domingo, 27 de janeiro de 2019

Mais Coração nas Mãos

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do 3º Domingo do Tempo Comum.

“Para libertar os oprimidos e para proclamar um ano da graça do Senhor” (Lc 4,18-19)

O Espírito conduziu Jesus para a experiência do deserto; agora, o mesmo Espírito do Deus do Reino impele Jesus para o deserto da existência humana, ou seja, ser presença inspiradora e comprometida em favor dos últimos, dos mais pobres, dos excluídos e marginalizados da sociedade. Os primeiros a experimentarem essa vida mais digna e livre que Deus quer para todos são justamente aqueles para os quais a vida não é vida.
Podemos, então, dizer que a primazia dos últimos inspirou sempre a atividade de Jesus a serviço do reino de Deus. Para Ele, os últimos são os primeiros. Ser compassivo como o Pai exige buscar a justiça de Deus começando pelos últimos.
Lucas captou isso muito bem quando apresenta Jesus na sinagoga de Nazaré, aplicando-se a si mesmo as palavras do profeta Isaías (62,1-2). Aqui Jesus apresenta seu “projeto com vida”, ou seja, começar sua missão resgatando a vida dos últimos, para torná-la mais sadia, mais digna e mais humana.
Fala-se aqui de quatro grupo de pessoas: os “pobres”, os “cativos”, os “cegos” e os “oprimidos”. Eles resumem e representam a primeira preocupação de Jesus: aqueles que Ele carrega no mais profundo de seu coração de Profeta do Reino.  Ele quer deixar claro que os últimos são os prediletos de Deus.

O Deus de Jesus não é o aliado de uns poucos, nem é o Deus dos piedosos, dos poderosos e dos sábios. É, sobretudo, o Deus dos marginalizados, dos excluídos, dos enfermos e pecadores. O caminho para um mundo mais digno e ditoso para todos começa a ser construído a partir deles. Esta primazia é absoluta; é Deus que quer assim. Não deve ser menosprezada por nenhuma política, ideologia ou religião.
Só estaremos em sintonia com o coração do Deus de Jesus se estivermos com “o coração nas mãos”, comprometidos com a causa da “massa sobrante” (D. Luciano). Caso contrário, estaremos nos relacionando com um ídolo. Uma religião, conivente com qualquer tipo de exclusão e violência, é idolátrica.
Não podemos esquecer esta verdade: a “opção pelos pobres e contra a pobreza”, tal como aparece no evangelho, não é uma questão ideológica, filantrópica ou político-partidário, nem uma moda posta em circulação depois do Vaticano II e Medellín. É a opção do Espírito de Deus e que anima a vida inteira de Jesus na busca do Reino e sua justiça. Deus não pode reinar no mundo sem fazer justiça aos últimos.
Esta afirmação traz consigo o seguinte: o amor aos pobres e contra a pobreza é dom de Deus.
O amor aos empobrecidos nasce do encontro vivo e existencial com o Senhor Jesus, que rico se fez pobre (2Cor. 8,9). Deus ama os pobres simplesmente porque eles são pobres, “porque assim é do seu agrado” (Mt 11,25). E os pobres, os preferidos de Deus, são empobrecidos efetivos, reais e concretos, vítimas de estruturas sociais e políticas injustas. Ou seja, a opção de Deus pelos pobres é absolutamente gratuita. Também a nossa opção, que é uma resposta à interpelação do rosto do empobrecido, nasce da absoluta gratuidade de Deus e é chamada a manifestar esta gratuidade.

Como cristãos, somos seguidores(as) de uma pessoa e não de uma religião, de uma doutrina, de uma moral. O seguimento de Jesus, escola de liberdade cristã, dá ao amor preferencial pelos pobres, por todos os pobres, a verdadeira dimensão e o verdadeiro sentido da nossa existência cristã; sem esse amor pelos pobres caímos numa prática religiosa estéril, desprovida de humanização.
A opção pelos empobrecidos não significa assumir o lugar deles; trata-se de devolver a eles o protagonismo de sua história e a autonomia de seu destino.
O envolvimento com o “outro” (excluído, pobre, marginalizado...) nos conduz à autenticidade, à libertação de apegos e avareza, à liberdade para partilhar e receber e a uma imensa felicidade.
O encontro com o “outro” marginalizado dá um toque especial à nossa espiritualidade e nossa espiritualidade faz nossa ação mais radical – mais enraizada em si mesma e vai mais a fundo nas raízes da injustiça. Aproximar-nos do empobrecido e deixar-nos “afetar” pelo seu sofrimento torna-se a maior fonte de nossa espiritualidade.
Suas “fraquezas” suscitam em nós o melhor de nós mesmos e, ao nos envolver afetivamente em sua vida, fazem com que vivamos um misto de ternura e indignação,  a que chamamos compaixão.

Na experiência de “convivência” com os empobrecidos adquirimos os valores evangélicos da capacidade de celebrar, da simplicidade, da hospitalidade... Eles têm um jeito de nos trazer de volta para o essencial da vida. Eles são uma fonte de esperança, de autenticidade. Eles se tornam nossos amigos.
     “Nosso compromisso de seguir o Senhor pobre, naturalmente nos faz amigos dos pobres” (S. Inácio).

Na medida em que o(a) seguidor(a) de Jesus se vê interpelado pelo rosto do empobrecido e age, esta sua ação revela a compaixão de Deus. A nossa ação deve fazer resplandecer a compaixão de Deus pelos últimos e excluídos.
Quem é possuído pelo ágape de Deus é sensível e comprometido com o mundo dos empobrecidos.
O amor preferencial pelos empobrecidos é divino, antes de ser humano. E o ser humano só pode assumi-lo como seu porque antes o contemplou na prática salvadora e amorosa de Jesus Cristo, e porque este amor foi por Deus colocado no mais profundo do seu coração.
Nos Evangelhos, Jesus Cristo é o pobre e o servidor por excelência, Aquele que, a partir de sua condição divina, se encarna, se esvazia e assume o lugar dos últimos. O seguimento de Jesus pobre é a única via de acesso ao mistério glorioso do amor de Deus. A opção pelos pobres e contra a pobreza, tal como aparece na Igreja latino-americana é, portanto, uma opção de amor.

Seguir Jesus hoje é prolongar, criativamente, a sua presença e o seu compromisso junto aos mais excluídos, vítimas da ganância humana. Somos, portanto, chamados construir uma “cultura da solidariedade e partilha”. Significa viver de modo que a solidariedade constitua um pilar em nosso projeto de vida.
A solidariedade implica encontrar-se com o “mundo do sofrimento, da injustiça, da fome... e não ficar indiferente”. A solidariedade, que nasce da compaixão, leva a reconhecer no outro (sobretudo o outro que é excluído) uma dignidade e uma capacidade criativa de superar sua situação.
Isto pede de nós uma atitude de abertura ao outro, o que implica colocar-nos em seu lugar, deixar-nos questionar e desinstalar por ele... Importa, pois, re-descobrir com urgência a solidariedade como valor ético e como atitude permanente de vida, frente a um contexto social e político que alimenta o que é mais funesto no ser humano: o impulso da violência covarde que se visibiliza na “posse de armas”.


 Texto bíblico: Lc 4,14-21

Na oração:
A experiência de encontro com Jesus na sinagoga de Nazaré desperta em nós a compaixão para com o outro que é excluído, marginalizado, pobre... Somos chamados a viver a solidariedade como um estilo de vida, fundado no modo de viver de Jesus.
- Frente ao mundo dos empobrecidos, sua vida transborda com-paixão, compromisso, acolhida... ou, indiferença, preconceito, julgamento...? 

O Melhor Vinho está Dentro de Nós

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho do 2º Domingo do Tempo Comum.

“Mas tu guardaste o vinho melhor até agora!” (Jo 2,10)

O Evangelho deste domingo parece estar fora de contexto. Estamos no tempo litúrgico “Ano C” e deveríamos ter presente algum texto do evangelista Lucas. O motivo é que, antigamente, na festa da Epifa-nia, celebrava-se três acontecimentos: a adoração dos Magos, o Batismo de Jesus e as Bodas de Caná.
Atualmente, no dia da Epifania só se celebra o encontro dos Magos com o Menino Jesus; e a liturgia continua celebrando os outros dois acontecimentos nos dois domingos seguintes (1º. e 2º. dom. do Tempo Comum). Por esta razão, lemos o evangelho de João, que é o único que relata as Bodas de Caná.

O evangelista João não diz que Jesus fez “milagres” ou “prodígios”. Ele os chama “sinais”, porque são gestos que conduzem a realidades profundas e decisivas para nossa transformação interior, e que nossos olhos nem sempre conseguem perceber.
Concretamente, os “sinais” que Jesus realiza, orientam para sua pessoa e nos fazem descobrir sua força salvadora. Nessa “transformação da água em vinho” nos é proposta a chave para captar o tipo de transformação salvadora que Jesus realiza e que, em seu nome, seus(suas) seguidores(as) devem oferecer.

O mais surpreendente, no evangelho de hoje, é que João usa a imagem de um casamento para falar-nos das relações de Deus com a humanidade. Tudo acontece no contexto de um casamento, a festa humana por excelência, o símbolo mais expressivo do amor, a melhor imagem da tradição bíblica para evocar a comunhão definitiva de Deus com o ser humano.
A salvação de Jesus Cristo deve ser vivida e oferecida por seus seguidores como uma festa que dá plenitude às festas humanas, quando estas ficam vazias, “sem vinho” e sem capacidade de preencher o desejo de felicidade total.
Deus se manifesta em todos os acontecimentos que nos instigam a viver com mais sabor; Ele não quer que renunciemos a nada do que é verdadeiramente humano. Deus quer que vivamos o divino naquilo que é o cotidiano e o normal da vida. A ideia do sofrimento, da mortificação e da renúncia como exigência divina não tem espaço na experiência evangélica. Deus está presente onde os homens e mulheres se amam, se atrevem a iniciar a travessia da vida na intimidade solidária, em bodas íntimas, mas abertas à solidariedade universal.
Ali, nas bodas de Caná, pode-se fazer memória, sem medo e sem mentira, do Deus de Jesus.

Deus é “festeiro” e, certamente, a festa das Bodas de Caná é uma ocasião privilegiada para “sentir e saborear” a presença amorosa d’Ele em nossas vidas. Tal celebração deixa transparecer que Deus não está presente só nos ritos religiosos externos (mais missas sem o pão abundante, mais novenas sem compromissos, mais sacrifícios sem espírito solidário...), mas na festa da vida, no pão e no vinho compartilhados com todos, começando pelos mais pobres e excluídos...
“Nosso Deus sempre vem a nós em festa. Deus é festa”.
À semelhança do amor, a festa tem caráter de gratuidade dentro de um mundo mercenário e ingrato que nos cerca; uma gratuidade sem pressas e sem urgências. O ápice da festa é gratuito. Justamente por isso a festa tem algo a ver com o mistério da vida; é esta vida, plena e plenificante, que brota gratuitamente do meio da festa. Por isso, festa não é superficialidade, mas manifestação do mais profundo da vida; ela traz à tona o sentido daquilo que se vive e daquilo que se espera.
A festa verdadeira é subversiva: nasce da vida e remete à vida.

A mensagem do evangelho de hoje para nós é muito simples, mas provocadora. Nem os ritos e nem as abluções podem purificar o ser humano. Só quando saboreia o vinho-amor do seu interior, ele ficará todo limpo e purificado. Quando ele descobre Deus presente e atuante dentro de si mesmo e identificado com todo o seu ser, será capaz de viver a imensa alegria que nasce desta profunda unidade. Portanto, o melhor vinho está para ser servido e está escondido no centro de cada um.
Toda pessoa possui dentro de si uma profundidade que é o seu “mistério”  íntimo e pessoal.
Na adega interna existe um vinho guardado que procura se expressar (sentimentos, emoções, ati-tudes e valores, crenças, percepções, motivações...). O melhor de cada pessoa é gestado na profundeza de sua vida; às vezes demora tempo em aflorar, mas está aí latente, esperando um olhar ou uma voz que venha despertá-lo. Quanto mais ela mergulha no seu íntimo, mais percebe esta riqueza.
Só quando a pessoa se deixa “habitar” por Deus, a água interior vai se transformando num delicioso vi-nho. E quando o vinho é provado, canta no coração. O vinho é sempre da melhor qualidade, sempre pró-

ximo e fácil. É o vinho presente no “eu profundo” que plenifica tudo o que a pessoa é e faz, que dá um sabor especial à sua vida e ao seu compromisso.
“Sentir e saborear interiormente” é expressão da mística inaciana; só quem é capaz de saborear o “vinho interior” de suas riquezas, dons, intuições, inspirações... estará mobilizado para “sentir e saborear” a realidade habitada pela presença d’Aquele que é Fonte dos Vinhos mais nobres.
Por isso, é preciso “habitar a própria casa”, aprender a se conectar com as fontes profundas da Vida que nutrem a existência e acalmam a sede de vida plena que pulsa em todos os corações.

O vinho que brota do coração nos purifica continuamente,  nos transforma, dá um impulso vibrante à nossa vivência cristã e, ao mesmo tempo, fornece o elemento vital necessário para que alimentemos novas festas. Não se trata simplesmente de fazer banquetes, mas ser banquete de refeição e amor, de vinho para todos, uma mesa redonda como o mundo: abrir um espaço e tempo de bodas sobre o universo de Deus, sobre o amplo solo da terra, com Jesus como convidado (ensinando-nos a transformar a água em vinho), com Maria como animadora, os convidados como comunidade festiva.
O decisivo é ter acesso ao vinho interior de recursos e energias que procuram chegar à tona, mas muitas vezes encontram resistências e dificuldades.
É preciso “descer” até às profundezas para descobrirmos uma nova fonte para a nossa vida; é “descendo” que poderemos revitalizar a vida que se tornara vazia, ressequida e sem sabor.
Somente quando escutamos a voz que vem lá de dentro e lhe damos a devida atenção é que poderemos encontrar o verdadeiro sabor da vida. Somente ali poderemos recomeçar uma nova relação com Deus e com os convidados; somente ali poderemos sentir quem é Deus e o que é a Sua Graça. Alí nos situamos como realmente somos, mergulhamos nas intenções mais profundas e puras, encontramo-nos cara a cara, como que feitos para a eternidade.


Texto bíblico: Jo 2,1-11

Na oração:
- A água transformada em vinho é símbolo de festa, de partilha...
- Chegou o dia da festa para todos, de uma festa que não acaba. A alegria é sem fim porque Deus sempre tira mais e mais vinho para brindar.
- Sua experiência de Deus é vivida somente nos tempos de oração-celebração, ou também é sentida no ritmo cotidiano de sua vida?
- Quem é o Deus em quem você crê? É o Deus da lei, do sacrifício, cuja presença atrofia tudo o que é humano...

Ou é o Deus de ternura, o Deus da vida e da festa...?


sábado, 12 de janeiro de 2019

BATISMO: pulsar o coração em sintonia com o coração de Deus

Após o Advento e as festas natalinas, vamos entrar em outro tempo litúrgico, conhecido como Tempo Comum, seguindo o evangelista Lucas (Ano C). 
E, neste primeiro domingo do Tempo Comum, a liturgia nos motiva a fazer memória do "Batismo de Jesus". Apresentamos a seguir o texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho indicado para esta festa.



“E, enquanto rezava, o céu se abril e o Espírito desceu sobre Jesus...” (Lc 3,21-22)

Terminado o “tempo natalino”, começamos hoje o “tempo comum” (Ano C), ou seja, a vida pública de Jesus, sua missão como Filho em favor dos filhos e filhas. O relato do batismo – que marca a passagem da vida em Nazaré para a vida peregrina – faz referência a uma experiência fundante de Jesus: confirmado pelo Pai, impulsionado pelo Espírito, Ele descobre o sentido de sua vida e a missão que devia realizar.
O batismo de Jesus significou uma profunda experiência espiritual, muito ligada à sua atitude humilde de aproximar-se do rio Jordão, onde as pessoas simples do povo buscavam no batismo de João uma purificação de seus pecados.
Jesus foi reconhecido pelos pastores e magos, mas não pelos que compartilhavam com Ele a fila dos pecadores. Uma fila que margeava o rio Jordão, constituída por aqueles que queriam receber o batismo das mãos de João. E ali se pôs Jesus, entre eles, em silêncio. Não era um a mais, mas parecia ser.

Quê foi que levou Jesus a tomar esta decisão? Quê esperava encontrar com o batismo de João? Quais foram os sentimentos que o acompanharam durante este percurso de mais de 100 quilômetros desde Nazaré até o lugar onde recebeu seu batismo? Foi uma viagem solitária ou a fez em companhia de alguns amigos e amigas que também buscavam o mesmo?
Jesus “desce” ao Jordão; este gesto resume sua descida do céu à terra, sua “kénosis”, seu esvaziamento radical. É uma “descida” às águas da humanidade; por isso, sobre Ele “desce o Espírito”.
O Espírito não “desce” sobre aquele(a) que “sobe” ao pedestal da vaidade, do poder, da intolerância, do preconceito... Ali, o “ego inflado” não abre espaço para se deixar inspirar pelo mesmo Espírito que conduzia Jesus. É preciso “descer” às águas da própria existência, “entrar na fila solidária” da fragilidade humana, passar pelas águas da renovação vital e sair do outro lado, purificado e humanizado.

Embora não reconhecido pelas pessoas, ao entrar nas águas do Jordão, Jesus foi reconhecido e confirmado pelo Pai. E fez isso com uma voz potente para que todos se dessem conta de que o Filho queria compartilhar a situação da humanidade. E o Pai lhe deu carta branca para estar entre nós sem privilégios, continuando o despojamento que lhe supôs entrar em nosso mundo.
O batismo comove Jesus por dentro, o transtorna, parece que lhe invadem uma compaixão e ternura infinitas. O Deus dos pais se revela a Ele como Fonte de Vida, como Misericórdia e Compaixão, como fonte de dignificação e perdão.
O Céu deixa de estar em silêncio, o Céu não se compraz na Lei e no Templo, o Céu se compraz em Jesus, e, a partir de sua profunda percepção do Deus como Ternura e Fonte da Vida, sua vida vai se revelar como Boa Notícia para os abatidos de toda a humanidade.
Jesus não será mais o mesmo; o “filho do carpinteiro” foi tocado pelo Compassivo e sua vida vai se converter em visita de Deus a seu povo, em causa de liberdade para os oprimidos, em saúde para os enfermos, em perdão para os indignos, em inclusão para os excluídos, em festa para os tristes...

A Bíblia nos convida a tomar consciência que os lugares de encontro de Deus com o ser humano não são unicamente os sagrados, institucionais ou majestosos, mas, principalmente, os lugares da “margem”, do cotidiano, das experiências de fragilidade e limite, das obscuridades e dúvidas... enfim, das fendas da vida.
E foi das “fendas da humanidade” que o próprio Jesus entrou em comunhão com o Pai.
Segundo o evangelho de hoje, Jesus se faz presente na “fenda’ mais profunda da terra, no Jordão, e é precisamente ali onde Ele escuta a voz do Pai indicando-o como o Filho amado em quem “põe o seu bem-querer”. A partir desse momento, Jesus se descobre portador dessa “complacência divina” e vai fazendo-a presente nos diferentes lugares por onde se desloca com uma mobilidade surpreendente: do deserto à Galiléia, onde anuncia a chegada do Reino; às margens do mar, chamando os primeiros discípulos; em Cafarnaum onde exerce seu ministério terapêutico; às portas das casas, acolhendo uma multidão de enfermos; no descampado onde oferece a grande mesa da partilha; nos territórios fronteiriços, onde acolhe e entra em diálogo com o diferente...
Não são lugares “sagrados”; é sua presença que os converte em “teofânicos” (manifestação da presença divina), porque ali onde Ele se faz presente, os céus se “rasgam” e Deus “se deixa ver” em seu Filho, e Suas palavras continuam ressoando em nós, convidando-nos a escutá-lo.

Viver a vocação batismal ativa nossa sensibilidade mais profunda, fazendo-nos entrar em sintonia com Deus e com a realidade. Deus age diretamente no coração e nos conduz com delicadeza, com carinho
e com liberdade, preparando-nos para a grande “salto” na vida. E nosso coração aberto, atento, sintonizado com a ação de Deus, dispõe-se, coopera e responde à Graça divina, empenhando-se por encontrar “o que tanto deseja”.
Essa é a experiência mística da vida: “sentir Deus em todas as coisas e todas as coisas em Deus”.
O(a) seguidor(a) de Jesus faz a experiência da intimidade, da presença, da comunhão, da proximidade de Deus em sua própria vida. Ele(a) vive embriagado(a) de vida, vive como um peixe nos oceanos de Deus, dizendo um profundo sim às ondas, ao vento, ao sol, à existência... Ele(a) sente-se cativado(a), envolvido(a), amado(a), sintonizado(a), habitado(a) por Deus de tal maneira que seus olhos, gestos, suas atitudes, palavras, seu coração, sua existência, transbordam Deus. Sente-se envolvido(a) pela “onda” de Deus e sintoniza-se com o Seu coração. Tal experiência é incomunicável; ninguém pode vivê-la por ele(a).

A vivência batismal implica um contínuo “estar presente” diante do Deus Presente. E estar presente é estar “acordado”, no sentido de desperto e atento, e também no sentido musical de estar afinado, “em acorde”, sintonizado com a Presença que se revela de maneira “sempre nova e inesperada”. 
Dentro de cada um de nós existe uma música, uma melodia, uma nota do divino. É preciso criar espaço para que ela possa fluir em forma de canto, de dança, de louvor...
No meio desse mundo confuso e dividido é necessário encontrar um princípio integrador; é preciso compor uma sinfonia, buscar a “com-sonância” das diferentes vozes e instrumentos presentes ao nosso redor. O compromisso batismal é esse momento delicado que nos ajuda a recuperar o “som primordial”, e portanto, a unidade do sentido da nossa existência.
Por isso, “viver a vocação batismal” não é evento, mas sintonia com o coração de Deus; é estar “antenado” no modo de agir de Deus e corresponder a essa ação divina.
Faz-se necessário, portanto, um contínuo discernimento para deixar-se conduzir pelo Espírito e prolongar o modo original de ser e viver de Jesus.


Na oração:  
Todo(a) seguidor(a) de Jesus é testemunha de uma presença contemplada e ouvida no silêncio da oração.
- Deixe-se levar como se estivesse num rio, observando-se com um olhar interior, escutando, sentindo...
- O Batismo implica expandir os espaços interiores, romper com tudo aquilo que atrofia a vida para acolher o novo: nova missão, novo compromisso, nova presença solidária, acolhida do diferente...
- Renove seu compromisso batismal: ser presença diferenciada em meio a um mundo carregado de morte e violência.

sábado, 5 de janeiro de 2019

Epifania é Abrir Caminhos

Apresentamos a seguir o texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho da Festa da Epifania do Senhor.

“...voltaram para sua terra por outro caminho” (Mt 2,12)

“Por que é que os homens se deslocam em vez de ficarem quietos”? Esta pergunta do escritor Bruce Chatwin nos reconduz ao centro do mistério do próprio ser humano.
Somos seres de travessia. As viagens nunca são apenas exteriores. Não é simplesmente no espaço geográfico que o ser humano viaja. Isso significaria não perceber toda sua a profundidade; deslocar-se implica uma mudança de posição, uma ampliação do olhar, uma abertura ao novo, uma adaptação a realidades e linguagens diferentes, uma expansão da sensibilidade, um confronto, um diálogo tenso ou deslumbrado..., que deixam necessariamente impressões muito profundas.
A experiência da viagem é a experiência de fronteira e do horizonte aberto, de que o ser humano precisa para ser ele mesmo. Nesse sentido, a viagem é uma etapa fundamental da descoberta e da construção de sua própria identidade e do conhecimento do mundo que o cerca. É a sua consciência que perambula, descobre cada detalhe do mundo e olha tudo de novo como da primeira vez. A viagem é uma espécie de propulsor desse olhar novo. Por isso, é capaz de introduzir na sua vida elementos sempre inéditos que o incitam a uma mudança contínua. Nada mais anti-humano que uma vida estabilizada em posições fechadas, ideias atrofiadas, visões limitadas pelo medo do diferente...
Mais do que viajantes, aos poucos vamos nos descobrindo peregrinos.
Quando fazemos uma peregrinação, muitas vezes nos interrogamos onde é que ela termina, porque uma das coisas que experimentamos é que, à medida que caminhamos, a realidade torna-se sempre mais aberta e nós nos enriquecemos muito mais. A peregrinação não tem propriamente um fim: tem uma extraordinária finalidade. No caso dos Magos é o encontro com o “Rei de Israel”.

Na noite de Natal, Jesus se manifestou aos pastores, homens pobres e humildes, que foram os primeiros a se deslocarem para levar um pouco de calor à fria gruta de Belém. Agora são os Magos que chegam de terras longínquas, também eles atraídos misteriosamente por essa Criança. Os pastores e os Magos são muito distintos entre si; mas uma coisa tem em comum: o céu.
Os pastores de Belém foram correndo para ver o menino Jesus não porque fossem particularmente devotos, mas porque velavam de noite e, levantando os olhos ao céu, viram um sinal e escutaram uma mensagem.
Assim também os Magos: investigavam os céus, viram uma nova estrela, interpretaram o sinal e se puseram a caminho. Os pastores e os Magos nos ensinam que para encontrar Jesus é necessário saber levantar o olhar para o céu, não fixar-nos em nós mesmos, ter o coração e a mente abertos ao horizonte de Deus, que sempre nos surpreende, saber acolher suas mensagens e responder com prontidão e generosidade.

O termo “magos” tem uma considerável gama de significados; mas, certamente, em Mateus são sábios cuja sabedoria religiosa e filosófica os põe em caminho; é a sabedoria que leva a Cristo. Somente homens de uma certa inquietude interior, homens de esperança, em busca da verdadeira estrela da salvação, seriam capazes de colocar-se em caminho e percorrer a longa distância entre Oriente e Belém.
Chama a atenção a prontidão da resposta dos Magos. Com simplicidade expressam como no preciso momento em que perceberam a indicação do céu, imediatamente reagiram e a seguiram.
A estrela que os guiava era uma estrela nova, superior, peregrina, que despertava assombro e atraía àqueles que a contemplavam. Os caminhos deste novo astro, orientam à salvação divina para toda a humanidade.
A experiência dos Magos nos exorta a não nos contentar com a mediocridade, a não permanecer adormecidos e estáticos, mas a buscar o sentido das coisas, a perscrutar com paixão o grande mistério da vida. Eles nos ensinam a não nos escandalizar frente à pequenez e à pobreza, mas a reconhecer a majestade na humildade e sabermos ajoelhar diante dela. O deslocamento dos Magos ajuda a nos deixar guiar pela estrela do Evangelho para encontrar Aquele que é Luz, e despertar a luz que nos habita. Assim, poderemos levar aos outros um raio de sua luz e compartilhar com eles a alegria do caminho.
Os Magos vêm do Oriente e caminham para a luz. Estão orientados. Oriente significa onde nasce o sol, a luz. A desorientação é a perda do sentido, do caminho, é viver na escuridão. A verdadeira luz está mais presente na gruta despojada que nos palácios e templos de Jerusalém.
Epifania, portanto, é abrir caminhos; Epifania é buscar e caminhar para a luz.

Mateus termina seu relato notando que, uma vez que os magos se encontraram com o Menino Jesus, “regressaram por outro caminho”. E não mudam de caminho para evitar Herodes, mas porque encontraram o Caminho: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida”.
Deus, a Luz, não está presente nos caminhos e pretensões de Herodes (e existem muitos Herodes e faraós soltos pela história), mas naquele que é frágil e está deitado em um presépio.
Como os Magos, levantemos e voltemos à casa por outro caminho!
Quem se encontra com Jesus voltará à sua casa, ao seu trabalho, às suas ocupações, mas já não será o mesmo. Voltará de outra maneira, por outro caminho, com um coração dilatado e um espírito renovado. Quem se encontra com a Criança de Belém, dá-se conta de que os caminhos de Herodes, do poder, do prestígio, da riqueza, são caminhos que levam à morte. E Epifania é o caminho da vida, da acolhida e do encontro.

O itinerário espiritual, portanto, pode ser descrito como uma viagem da cabeça ao coração; é uma viagem longa, difícil, mas apaixonante.
Por diferentes motivos, também hoje vivemos uma grande mobilidade; precisamos ser espertos em mover-nos entre o diferente, o que nos confunde, o mistério, o que nos questiona... Sempre caminhando. Esta é a atitude daquele que segue um Deus sempre maior, sempre surpreendente, que está sempre mais além de onde estamos. Então, que sigamos, sempre adiante... mas façamos isso juntos, sem deixar ninguém fora!
Este e o dinamismo que deve perpassar nossa vida: da instalação ao crescimento, da acomodação ao deslocamento contínuo. Partimos da realidade de que a tendência natural é amparar-nos nas “zonas de conforto”; elas nos dão mais segurança; é mais cômodo; requer menos energias.
A inércia leva a viver o ordinário, o repetitivo; custa-nos admitir e saborear o excepcional, o extraordinário; muitas vezes nos movemos em meio a um certo ceticismo vital, sem paixão pela vida e pela missão. Mas o caminho da fé nos leva de assombro em assombro, de graça em graça, de alegria em alegria.
“Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já têm a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos” (Fernando Pessoa).


Texto bíblicoMt 2,1-12

Na oração:
Esse “outro caminho” é o caminho que deve direcionar para Deus nossa vida.
O que importa é pôr-se a caminho nas pegadas dos Magos, fazer escolhas e recusar desvios.
- Há alguma “estrela” abrindo horizontes para você?
- O que há de “herodiano” em sua realidade e em seu mundo interior? Quais são as causas, as manifestações e os efeitos das suas inseguranças, do fixismo em torno do próprio eu, dos seus medos?
- Conserve-se em movimento interior, sempre; nada de roteiros rígidos que sufocam o Espírito, matam a criatividade, prendem à rotina e empobrecem o dinamismo de uma vida em transformação.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2019

ANO NOVO: alimentar uma esperança criativa

Apresentamos a seguir o texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI), como sugestão para rezar o Evangelho da Solenidade de Maria, Santa Mãe de Deus, celebrada no primeiro dia do ano, junto ao Dia Mundial da Paz.


“Os pastores foram às pressas a Belém e encontraram Maria, José e o recém-nascido deitado na manjedoura” (Lc 2,16)

1º. de janeiro é uma data carregada de conotações profundamente humanas: início de um novo ano, o encontro dos pastores com o Menino Jesus, a maternidade divina de Maria, dia Mundial da Paz...
Ao começar o novo ano, a primeira atitude que devemos alimentar é a da gratidão: dar graças a Deus pelo dom do tempo, que é o dom da vida, o dom fundamental. O tempo é graça e tudo depende do que fazemos com ele: podemos fazer dele um tempo morto ou um tempo vivo (carregado de possibilidades, recursos, criatividade, tempo oblativo, aberto ao novo, tempo inspirado…).
O começo do ano nos convida a pensar sobre nossa forma de ativar este “grande tesouro” que é o tempo; Deus nos concede este ano para que multipliquemos a vida, enriquecendo-a de sentido, qualidade e calor humano; é uma nova oportunidade que Ele nos concede para crescer e ajudar a crescer, para alcançar uma experiência nova da vida, de encontro com Ele, com os outros, conosco mesmos.
A festa da travessia para um Novo Ano é uma ocasião privilegiada para descobrir o quê estamos fazendo com nosso tempo. Podemos estar desperdiçando ou perdendo aquilo que nos foi dado para que vivamos com mais intensidade. Vão passando os anos e com eles as oportunidades de dar verdadeiro sentido às nossas vidas. É o momento por excelência da potencialidade de vida, tempo mágico onde as promessas começam seu caminho de realização.

Quem contempla a realidade com os olhos simples dos pastores, não faltarão ocasiões de reconhecer a criatividade de Deus em ação, a inovação do Espírito movendo corações, criando cenários novos, mais humanos, com mais profundidade, mais do Reino...
Talvez muitos se perguntam para onde vai nosso mundo, surpreendidos e preocupados pelo crescimento de fenômenos desconcertantes. Em muitos países triunfam líderes populistas, manejados por forças ocultas sem escrúpulos e marcados por discursos intolerantes, preconceituosos e julgamentos moralistas; a corrupção vai lançando raízes em todos os ambientes; os conflitos e as rupturas se acentuam; a Igreja católica é sacudida por uma grande crise de credibilidade; o sistema de valores e conhecimentos está mudando profundamente. Vivemos um momento de transição ou um colapso de uma civilização: uma metamorfose da sociedade que afeta todos os aspectos da vida, pessoal e coletiva, de toda a humanidade. Trata-se, pois, de uma crise global, embora às vezes possa parecer local ou inclusive pessoal.
Como nos tempos bíblicos, também estamos vivendo um “exílio”. Tanto naquele como neste contexto atual é que se revela a missão original e inspiradora dos profetas.
Como ser presença diferenciada em meio a muita gente desconcertada e desesperançada? Como alimentar esperança? Como ativar uma imaginação criativa?
Esta deve ser a marca característica dos(as) seguidores(as) de Jesus: o otimismo frente à realidade e a esperança diante daquilo que vem. Crer em um Deus que se encarna no simples e que realiza suas promessas, permite começar o ano como quem estreia todas as possibilidades, inclusive abertura às possibilidades antes inexistentes. Isto é o que ocorre em nosso tempo natalino: a irrupção de Deus no pequeno e a partir de baixo, modifica radicalmente nossa visão atrofiada da realidade e nos capacita a vislumbrar o broto germinal de uma nova história.
Por isso, somos gente carregada de esperança, pois somos n’Aquele que faz tudo novo.

Para muitos pode lhes causar estranheza que a Igreja faça coincidir o primeiro dia do novo ano civil com a festa de Santa Maria, Mãe de Deus. E, no entanto, é significativo que, desde o século IV, a Igreja, depois de celebrar solenemente o Nascimento do Salvador, nos motiva a começar o ano novo sob a proteção maternal de Maria, Mãe do Salvador e Mãe nossa.
É bom que, diante do Novo Tempo que se inicia, elevemos nossos olhos para Maria. Ela nos acompanhará ao longo dos dias com cuidado e ternura de mãe. Ela inspirará nossa fé e nossa esperança.

Dia Mundial da Paz. Talvez seja uma das carências que mais afeta o ser humano de hoje, porque a ausência de paz é a prova palpável de uma falta de humanidade em todos os níveis. Não podemos descobrir o que significa paz quando nos vemos cercados de violências e conflitos; não podemos experimentar a paz alimentando uma “cultura da indiferença” e da suspeita.
Não são as contendas internacionais, por muito danosas que sejam, que impedem os seres humanos alcançar sua plenitude. Os grandes conflitos têm sua origem em nossos próprios conflitos internos; nossos corações

estão carregados de maledicências, julgamentos, legalismos, moralismos e imposições sobre os outros...
O medo daquele que pensa, crê, sente e ama de maneira diferente aumenta as distâncias, cria muros e bolhas de proteção que dão uma falsa sensação de segurança e paz. Nunca se investiu tanto em segurança e, no entanto, a cultura da paz está cada vez mais esvaziada.
A paz não é uma realidade que possamos buscar com um cantil. A paz será sempre a consequência de relações verdadeiramente humanas, entre nós. Se não existe uma autêntica qualidade humana não pode haver uma verdadeira paz, nem entre as pessoas nem entre as nações.
O primeiro passo na busca da paz deve ser dado por cada um de nós, caminhando em direção ao nosso próprio interior. Se não conseguimos uma harmonia interior, se não descobrimos nosso verdadeiro ser e o assumimos como a realidade fundamental em nós, nem teremos paz nem a podemos levar aos outros. Este processo de maturação pessoal é o fundamento de toda verdadeira paz. Uma autêntica paz interior se reflete em todas as nossas relações humanas, começando pelos mais próximos.

Quando perdemos o caminho da interioridade, permanecemos na superficialidade de nós mesmos; ali não há húmus onde enraizar a paz; é da superficialidade de nós mesmos que brotam os julgamentos, a indiferença, a atrofia da comunhão, o extravio da ternura, a segregação..., constituindo o ambiente favorável para todo tipo de rupturas, conflitos, frieza nos relacionamentos...
É preciso, como os pastores, entrar na Gruta interior para encontrar Aquele que é o Príncipe da Paz; aproximar desta Criança significa ativar todos os recursos pacíficos que carregamos dentro de nós.
Ah se recuperássemos o sentido do “shalom” judaico! Nessa palavra se encontra condensado todo o significado verdadeiro da paz. Nossa palavra “paz” tem conotações exclusivamente negativas: ausência de guerra, ausência de conflitos, de intrigas, etc... Mas, a expressão “shalom” se refere às realidades positivas; dizer “Shalom” significa manifestar um desejo de que Deus conceda a cada um tudo o que necessita para ser autenticamente humano, incluída a presença mesma de Deus no interior de cada um.
Na raiz bíblica do termo “shalon” está a idéia de “algo completo, inteiro”.  A paz pertence à plenitude, à completude, enquanto a violência está do lado da falta, da carência, do incompleto.
Paz reflete harmonia consigo, boas relações com os outros, aliança com Deus, enquanto a violência infecciona os relacionamentos, contamina a convivência, quebra as relações, exclui os mais fracos...

Este é o desafio diante do Novo Ano que se inicia: devemos primar por construir “ambientes de paz”: paz que vem do alto, que brota do interior e aquece nossos corações, plenifica nossas relações e se expande, tal como perfume, em todas as direções.
Paz é aspiração congênita do ser humano. Nosso coração humano foi feito para a paz e anseia a convivência harmoniosa com Deus, com o cosmos, com os nossos semelhantes. É processo interminável.
Aprender a amar, preocupar-se com os outros, vibrar com a diferença, entrar em harmonia não só com as outras pessoas, mas com toda a criação é a autêntica preparação para a paz. Quem ama não cria conflitos e fica encantado quando todos tenham acesso aos melhores recursos na própria interioridade.


Texto bíblico: Lc 2,16-21

Na oração:
A partir do “olhar” admirado dos pastores, alimentar, ao longo deste ano, um processo minucioso de extirpação das “cataratas” do seu olhar interior: o olhar das lembranças negativas, das suspeitas, dos julgamentos, das comparações... e reacender o olhar contemplativo capaz de expressar a benevolência, a delicadeza, a acolhida, a cortesia, a serenidade, a modéstia, a afabilidade, a alegria simples de estar juntos...

- Recordar todos os “olhares amorosos” que Deus foi depositando sobre você ao longo da vida.