“Mas
nós lhe proibimos, porque ele não é dos nossos” (Mc
9,38)
Cresce
hoje a consciência sobre a diferença do ser humano como atração, e não
como rejeição. A humanidade pós-moderna exige a diversidade na
convivência sociocultural e religiosa. Não podemos permanecer trancados em
redutos que rejeitam as diferenças existenciais. A humanidade deixou de ser
distante para tornar-se mais próxima, mediante as diferenças, os diálogos e as
convergências. O mundo globalizado não pode ser apenas econômico. É chamado
também a respeitar e a cultivar as diferenças entre as pessoas, as raças, as
religiões, as sociedades e as nações.
No
entanto, corremos o risco de viver em mundos-bolha; podemos construir nossa
vida encapsulada em espaços feitos de hábito e segurança, convivendo com
pessoas semelhantes a nós e dentro de situações estáveis. É difícil romper e
sair do terreno conhecido, deixar o convencional. Tudo parece conspirar para que
nos mantenhamos dentro dos limites politicamente corretos. Todos podemos
terminar estabelecendo fronteiras vitais e sociais impermeáveis ao diferente.
Se isso acontece, acabamos tendo perspectivas pequenas, visões atrofiadas e
horizontes limitados, ignorando um mundo amplo, complexo e cheio de surpresas.
Muitas vezes “vemos” o diferente, mas só como notícia, como o olhar do
espectador que sabe das “coisas que acontecem”, mas não sente e nem se
compadece por elas.
Marcos, no evangelho
deste domingo, recolhe vários ditos de Jesus a partir de uma reação tipicamente
preconceituosa do grupo dos discípulos: a de impedir um desconhecido utilizar o
nome de Jesus, por uma única razão: “não era dos
nossos”.
Frente à reação
excludente dos discípulos, Jesus propõe a tolerância que nasce de uma atitude
aberta e inclusiva. Ao longo da história humana, a etiqueta “dos nossos” gerou
desprezo, ódio, preconceito, enfrentamento e morte, numa sequência desumana de
sofrimento inútil.
A ironia é que se
trata justamente disso, de uma mera etiqueta, completamente superficial e
enganosa, que nasce do próprio medo e insegurança, que leva a nos “proteger” do
diferente, buscando refúgio naquilo que nos é conhecido.
O diferente não pode ser uma ameaça; no
entanto, na vida nos defendemos e, às vezes, questionamos e atacamos posturas,
visões políticas, teológicas, espiritualidades, modos de viver uma religião...,
culminando em rupturas e, em alguns casos, em conflitos ou ódios.
Aos poucos, nos
recolhemos em nossos medos, em nossas inseguranças e começamos a acreditar que
os diferentes são nossos inimigos. Da indiferença passamos aos discursos
fascistas, às práticas fundamentalistas, à segregação, ao fanatismo...
Pode,
a identidade cristã co-existir criativamente, e de quê maneira, em meio a uma
cultura plural e de identidades múltiplas como a nossa?
O que está em jogo
reveste tal gravidade que exige modificar radicalmente nosso modo de ver e de
agir: cortar a mão (modificar as
ações), cortar o pé (mudar o rumo)
ou arrancar o olho (transformar a
visão). Trata-se de um processo que nos impulsiona a crescer em humanidade, esvaziando
nosso “ego” de suas inseguranças, medos e preconceitos.
Tal transformação
radical pede olhos capazes de olhar o mundo em sua complexidade e em suas
feridas; mãos prontas para acariciar, construir, e abertas para o encontro e o
abraço; pede pés para encurtar distâncias e criar proximidade acolhedora; pede
boca disposta a falar com palavras de verdade e de benção; pede coração disposto
a implicar-se, vibrar... às vezes, romper-se. Membros que se gastam no serviço.
Enfim, sempre amar, com o fascinante que é viver como cristãos de carne e osso.
Sabemos que do ponto de
vista psicológico, a questão da intolerância, do preconceito
e do fanatismo
se acha vinculada à segurança. A segurança constitui uma necessidade básica do
ser humano.
Enquanto
a pessoa não faz a experiência de uma segurança firme e interna que a sustente,
ela buscará fora de si – projetando-a em um líder, em um grupo ou em uma
instituição -, ou se fixará em suas ideias, crenças e convicções. Quando isso
acontece, a pessoa insegura não poderá tolerar que seu líder, seu grupo, sua
instituição, sua religião, sejam questionados; assim como tampouco poderá
permitir que suas ideias, crenças ou convicções sejam criticadas. Isso tirará o
tapete de sua própria estabilidade.
Para uma pessoa
fechada em seu fanatismo, preconceito e intolerância, “os outros” são
percebidos como ameaça; porque, quem pensa diferente ou adota um comportamento
diferente, lhe faz ver que o seu pensamento ou comportamento não são o valor
“absoluto”, senão mais um ao lado de tantos outros.
E isto é o que uma
personalidade insegura se vê incapaz de tolerar, pela angústia que lhe gera a
falta de seguranças “absolutas”. Por isso mesmo, sentir-se-á incapaz de tolerar
a divergência, e tenderá a desqualificar, julgar, condenar (ou empenhar-se em
“converter”) a quem não pense como ela. Porque percebe toda diferença como
ameaça.
A “saída” do fanatismo
requer experimentar uma fonte de segurança que se encontra mais além da mente
(de suas ideias ou crenças). Uma experiência que confere à pessoa uma sensação
interna de consistência e de autonomia. Quem é capaz de ter acesso ao seu “eu” mais profundo, relativiza também o
caráter absoluto que tinha atribuído às ideias e crenças e, ao mesmo tempo,
permite aos outros serem diferentes, sem que a diferença seja vista como perigo.
Não é comum prestar
atenção ao que acontece no território interior. São grandes os
riscos de se viver em horizontes tão estreitos. Tal estreiteza aprisiona a
solidariedade e dá margem à indiferença, à insensibilidade
social, à falta de compromisso com as mudanças que se fazem urgentes. O próprio
território se torna uma couraça e o sentido do serviço some do horizonte
inspirador de tudo aquilo que se faz.
E, retomando a queixa de
João no Evangelho de hoje, podemos perguntar: “quem são os nossos”?
Grupos, tribos,
nacionalismos, partidos políticos, religiões e ideologias de todo tipo tendem a
definir com claridade os limites que marcam o próprio “território”, impedindo
que “os outros” tenham acesso a ele.
A vivência do seguimento
de Jesus Cristo implica romper a bolha que asfixia a vida e derrubar os muros
que cercam o coração, atrofiando a própria existência. Nada
mais contrário ao espírito cristão que a vida instalada e uma existência
estabilizada de uma vez para sempre, tendo pontos de referência fixos, convicções
absolutas, modos fechados de viver... que impedem a entrada do ar para arejar a
própria vida.
Muitas
vezes, o zelo religioso, moral ou político degenera em formas de intolerância e violência.
“Pode acontecer também que os cristãos façam parte de redes de violência
verbal através da internet e dos diversos fóruns ou espaços de intercâmbio
digital. Mesmo nos sites católicos, é possível ultrapassar os limites,
tolerando-se a difamação e a calúnia e parecendo excluir qualquer ética e
respeito pela fama alheia. Gera-se, assim, um dualismo perigoso, porque, nestas
redes, dizem-se coisas que não seriam toleráveis na vida pública e procura-se
compensar as próprias insatisfações descarregando furiosamente os desejos de
vingança. É impressionante como, às vezes, pretendendo defender outros
mandamentos, se ignora completamente o oitavo: «não levantar falsos
testemunhos» e destrói-se sem piedade a imagem alheia. Nisto se manifesta como
a língua descontrolada «é um mundo de iniquidade; e, inflamada pelo inferno,
incendeia o curso da nossa existência» (Tg
3, 6).”
(Papa Francisco, Gaudete et Exsultate,
115)
Texto bíblico:
Mc 9,38-43.45.47-48
Na oração:
O
que é o específico de uma vida cristã? Buscar, no seguimento, fazer e
viver o que fez e viveu Jesus. Para isso, adotar as atitudes, o olhar e a
capacidade de contemplação da realidade que o mesmo Jesus adotou. Ele abraçou diferenças e novos horizontes. O
Seu ministério ultrapassou as fronteiras. Ele rompeu com os muros do
preconceito social, racial, religioso...
- Deixar a luz do Evangelho des-velar (tirar o véu)
possíveis atitudes intolerantes e preconceituosas diante dos “outros
diferentes”.