“E ficaram
escandalizados por causa dele” (Mc 6,3)
Marcos não tem
relatos da infância de Jesus. Por isso, busca narrar alguns encontros dele com
seu povo e sua família. No entanto, para aqueles que melhor O conheciam, Jesus
era visto como um homem a mais, um galileu a mais do povo. Seus conterrâneos
estavam tão seguros de que Ele era uma “pessoa normal”, que não podiam aceitar
Seu modo original de ser. Eram seus companheiros de infância, tinham brincado
juntos, trabalhado com Ele, sabiam perfeitamente quem Ele era. “Enquadraram-no”
numa família, requisito indispensável, naquela época, para ser alguém. Até esse
momento não haviam descoberto n’Ele nada fora do “normal”. Como não esperassem
nada extraordinário, de onde Ele tirava tanta sabedoria?
O relato deste
domingo é surpreendente. Jesus foi rejeitado precisamente pelos seus parentes e
familiares. É a primeira vez que Ele experimenta uma rejeição coletiva, não dos
dirigentes religiosos, mas de sua comunidade familiar, com quem convivera tanto
tempo. Jesus se sente “desprezado”: os seus não o aceitam como portador da
mensagem profética de Deus. Por isso, fecham-se em suas ideias preconcebidas a
respeito do seu vizinho Jesus e resistem a abrir-se à novidade revolucionária
de sua mensagem e ao mistério que se revela em sua pessoa.
Porque estavam
acostumados a ouvir sempre o mesmo, rejeitam-no por ensinar “coisas novas”.
Mas Jesus não se deixou domesticar e nem se acomodou às expectativas
de seus conterrâneos.
Sua vida desconcertou a todos;
seu modo de falar, seus critérios, seu compromisso em favor da vida, sua
liberdade de espírito suscitou um espanto em todos. Sua presença despertou
perguntas, dúvidas e até discussões. Quem será Ele? Será o Messias? Ou não
será? Como explicar sua vida?
Porque, “sendo um entre tantos”, atuava, pensava e vivia um estilo único
que o diferenciava de todos?
Sua postura de mestre e sua atuação
desencadearam no seu povo uma crise, ou seja, romperam com a “normalidade
doentia” das pessoas e se revelou imprevisível e desconcertante.
Na
realidade, a reação dos familiares e parentes de Jesus é expressão da mesma
reação que surge em todos nós quando,
diante de alguém que se revela original, com um novo modo de ser e
viver, manifesta-mos suspeitas, dúvidas, indiferença... O ser humano, em
todos os tempos, tende a instalar-se, acomodando-se facilmente ao conhecido e
se deixando levar pela rotina que evita sobressaltos; isso lhe confere uma
certa sensação de segurança e tranquilidade: “para quê e por quê
mudar...?”
E
isso ocorre também com suas idéias, crenças, visões...
Habituado
a ver a realidade a partir de uma determinada perspectiva, custa-lhe abrir-se a
outras percep-ções, novas ou desconhecidas. Tem medo de ser diferente e reage
com indiferença frente àqueles que são diferentes. E a indiferença mata.
Prefere a
vulgaridade de ser como todo mundo à originalidade de ser diferente; prefere a
monotonia de ser como todos e passar desapercebido na multidão, sem chamar a
atenção por ser distinto a todos, sendo ao mesmo tempo, como todos.
Podemos, então, afirmar que o
mais anti-evangélico será sempre uma pessoa, um grupo ou uma instituição
instalada em suas ideias, posturas normóticas, preconceituosas, intolerantes...
Todos sabemos que isso constitui
um mecanismo de defesa através da qual a pessoa busca proteger-se frente àquilo
que poderia questioná-la ou trata de desqualificar a alguém diante de quem se
sentiria inferior. Aqui aparece claro como a desqualificação do outro esconde
medo ao diferente ou, simplesmente, ao novo, e algum sentimento oculto de
inferioridade.
O filósofo Gabriel
Marcel escreveu que “a indiferença é
o grau mais baixo da liberdade” e o Pastor negro, Martin Luther king Jr,
concordava com isso, ao dizer que se assustava mais com a indiferenças dos bons
do que com as atitudes dos maus. De fato, ele tinha razão.
Se, por um lado
ela é “a maneira mais polida de desprezar
alguém” (Mario
Quintana), a indiferença, em relação ao outro, é terreno fértil para
alimentar o ego, levando-o à cobiça e à inveja.
Não admira o
semelhante a não ser para desconstruir ou destruir a sua imagem.
De fato, a
indiferença é como uma praga no jardim, vai se espalhando e contaminando e pode
revelar, em sua raiz, uma insegurança estonteante em relação ao outro.
Psicologicamente, diríamos que a indiferença é um mecanismo de defesa, é
negação. Na negação do outro se escondem sentimentos de auto-destruição e um
deles é a inveja. Quem cultiva a indiferença, facilmente sente-se alegre ao
saber que o outro está numa pior. Nietzsche afirma que não saber voar é a
qualidade dos indiferentes que, cada vez menos, enxergam aqueles voam alto e,
se os enxergam, é a partir de uma ótica corrompida pela forma ofuscada de ver a
vida. Jesus foi aquele que começou a voar alto e sua comunidade tentou
cortar suas asas.
Também para nós hoje
continua sendo difícil crer n’Aquele que simplesmente se revela “como um de
nós”. Não é fácil reconhecer a passagem de Deus por nossa vida, especialmente
quando essa passagem se reveste de “roupagem comum”; às vezes, gostaríamos que Deus se manifestasse de
maneiras espetaculares, mas o enviado d’Ele, seu próprio Filho, come em nossas
mesas, caminhas nossos passos e veste nossas roupas. Rejeitamos, quase que
por instinto, a revelação de um Jesus muito humano e que não esteja de acordo
com o que aprendemos desde pequenos. Acostumados a ouvir sempre o mesmo, se
alguém diz algo diferente, mesmo que esteja mais de acordo com o Evangelho,
rejeitamos de imediato.
Estamos seguros de
que “tudo o que não
corresponde ao sabido, ao esperado, não pode vir de Deus”.
Em
outras palavras, temos medo do Jesus humano, porque Ele coloca em questão nossa
segurança, nosso estilo de vida e nossa vivência religiosa.
Entrar no caminho do seguimento de
Jesus implica estar desapegado de todas as falsas imagens que podemos fazer
sobre Ele. Sempre que nos fechamos em ideias fixas sobre Jesus, estamos nos preparando
para o escândalo.
O Jesus do
Evangelho nunca se apresenta duas vezes com o mesmo rosto. Se O buscarmos de
verdade, descobri-Lo-emos sempre diferente e desconcertante. Se esperamos encontrar um “Jesus
domesticado”, nos enganamos a nós mesmos, aceitando o ídolo que já nos é
familiar. A consequência é uma vida cristã atrofiada e pesada, centrada na
doutrina, na lei, na moral, e não no seguimento d’Aquele que, na “normalidade
da vida”, deixou transparecer o extraordinário Amor do Pai.
Texto bíblico: Mc 6,1-6
Na oração:
Marcos não narra este episódio em Nazaré
para satisfazer a curiosidade de seus leitores, mas para advertir às
comunidades cristãs que Jesus pode ser rejeitado justamente por aqueles que
acreditam conhece-Lo melhor: aqueles que se fecham em suas ideias
pré-concebidas, sem abrir-se à novidade de sua mensagem e nem ao mistério de
sua pessoa.
- Esta era a preocupação de Paulo: “Não
apagueis o Espírito, não desprezeis o dom de Profecia, mas examinai tudo e
ficai só com o que é bom” (1Tes. 5,19-21). Nós cristãos deste tempo pós-moderno
estamos precisando alimentar esta atitude. Estamos vivendo demasiado
indiferentes frente à novidade revolucionária da mensagem de Jesus. Com o peso
do legalismo, do moralismo, do ritualismo... estamos correndo o risco de apagar
seu Espírito e desprezar sua Profecia.
- Rezar sua presença cristã no
cotidiano da vida: faz diferença? Presença inspiradora e provocativa? Ou
presença acomodada, sem deixar-se interpelar pelo modo original de ser e viver
de Jesus?...
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