“Mas tu guardaste o vinho melhor até
agora!”
(Jo
2,10)
O
Evangelho deste domingo parece estar fora de contexto. Estamos no tempo
litúrgico “Ano C” e deveríamos ter presente algum texto do evangelista Lucas. O
motivo é que, antigamente, na festa da Epifa-nia, celebrava-se três
acontecimentos: a adoração dos Magos,
o Batismo de Jesus e as Bodas de Caná.
Atualmente,
no dia da Epifania só se celebra o encontro dos Magos com o Menino Jesus; e a
liturgia continua celebrando os outros dois acontecimentos nos dois domingos
seguintes (1º. e
2º. dom. do Tempo Comum). Por esta razão, lemos o evangelho de João, que é o
único que relata as Bodas de Caná.
O evangelista João não diz que
Jesus fez “milagres” ou “prodígios”. Ele os chama “sinais”, porque são gestos
que conduzem a realidades profundas e decisivas para nossa transformação interior,
e que nossos olhos nem sempre conseguem perceber.
Concretamente, os “sinais” que Jesus
realiza, orientam para sua pessoa e nos fazem descobrir sua força salvadora. Nessa
“transformação da água em vinho” nos é proposta a chave para captar o tipo de
transformação salvadora que Jesus realiza e que, em seu nome, seus(suas)
seguidores(as) devem oferecer.
O
mais surpreendente, no evangelho de hoje, é que João usa a imagem de um casamento para falar-nos das relações
de Deus com a humanidade. Tudo acontece no contexto de um casamento, a festa humana por
excelência, o símbolo mais expressivo do amor, a melhor imagem da tradição
bíblica para evocar a comunhão definitiva de Deus com o ser humano.
A salvação de Jesus
Cristo deve ser vivida e oferecida por seus seguidores como uma festa que dá
plenitude às festas humanas, quando estas ficam vazias, “sem vinho” e sem
capacidade de preencher o desejo de felicidade total.
Deus se manifesta em todos os
acontecimentos que nos instigam a viver com mais sabor; Ele não quer que
renunciemos a nada do que é verdadeiramente humano. Deus quer que vivamos o
divino naquilo que é o cotidiano e o normal da vida. A ideia do sofrimento, da
mortificação e da renúncia como exigência divina não tem espaço na experiência
evangélica. Deus está presente onde os homens e mulheres se amam, se atrevem a
iniciar a travessia da vida na intimidade solidária, em bodas íntimas, mas
abertas à solidariedade universal.
Ali, nas bodas de Caná, pode-se
fazer memória, sem medo e sem mentira, do Deus de Jesus.
Deus é “festeiro”
e, certamente, a festa das Bodas de Caná é uma ocasião privilegiada para
“sentir e saborear” a presença amorosa d’Ele em nossas vidas. Tal celebração
deixa transparecer que Deus não está presente só nos ritos religiosos externos
(mais missas sem o pão abundante, mais novenas sem compromissos, mais
sacrifícios sem espírito solidário...), mas na festa da vida, no pão e
no vinho compartilhados com todos, começando pelos mais pobres e excluídos...
“Nosso
Deus sempre vem a nós em festa. Deus é festa”.
À semelhança do amor, a festa
tem caráter de gratuidade dentro de um mundo mercenário e ingrato
que nos cerca; uma gratuidade sem pressas e sem urgências. O ápice da festa é
gratuito. Justamente por isso a festa tem algo a ver com o mistério
da vida; é esta vida, plena e plenificante, que brota gratuitamente do
meio da festa. Por isso, festa não é superficialidade, mas
manifestação do mais profundo da vida; ela traz à tona o sentido
daquilo que se vive e daquilo que se espera.
A festa verdadeira é subversiva:
nasce da vida e remete à vida.
A mensagem do evangelho
de hoje para nós é muito simples, mas provocadora. Nem os ritos e nem as abluções
podem purificar o ser humano. Só quando saboreia o vinho-amor do seu interior, ele ficará todo limpo e purificado.
Quando ele descobre Deus presente e atuante dentro de si mesmo e identificado
com todo o seu ser, será capaz de viver a imensa alegria que nasce desta
profunda unidade. Portanto, o melhor vinho
está para ser servido e está escondido no centro de cada um.
Toda
pessoa possui dentro de si uma profundidade
que é o seu “mistério” íntimo e
pessoal.
Na adega interna existe um vinho guardado que procura se expressar (sentimentos, emoções, ati-tudes e valores, crenças,
percepções, motivações...). O
melhor
de cada pessoa é gestado na profundeza de sua vida; às vezes demora tempo em
aflorar, mas está aí latente, esperando um olhar ou uma voz que venha
despertá-lo. Quanto mais ela mergulha no seu íntimo, mais percebe esta
riqueza.
Só
quando a pessoa se deixa “habitar” por Deus, a água interior vai se
transformando num delicioso vi-nho. E quando o vinho é provado, canta no coração. O vinho é sempre da melhor qualidade, sempre pró-
ximo e
fácil. É o vinho presente no “eu profundo” que plenifica tudo o que
a pessoa é e faz, que dá um sabor especial à sua vida e ao seu compromisso.
“Sentir e
saborear interiormente”
é expressão da mística inaciana; só quem é capaz de saborear o “vinho interior” de suas riquezas,
dons, intuições, inspirações... estará mobilizado para “sentir e saborear” a
realidade habitada pela presença d’Aquele que é Fonte dos Vinhos mais nobres.
Por isso, é preciso “habitar a
própria casa”, aprender a se conectar com as fontes profundas da Vida que
nutrem a existência e acalmam a sede de vida plena que pulsa em todos os corações.
O vinho que brota do coração nos purifica
continuamente, nos transforma, dá um
impulso vibrante à nossa vivência cristã e, ao mesmo tempo, fornece o elemento
vital necessário para que alimentemos novas festas. Não se trata simplesmente
de fazer banquetes, mas ser banquete de refeição e amor, de vinho para todos,
uma mesa redonda como o mundo: abrir um espaço e tempo de bodas sobre o
universo de Deus, sobre o amplo solo da terra, com Jesus como convidado
(ensinando-nos a transformar a água em vinho), com Maria como animadora, os
convidados como comunidade festiva.
O decisivo é ter acesso ao vinho interior de recursos e energias que procuram chegar à tona,
mas muitas vezes encontram resistências e dificuldades.
É preciso “descer”
até às profundezas para descobrirmos uma nova fonte para a nossa vida; é
“descendo” que poderemos revitalizar a vida que se tornara
vazia, ressequida e sem sabor.
Somente quando escutamos a voz
que vem lá de dentro e lhe damos a devida atenção é que poderemos encontrar o
verdadeiro sabor da vida. Somente ali poderemos recomeçar uma nova relação com
Deus e com os convidados; somente ali poderemos sentir quem é Deus e o que é a
Sua Graça. Alí nos situamos como realmente somos, mergulhamos nas
intenções mais profundas e puras, encontramo-nos cara a cara, como que feitos
para a eternidade.
Texto bíblico: Jo 2,1-11
Na oração:
- A água transformada em vinho é símbolo de festa, de
partilha...
- Chegou o dia da festa para todos, de uma festa
que não acaba. A alegria é sem
fim porque Deus sempre tira mais e mais vinho para brindar.
-
Sua experiência de Deus é vivida somente nos tempos de oração-celebração, ou
também é sentida no ritmo cotidiano de sua vida?
-
Quem é o Deus em quem você crê? É o Deus da lei, do sacrifício, cuja presença
atrofia tudo o que é humano...
Ou
é o Deus de ternura, o Deus da vida e da festa...?
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