar a sua própria misericórdia. A força criativa do seu amor misericórdioso põe em movimento os grandes dinamismos de nossa vida; debaixo do modo paralisado e petrificado de viver, existe uma possibilidade de vida nova nunca ativada.

A experiência de misericórdia gera em nós uma atitude correspondente de misericórdia. O Deus miseri-cordioso cria em nós um coração novo, feito de acordo com o Seu, capaz de misericórdia (“bem-aventurados os misericordiosos porque alcançarão misericórdia”). É exatamente este o maior sinal da sua Misericórdia: ama-nos a ponto de enviar-nos ao mundo como instrumentos de Sua reconciliação, pondo em nosso coração um Amor que vai além da justiça.
A misericórdia é não só o atributo primeiro de Deus, mas também a mais humana das virtudes. É aquela que melhor revela a natureza do Deus Pai e Mãe de infinita bondade. É a que revela igualmente o lado mais luminoso da natureza humana. Por isso é a que mais humaniza as relações entre as pessoas.
A misericórdia presente em nós é modelada e alimentada pela Misericórdia divina, que se visibiliza no perdão, na compaixão, no consolo, na ternura, no cuidado...
Nossa atitude misericordiosa nos configura à imagem do Deus misericordioso. É onde somos mais seme-lhantes a Ele. A misericórdia como estilo-de-vida cristã nos descentra de nós mesmos e nos faz descer em direção ao outro, numa atitude de pura gratuidade. A vivência da misericórdia nos torna  realmente livres, e isso nos proporciona profunda alegria interior.

Uma misericórdia superabundante, generosa... é gesto gratuito e positivo de encontro, de acolhida, de cordialidade, que se torna hábito de vida: ser “presença misericordiosa”.
A espiritualidade da misericórdia contém em si a gratuidade do relacionamento, a dimensão desinteres-sada da doação. É a partir da misericórdia que a pessoa é capaz de amar os inimigos, de fazer o bem aos que a odeiam, de bendizer os que a amaldiçoam, de oferecer a outra face, de emprestar sem espe-rar recompensa, de perdoar sem limites...
A misericórdia é humilde e não humilha, porque é discreta e silenciosa. Ser presença misericordiosa não significa pôr o outro de joelhos para que reconheça seus erros; ela nasce de um coração “educado” pela Misericórdia divina e se manifesta externamente com uma atitude mansa e condescendente.
Essa Misericórdia é uma força poderosa, não se rende diante do mal, porque é sempre capaz de redescobrir o bem ou de salvar a intenção do próximo, de abrir-lhe novamente a esperança...

Entrar no movimento da misericórdia humaniza e cristifica essencialmente a pessoa, porque a miseri-córdia constitui “a estrutura fundamental do humano e do cristão”.
Fundamentalmente, a misericórdia significa assumir como própria a miséria do outro, inicialmente como sentimento que comove, mas que, logo em seguida, leva à ação. Ela brota das “entranhas” e se dirige instintivamente ao próximo na forma de proximidade, acolhida e compaixão.
Misericórdia é exatamente: “ter coração” para o outro, dando preferência aos pequenos e pobres.
A misericórdia é a caridade que “toma mãos e pés”, ou seja, o amor que se expressa em uma ação de-


cidida e generosa, capaz de transformar e libertar.
Em hebraico, a palavra “misericórdia” – “rahamim”, significa ter entranhas como uma mãe.
É comover-se diante da situação de fragilidade do outro; é sentir-se intimamente afetado e, por isso, com a disposição de ser magnânimo, clemente e benevolente para com ele.
A misericórdia recebida e experimentada é a base da atitude compassiva, não como ato ocasional mas como estilo de vida evangélico. Torna-se o fundamento e a perene inspiração de uma existência de par-tilha e solidariedade.

Ser presença misericordiosa é um “modo de proceder”, um “estilo de vida” que não está ligado a uma transgressão; é muito mais um estilo de bondade, compreensão, magnanimidade, estilo de quem não se fixa no que o outro merece nem se escandaliza com sua miséria.
"Devemos ser presença misericordiosa como pecadores, e não como justos”.
A misericórdia é fundamentalmente uma mensagem de estima e confiança no outro, crer na sua amabilidade. Por isso, a presença misericordiosa é força que provoca no outro a re-descoberta de sua própria identidade (uma pessoa amada e acolhida pelo Deus misericordioso) e ao mesmo tempo desata nele as ricas possibilidades de vida que estavam latentes.
Quem é misericordioso está convencido de que o irmão é melhor que aquilo que aparenta ser.
A misericórdia é expansiva, ela abre um novo futuro e ativa os melho-res recursos no interior de cada um. Ela não se limita ao êrro, mas impulsiona o outro a ir além de si mesmo.
Onde não há misericórdia, não há sequer esperança para o ser humano.


Textos bíblicos:   Lc 6,27-38

Na oração:
- Pedir maior consciência do Amor Misericordioso do Pai por você; que você possa deixar-se surpreender pelo Amor criativo do Deus Pai/Mãe... e participar em sua festa de reconciliação.
- Ao mesmo tempo, pedir um coração “desarmado”, pronto a re-criar (perdoar é re-criar, é dar oportunidade para alguém viver de novo).
- Entrar no “fluxo” da misericórdia divina: ser canal por onde ela circula para chegar até os outros.

domingo, 17 de fevereiro de 2019

A Felicidade Escondida nas Bem-Aventuranças

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do 6º Domingo do Tempo Comum.

“E, levantando os olhos para os seus discípulos, disse: ‘bem-aventurados vós...” (Lc 6,20)

“Ser feliz”: não há outra meta mais importante na vida de todos nós. De fato, é tão importante que se converteu em um desejo que repetimos de maneira muito frequente e, de forma especial, para as pessoas que mais amamos. Proferimos os votos de felicidade em qualquer evento, em todos os aniversários, no início de cada ano... Não podemos desprezar o excesso de nossas felicitações, por mais rotineiras que nos pareçam. Elas expressam um desejo profundo, talvez o desejo mais íntimo de nós mesmos.
“Que sejas feliz!” Que melhor sentimento que isso podemos desejar a alguém, seja ele(ela) quem for?

A proposta evangélica de felicidade tem algo a nos dizer em nosso momento atual?
A impressão que temos é que a vivência de muitos cristãos está longe de apresentar a Deus como amigo da felicidade humana, fonte de vida, alegria, saúde; na experiência de fé de muitas pessoas, o seguimento de Jesus, muitas vezes, não se associa com a idéia de “felicidade”.
Predomina, em certos ambientes ou grupos cristãos, uma doutrina dolorida e uma catequese afastada da busca humana da felicidade. O cristianismo se apresentou, durante muito tempo, como a religião da cruz, da dor, do sofrimento, da renúncia, da repressão ao prazer e à felicidade neste mundo.

Diante de tal situação, Jesus, no Evangelho de hoje, afirma categoricamente: “Felizes sois vós!”
Jesus, ao “descer à planície”, promulga seu programa “com” vida, fundado não numa ética de “deveres e obrigações”, mas numa ética de “felicidade e ventura”.
Aqui está a surpreendente novidade do projeto oferecido por Jesus. Sem sombra de dúvida, o significado das bem-aventuranças e, portanto, do programa de Jesus, é algo mais humano, mais próximo e mais ao alcance de ser entendido e vivido por qualquer pessoa de boa vontade.
O Evangelho, a “boa notícia”, é o tesouro que enche o ser humano de uma felicidade indescritível. Com efeito, a primeira característica que aparece nas bem-aventuranças é que o programa de Jesus para os seus é um programa de felicidade”. Cada afirmação de Jesus começa com a palavra “makárioi”, “ditosos”. Essa palavra, significa, em grego, a condição de quem está livre de preocupações e atribulações cotidianas.
As bem-aventuranças substituem os mandamentos que proíbem por um anúncio que atrai para a felicidade. E a promessa de felicidade não é para depois da morte. Jesus fala da felicidade nesta vida.
Conhecemos duas listas de Bem-aventuranças: a de Lucas e a de Mateus. São bastante distintas, porque uma fala dos pobres e a outra fala dos pobres “em espírito”; uma fala de fome e outra de fome de “justiça”... Costuma-se dizer que as Bem-aventuranças de Lucas são bem-aventuranças “de situação”, e as de Mateus são “de atitude”. Ou seja, enquanto Lucas diz: os que se encontram assim, os que estão nesta situação, são bem-aventurados (os que estão chorando, os que tem fome, os que são pobres...), Mateus diz: os que reagem desta maneira diante dos que choram, dos que são pobres, dos que tem fome... são bem-aventurados. É como a atitude que se toma frente aqueles que Lucas descreveu.

Antes de proclamá-las, Jesus vive intensamente as bem-aventuranças; elas são a expressão daquilo que é mais humano no seu interior; elas são seu auto-retrato. Jesus é o bem-aventurado. Ele personaliza tais atitudes: é o pobre, aquele que se comoveu diante da dor e misérias humanas, que expressa uma fome e sede de plenitude e humanização, que é incompreendido e perseguido por causa dos seus sonhos.
O Jesus que os Evangelhos nos apresentam deixa transparecer, permanentemente, um sentimento sereno e agradecido diante da vida. Ele vive apaixonado pelo Reino do Pai; Ele é um homem aberto e próximo das pessoas, com uma enorme capacidade de relação, de maneira especial diante dos mais pobres e excluídos. Mostra uma infinita confiança nas pessoas que encontra, seja qual for sua situação existencial. Ele é o portador definitivo de boas notícias. O evangelho da salvação chega até às barreiras e fronteiras humanas. Seu tempo é tempo de alegria; é a festa das bodas. Jesus nos convida a entrar na nova vida de felicidade e fraternidade. As bem-aventuranças são o caminho da felicidade.

Jesus, ao proclamar “bem-aventurados” os pobres, os famintos, os que choram, os que são perseguidos... jamais quis sacralizar a dor humana. Ao contrário, são bem-aventurados, sim, os pobres, porque, vazios de apegos e cheios de esperança, anunciam o sonho de Deus para a humanidade, uma nova sociedade baseada na solidariedade e na partilha; são bem-aventurados, sim, os famintos, porque trazem nas entranhas a fome de liberdade e sabem que o ser humano e o mundo carregam infinitas possibilidades de crescimento; são bem-aventurados, sim, os que choram porque suas lágrimas  demonstram que eles ainda não perderam a sensibilidade, que eles sentem o mundo como injusto e que, por isso, são verdadeiramente os únicos a sonharem, a buscarem e a lutarem por um mundo novo; são bem-aventurados, sim, os que são perseguidos porque seguem corajosamente a estrela do Reino e são sinal de grande transformação realizada por Deus.

As bem-aventuranças nos revelam que somos habitados por um impulso que nos torna “buscadores de felicidade”. A sociedade de consumo que invadiu tudo, realça a felicidade como a meta imediata de nossas buscas, algo ao qual temos direito e que depende de fatores externos. Esta felicidade é passageira, pois quando a alcançamos, invade de novo a insatisfação, a inquietude, o ressentimento, a inveja... e de novo empreendemos nossa busca. Assim, pois, a felicidade nos escapa quando a buscamos “fora”, como fim em si mesma, para saciar nosso ego insaciável.
A felicidade nasce dentro de nós: daquilo que sentimos, que valorizamos, que vivemos...
Por isso, as bem-aventuranças não são algo externo, mas atitudes que plenificam nossos corações.
A chave da felicidade está em permitir que se revele o sentido da luminosidade que se encontra no fundo de nosso ser. O que nos tira a energia e nos torna impotentes é afastar-nos desse princípio vital que é o Divino em cada ser.
Ser o que somos, em serenidade e profundo sentido. A felicidade, tal como a verdade e a beleza, ao se revelar a nós, desata a potencialidade daquilo que somos e de tudo o que é.
Nesse sentido, felicidade pode ser entendida como um “estado de espírito”; felicidade é viver sem chegada, sem partida; é experimentar uma sensação de renascimento de satisfação interior... ou sentir despertar em si um potencial de bondade, de compaixão, de solidariedade...muitas vezes desconhecida.
A verdadeira felicidade coincide com a paz interior; é o prazer de descobrir, cada dia, que a vida se inicia novamente em cada amanhecer; é fazer da mesma vida uma grande aventura...
Por isso, a felicidade está relacionada com a gratuidade e com a gratidão.

Texto bíblicoLc. 6,17.20-26

Na oração:
“Empalavrar” (pôr em palavras) as bem-aventuranças que brotam do seu coração, aquelas que lhe inspiram e dão sentido à sua existência, como seguidor(a) de Jesus.


sábado, 9 de fevereiro de 2019

Viver em Redes... Sem Enredar-se

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do 5º Domingo do Tempo Comum.

“Avança para águas mais profundas, e lançai vossas redes...” (Lc 5,4)

Indiscutivelmente, Jesus é o misterioso visitante que cada dia chega até nós para advertir que precisamos nos libertar do tedioso cotidiano, quando ele se torna convencional e, não raro, carregado de desencanto, pesado, estressante... Corremos o risco de sermos apenas imitadores ou repetidores, pois tememos nos perder na busca do novo, bloqueando o desenvolvimento pessoal e comunitário.
O encontro com Jesus nos arranca da rotina, do “sempre fizemos assim” e nos desafia a “pescar” de maneira diferente; sua presença alarga nossa mente e nosso coração instigando-nos a sair dos nossos estreitos mares e entrar no movimento do vasto mar que Ele nos oferece.
Em quê grau Sua presença nos desperta para aquilo que devemos ser como seus(suas) seguidores(as)?
São grandes os riscos de vivermos em mares tão estreitos; é cômodo perceber, delimitar, defender e fechar-nos no próprio mar. Isso fazemos de maneira tão zelosa que nem vemos aquilo que está para além da margem onde nos estabilizamos.
Tal estreiteza de vida aprisiona a solidariedade e dá margem à indiferença, à insensibilidade social, à falta de compromisso com as mudanças que se fazem urgentes. O próprio espaço se torna uma couraça e o sentido do serviço some do horizonte inspirador de tudo aquilo que se faz.

Hoje, o lago de Tiberíades se converteu numa grande rede que abarca o mundo inteiro. Mas, o que as pessoas buscam nessa grande rede? E, sobretudo, o quê estamos oferecendo nela para evangelizar?
Com um só click podemos chegar a milhões de pessoas, podemos fazer muito bem, mas também podemos criar muita confusão e inclusive repulsa, podemos levar a mensagem de Jesus ou simplesmente fazer transparecer todo o nosso ego inflado, cheio de si mesmo. As redes sociais têm seus perigos, mas também tem suas grandes oportunidades que não podemos desperdiçar. Vamos nos dando conta que, enquanto não evangelizemos a partir dos meios eletrônicos modernos, não poderemos encher nossas redes de peixes. O seguimento de Jesus implica hoje a necessidade de evangelizadores nas redes sociais.
Tendo as ferramentas em mãos (nossas pobres barcas e redes) e sendo portadores de uma mensagem de vida (o evangelho) somos movidos por Jesus a “ser pescadores do humano”.
No mar das redes sociais ressoa mais uma vez o apelo de Jesus: “fazei-vos pescadores do humano”.
Frente a esta nova realidade, quê tipo de profecia responde melhor a nossa peculiar forma de cooperar na missão do Espírito do Abbá e de Jesus.
Estamos no mundo das telas: através delas nos interconectamos, transmitimos informações, saberes. As diversas telas tendem à convergência: com um só dispositivo, fixo ou móvel, podemos falar, enviar e receber fotos, música, vídeos e qualquer tipo de arquivo; com o “boom” das redes sociais podemos fazer isso com o grupo que elegemos em cada momento.

Se há algo que caracteriza nosso tempo é a nova consciência de ser rede-comunhão-interconexão-unidade. Encontramo-nos em um tempo surpreendente: as espetaculares inovações tecnológicas nos convidam a entrar numa inimaginável rede de informações, imagens, conexões... Nosso planeta está dotado de uma complexíssima textura de comunicações. Com apenas alguns clics oferece-se, diante de nós, um mundo complexo, de graça e maldade, de alianças para o bem e para o mal, de luzes e trevas.
E aí estamos nós, seguidores(as) de Jesus, “en-redados(as)”, nos perguntando por nossa identidade cristã, na vivência do Evangelho e na missão de nos fazer presentes neste “novo mundo”.
Todos já sabemos que tudo está interconectado: a globalidade é interação. Lentamente vai-se tomando consciência de que formamos parte de um todo. A realidade vai se revelando como um manto sem costuras, sem fraturas, onde todos estamos implicados e comprometidos.

“Rema mar adentro!”, ressoa a voz de Jesus. A multidão permanece em terra; somente Pedro e seus companheiros se adentram no mar profundo. Este apelo de Jesus é muito simbólico. Em grego “bados” e em latim “altum” significam profundidade (alto mar); só nas profundezas é que se pode extrair o mais autêntico do ser humano, o que é mais nobre e divino.
Tudo o que, em vão, buscamos na superfície, está dentro de nós. Mas, ir mar adentro não é tão fácil como pode parecer. Exige ultrapassar as seguranças do “eu superficial” e adentrar-nos nas incontroladas águas de nosso ser profundo. Confiar naquilo que não controlamos exige uma fé-confiança autêntica. Dizia Teilhard de Chardin: “Quando descia ao profundo de meu ser, chegou um momento em que não ‘dava mais pé’ e parecia que me deslizaba para o vazio”.
O mar era o símbolo das forças do mal. “Pescar homens” era um dito popular que significava tirar alguém de um perigo grave. Não quer dizer, como se entendeu com frequência, fazer proselitismo ou converter as pessoas à força para a religião cristã. Aqui quer dizer: ajudar as pessoas a sair de todas as opressões que lhe impedem crescer e desenvolver suas potencialidades. Só pode ajudar o outro a sair da influência do mal aquele que encontrou o que é mais verdadeiro e nobre dentro de si mesmo.

Neste contexto atual, onde corremos o risco de nos converter em pessoas “grudadas” a uma tela, se faz mais necessário que nunca humanizar a rede para “pescar o humano” que está escondido no oceano interior de cada um. Esta humanização requer, em primeiro lugar, muita responsabilidade.
Tudo isto nos leva a pensar que na rede há uma grande necessidade de silêncio (“silêncio na rede”), precisamente para que possamos ouvir a verdade com amor. Há excessivas palavras que afogam, notícias falsas, “bullings”, campanhas desqualificadoras e comentários feitos com extrema má educação. Sobretudo nas páginas religiosas, precisamos de um silêncio construtivo para que se escute a verdade que liberta.
Silêncio construtivo significa utilizar uma linguagem propositiva, compreensiva, que estenda pontes de diálogo, que escute o outro que é diferente, que leve em conta o que “o outro” diz, talvez um aspecto da realidade que nos tinha escapado.
Silêncio construtivo significa tomar partido pelos mais fracos e excluídos; significa usar uma linguagem que sare as feridas, que reconstrua os vínculos quebrados. Uma página (mensagem) que só busca condenar, que só revela intolerância e preconceito, não pode ser evangélica. Literalmente, “há demasiado disparos” que desumanizam. Precisamos do azeito do consolo que cura as feridas, o vinho da esperança que nos une como irmãos acima das diferenças, o pão da compaixão que alimenta e eleva ...
É preciso fazer a “travessia” do estreito mar de nossa vida, onde nossas inúteis barcas e redes só “pescam” futilidades e lixo, para o grande oceano que Jesus nos oferece, carregado de vida e vida em plenitude.

Texto bíblicoLc 5,1-11

Na oração:
“Rema mar adentro e desce ao profundo de teu ter!”
É um convite dirigido a todo ser humano. Sem essa profundidade, não é possível a plenitude humana. A contemplação é o único caminho.
“Não é necessário que percorras os mares buscando alimento; aprende a pescar em teu próprio mar interior; o que com tanto afinco buscas fora de ti, já tens ao alcance da mão, dentro de ti.

Se não tens pescado nada, que poderás oferecer aos outros? Se não tens aprendido a pescar, como poderás ensinar a outros? Dá verdadeiro sentido à tua vida e ajudarás os outros a atingir o mesmo”. (cf. Fray Marcos)

sábado, 2 de fevereiro de 2019

A Força de uma Palavra Inspirada

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do 4º Domingo do Tempo Comum.

 “Quando ouviram estas palavras de Jesus, todos na sinagoga ficaram furiosos” (Lc 4,28)

O Evangelho deste domingo é inspirador: as pessoas se admiram com as “palavras cheias de encanto que saíam da boca de Jesus”. Palavras que despertam assombro nelas; palavras diferentes que ativam suas vidas, palavras que não deixam ninguém indiferente; palavras provocativas porque carregam o impulso do novo; palavras que incomodam porque lhes faziam perguntar por suas próprias palavras, seu modo habitual de ser e de viver...
A primeira reação dos ouvintes foi de admiração pela pessoa de Jesus e por sua mensagem. Mas, rapidamente, passaram da admiração à surpresa: quem pensa ser ele, para dizer tais coisas? «Não é este o filho de José”?  Reduzem-no assim à sua herança natural; não haviam entendido que, dali em diante, têm à sua frente um novo Jesus, o Filho muito amado do Pai. A única razão que dão para rejeitar as pretensões de Jesus é que Ele é simplesmente mais que um do povoado, conhecido de todos.

Isto é revelador por parte do evangelista Lucas. No início de sua vida pública, Jesus se revela como uma presença original, pois sendo “um entre tantos”, no entanto, sua presença despertava perguntas, dúvidas e até incompreensões e discussões. Todo seu povoado o via como um homem a mais, um galileu a mais.
Mas, sendo “um entre tantos”, começou a pensar, viver e agir com um estilo único que o diferenciava de todos. A grandeza de Jesus está justamente em que, sendo um no meio de tantos, foi capaz de descobrir o que Deus esperava d’Ele.
Jesus não é um extraterrestre que traz poderes especiais de outro mundo, mas um ser humano que tira da profundidade de seu ser o que Deus colocou no coração de todos. Fala daquilo que encontrou no seu interior e nos convida a descobrir em nós o mesmo que Ele descobriu.
Sua vida começou a desconcertar as pessoas; seu modo original de falar desconcertava a todos; sua liberdade de espírito e seus critérios desconcertavam as pessoas. Diante d’Ele só lhes restava fazer perguntas: quem é Ele? Como explicar sua proposta de vida?

Jesus não quis deixar o mundo como o encontrou; Ele não veio ao mundo para deixá-lo tal como estava; Jesus veio mudar as coisas e deixar-nos um mundo diferente; não um mundo com soldas e remendos, mas um mundo mais habitável. Por isso, no início de sua vida pública, Ele se revela como uma presença   diferente, apresentando a proposta de um mundo diferente.
Tudo o que era antigo chegou ao fim; um mundo novo está aberto, diante de todos.
Pois, agora, a hora chegou. Os ouvintes de Jesus entendem que vão ter de mudar, de transformar-se. E isto é inquietante: estavam tão tranquilos até aquele momento.
As pessoas de sua comunidade viviam mergulhadas na inércia, no costumeiro e não queriam se abrir ao novo, às mudanças. Preferiam a vulgaridade de ser como todo o mundo à originalidade de ser diferente; preferiam a monotonia de viver como todos e passar desapercebido na massa, sem derpertar a atenção para uma original e provocativa presença.
Os moradores de Nazaré estavam fechados à presença divina. E nos oferecem, assim, uma imagem daquilo que, com frequência, também vivemos: o julgamento que fazemos dos outros, o nosso preconceito e a nossa intolerância diante de quem pensa, sente e vive de maneira diferente.

As palavras de Jesus na sinagoga de Nazaré questionam, também hoje, o sentido que nossas palavras têm; elas nos fazem tomar consciência daqueles que se sentem movidos por nossas palavras, nos fazem perguntar sobre a inspiração e a força das palavras que brotam do nosso interior.
Quantas palavras temos dito ou escrito hoje? Talvez tenhamos enviado um e-mail; ou feito um comentário no WhatsApp ou no blog de um amigo; ou tenhamos conversado junto a uma mesa de bar, partilhando conselhos, trocando ideias...; ou tenhamos falado com nossa mãe pelo telefone...
Vivemos saturados de palavras. Elas nos assaltam nas canções, estão nos perfis virtuais, nos livros, em mil e uma conversações. Falamos, dizemos, escrevemos, escutamos, lemos...
E de tanto usá-las, talvez as palavras tenham perdido o sentido.  Estamos tão acostumados a proferi-las que não nos damos conta do muito que significam. Então falamos, mas não vivemos; digitamos palavras, mas não transmitimos calor humano. Assustam-nos converter a palavra em palavreado crônico.
Há palavras que se gastam de tanto serem usadas; há afirmações que, de tanto serem repetidas, perdem sua força. Palavras que perdem seu valor, caindo no terreno comum das “coisas baratas”. Pronunciar, sem enrubescer, palavras que deveriam ser ditas com extremo cuidado como compaixão, justiça, amor, vida... É bonito pensar no poder das palavras, ou em nosso poder e responsabilidade ao pronunciá-las.

Sabemos que o ser humano chegou a ser o que é graças a esse dom evolutivo que é a palavra; ela nos permite pensar, dar nomes às coisas, aos outros seres, às emoções que sentimos dentro de nós e comunicar-nos eficazmente com nossos semelhantes.
Claro que, como somos seres complexos, esse dom, que é nossa capacidade verbal, pode ser usada para diferentes fins. Podemos utilizá-la para reconhecer e transmitir o que de verdade sentimos ou pensamos ou enganar-nos a nós mesmos e aos nossos interlocutores.
A diferença radical está no fato de que com a palavra podemos cuidar, acariciar, conhecer, irradiar consolo ou amor, ser artífices de paz e sossego... Ou, podemos gerar ódios, rancor, alimentar preconceitos e julgamentos, provocar invejas, trair, dividir...
Nas “sinagogas pós-modernas” (redes sociais) temos a oportunidade de proferir palavras que ampliam a vida, elevam o outro, abrem horizontes de sentido...; elas também se revelam como o espaço onde escutar palavras oriundas de um coração e uma mente diferentes, que despertam mudanças, a busca do novo... Infelizmente, como nos tempos de Jesus, também este ambiente tem sido o local da expressão de palavras ásperas de julgamento e de indiferença, carregadas de preconceito e intolerância. Ali encontramos a soberba disfarçada de verdade, o conservadorismo farisaico que cria distâncias, o medo camuflado de firmeza, as inseguranças alimentando divisões... Estas atitudes nunca deixam espaço para o novo, a renovação torna-se impossível e a inovação se extingue... Nesses ambientes disfarçados de ortodoxia, fundamentalismo, moralismo, legalismo... nem o Espírito tem espaço para atuar e inspirar “palavras de vida”.
Jesus foi “deletado de sua comunidade” porque ousou pensar de maneira diferente; o seu anúncio e as suas opções rompiam com esquemas mentais arcaicos e petrificados.
Por isso, dentro de nossas sinagogas atuais, é preciso alimentar mais sobriedade frente à “falação” vazia”; mais sinceridade frente à mentira; mais acolhimento frente à indiferença...
Talvez o silêncio pode ser algo novo quando não se tem uma palavra diferente que dizer. Mas é certo que se cheguemos a dizer algo novo, algo nosso, há uma terra sedenta que espera ansiosa essa chuva.


Texto bíblico: Lc 4,21-30

Na oração:
Diante das palavras que brotam de minha sinagoga interior, perguntar-me:
- Quantos se sentem tocados pelas minhas palavras? Quantos daqueles que as escutam se sentem anima-dos, vibrantes, curados... Até onde falo daquilo que vivo? Minhas palavras despertam o coração das pessoas?
- Ou, pelo contrário, quantos daqueles que me escutam se sentem entendiados e cansados diante de meu pala-vreado crônico, de minhas críticas ácidas, de meus julgamentos preconceituosos?