“Esta é a voz daquele que grita no
deserto”
(Lc 3,4)
Em um mundo no qual há tanto
ruído não é fácil prestar atenção às vozes
carregadas de vida e que movem à vida. Talvez porque entre tanto palavreado
crônico a melhor solução é desconectar-nos, ou por preguiça, ou por impotência,
ou pela tentação de querer falar, sem parar. Quem sabe, o excesso de problemas,
inquietações, projetos e ideias confusas que se movem por dentro, petrificam
nossa própria interioridade. Ou ainda, porque no mundo há tantos discursos
vazios, violentos e preconceituosos que, ao nos causarem asco, alimentam em nós
uma inércia ou uma atitude cética.
Diante dessa
realidade, o tempo do Advento nos
apresenta como referência e estímulo a voz
de João Batista. Ele não quis renunciar sua voz, apesar das incompreensões e
das resistências; sua voz se converteu no apelo a modificar a ordem das
prioridades, na voz das minorias, na voz que movia a assumir um outro estilo de
vida, na voz que ajudava a descobrir que a pessoa está acima de tudo, na voz que
sempre deve estar a favor da vida.
Essa foi a missão
de João: ele aparece no deserto não como um sacerdote que convida ao culto, mas
como um profeta que proclama a mudança, a conversão, a abertura à novidade
d’Aquele que está chegando. É uma voz que clama, mas João é muito mais que uma
palavra; João é toda uma vida que se faz palavra. Ou melhor, é a palavra feita
vida, revestida de vida. Nos profetas fala a voz mas, sobretudo, fala a vida.
No Advento, a voz de João, que grita no deserto, ressoa em nosso
próprio interior, destravando nossa voz, tantas vezes silenciada por uma
cultura que impõe sua voz interesseira.
Cada um de nós tem, todo dia, a
oportunidade de fazer escutar a própria voz. É necessário levantar nossa voz
para despertar e ver as coisas a partir de outro ponto de vista, para
transgredir esses discursos de morte e preconceito que o contexto, no qual
vivemos, quer nos transmitir e que tanto nos desumaniza.
É necessário tomar consciência que,
se renunciamos nossa voz, renunciamos defender nossa maneira original de nos
fazer presentes numa realidade de exclusão e de propor outra maneira de viver,
mais livre, aberta e expansiva.
Por tudo isso,
como João Batista, expressemos nossa voz
sem complexos, mas com o máximo respeito, cheia de ternura e não entrar no
barco das vozes furiosas, carregadas de linchamento, de revanches e
incompreensões para com quem pensa diferente, crê diferente, ama diferente.
Por tudo isso, não
renunciemos nossa voz, não renunciemos enriquecer nosso entorno com nossa voz
original, porque vozes inspiradoras, em momentos especiais, farão a diferença.
Em segundo lugar, “ouvir
a voz de João” nos sensibiliza a escutar outras vozes, carregadas de vida e mobilizadoras de vida. Os personagens
do Advento nos tornam sensíveis às verdadeiras vozes que tem a magia de nos
tocar a fundo e despertar o impulso para entrar em sintonia com elas.
O fato é que, às vezes, nos
acomodamos a viver em bolhas, onde, raras vezes, entram vozes que nos comovem
de verdade. E, no entanto, debaixo da parafernália de gritos, ruídos, anúncios,
apelos publicitários e frases feitas de mau gosto, continua brotando vozes
cheias de verdade, vozes que vale a pena serem escutadas.
Estamos rodeados
de diferentes vozes; quem sabe, por detrás de muitos gestos, palavras,
gritos... não estarão vozes que pedem ajuda, ou que simplesmente expressam dor,
insegurança, medo, clamando por uma presença acolhedora. É claro que não vamos
estar o dia todo falando com o coração na mão e os olhos úmidos de lágrimas,
desnudando nossa intimidade. É possível que na vida cotidiana continuaremos
falando com nossa gente das coisas mais cotidianas. O verdadeiro desafio é
aprender a escutar, por debaixo de diferentes vozes, a palavra profunda, o
canto tranquilo ou o pranto escondido.
Há outros lamentos, não tão
escondidos, que deixamos de escutar, talvez porque se chegássemos a ouvi-las, nos
deixariam profundamente impactados, pois, poderiam provocar-nos uma sensação de
impotência e de fracasso enorme. São vozes que não tem nada que decifrar,
claras, rotundas, honestas. São as vozes dos excluídos de todo o tipo: pobres,
famintos, vítimas de preconceito, aqueles homens e mulheres que sofrem a intolerância
e a indiferença.
Às vezes, essas
vozes nos conduzem a um dilema: para quê escutá-las, se não podemos fazer nada?
Para tornar a vida mais amarga? Para sentir uma culpa que não é nossa? Aqui não
se trata de fazer discursos voluntaristas ou demagógicos acerca do mal no mundo.
O verdadeiro desafio é ampliar dentro de nós um espaço no qual outras vozes possam
ressoar, recordando-nos que ainda há muito por fazer para continuar
construindo o
Reino de Deus, onde todo ser humano possa viver com sua dignidade assegurada;
para fazer-nos conscientes do quanto nossa vida tem de benção, e, ao mesmo
tempo, o quanto somos responsáveis por todo bem recebido...
Na vida cristã entende-se o viver
como uma arte que é preciso praticar. A vida não é um azar, nem um destino, nem
um enigma a resolver. A fraternidade evangélica é uma escola da vida e
interação, onde cada pessoa inter-atua com os demais e encontra liberdade para
expressar sua voz e acolher a voz do outro.
Frente ao
diferente, o tempo do Advento contém muitas possibilidades: pode gerar variadas
combinações e sinergias. Advento é como um calidoscópio que combina uma
infinidade de vozes e cores. As vozes
dos diferentes encontram seu espaço, se identificam e potenciam a relação
mútua. Todos, tendo um só coração e uma só voz, alimentam a unidade na
diversidade.
A condição para
descobri-las é “levantar os olhos”, ir mais além do imediato que nos cega e nos
prende em redes de desejos insatisfeitos, em obsessões por conservar modos de
vida que consideramos definitivos, em temores que embotam nosso coração
impedindo o fluir da vida.
“Preparai
o caminho do Senhor”. Como abrir caminhos para que os homens e mulheres de nosso tempo possam encontrar-se com Aquele que
vem? Deus chegará por outros caminhos, totalmente diferentes dos caminhos que estamos
construindo habitualmente. Deus não pode vir ao nosso mundo de hoje enquanto
não construirmos caminhos mais planos de acolhida, solidariedade e partilha. Deus
não pode vir nem entrar pelos caminhos diante dos quais foram construídos
muros e valas, impedindo o acesso dos excluídos e perseguidos. Deus não pode
entrar na história através de caminhos que desembocam nos corações carregados
de ódio, de indiferença, de fanatismo e de preconceito para com tantas vítimas
de poderes que desumanizam. Os personagens políticos e religiosos nomeados
(Pilatos, Herodes, Anás, Caifás...), apesar de seus poderes e intrigas, não
conseguiram extinguir a esperança que a voz profética de João convocava, a
partir da periferia. Advento, é tempo de resistência.
Texto
bíblico: Lc
3,1-6
Na
oração:
Pense em tantas vozes rompidas que às
vezes ficam silenciadas pelo contexto social onde você vive. Peça a Deus que
lhe ajude a ouvir e não perder nunca a capacidade de comover-se diante das:
- vozes daqueles que estão privados do
mais necessário;
- vozes que são caladas por todo tipo de
discriminação;
- vozes daqueles que são vítimas de
intolerância e preconceito.
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