“Ao desembarcar, Jesus viu uma numerosa multidão e
teve compaixão” (Mc 6,34)
No evangelho deste domingo, contemplamos Jesus
olhando a realidade para além da superfície evidente de abandono em que vive o
povo, até chegar a outra dimensão mais profunda onde descobre o rosto de um Pai
compadecido, que sofre o abandono e a dor de seus filhos e filhas.
Jesus olha e vê. Esse é o primeiro passo.
Não desvia de seus olhos a realidade dura de seu povo. “Contemplava”, ou seja,
olhava atentamente, uma e outra vez, pousava o olhar sobre a crosta ressecada e
sem beleza provocada por golpes mal curados. E, nesse primeiro olhar, vê a
miséria da multidão dispersa frente a ausência de verdadeiros pastores que
cuidassem de suas ovelhas; vê as mordidas mal cicatrizadas dos lobos.
Desse primeiro olhar nascem a compaixão, a misericórdia. Seu coração sensível deixa-se afetar pela miséria e
abandono de seu povo.
Como em outras passagens do
Evangelho, Jesus muda o plano do dia de descanso com seus discípulos para
acolher a dor das pessoas que surge de repente em seu caminho; contempla-as, e
em sua maneira de se fazer próximo está já encarnado, em gestos, palavras e
olhares, o Reino que anuncia.
Deus é compassivo: esta é a base da atuação de
Jesus. É precisamente esta compaixão de Deus aquela que move Jesus em direção das vítimas
inocentes: as maltratadas pela vida ou pelas injustiças dos poderosos. É a
compaixão de Deus que faz Jesus tão sensível ao sofrimento e à humilhação das pessoas.
Sua paixão pelo Deus da compaixão se traduz em compaixão pelo ser humano.
A
partir desta experiência de um Deus compassivo, Jesus vai introduzir um
princípio de atuação, a compaixão.
Chegou o momento de recuperar a compaixão como a herança decisiva que Jesus
deixou à humanidade, a força que deve impregnar a marcha do mundo, o princípio
de ação que deve mover a história para um futuro mais humano. É a compaixão, ativa e
solidária, aquela que nos há de conduzir para esse mundo mais digno e ditoso querido
por Deus para todos.
“Com-paixão”,
palavra
de etimologia latina, significa “padecer-com”, “sentir-com”, vibrar-com”,
“afetar-se-com”... Seu equivalente, derivado do grego, seria a palavra “simpatia”,
termo ao qual se opõe diretamente o de “a-patia”, ausência de
sentimentos, de vibração, de capacidade de proximidade...
Muitos se referem à compaixão
como uma paixão, outros como uma emoção forte, outros ainda, como um
sentimento...; mas todos coincidem em um ponto: ela tem a ver com nossa comum humanidade.
A compaixão nos situa em uma
espécie de irmandade entre seres radicalmente iguais em sua humanidade. É um
dinamismo natural que expressa a bondade original do ser humano, a origem dos
sentimentos altruístas, a sensibilidade solidária...
A compaixão é força que impulsiona à ação; não se trata de uma relação de
cima para baixo, de quem, a partir de uma situação superior e distante, faz
concessões a quem lhe é inferior.
A compaixão é, antes de tudo, uma situação
na qual prevalecem a igualdade, a dignidade básica e comum do ser humano; ela
capacita a superar barreiras e condicionamentos que impedem uma vinculação
fraterna entre as pessoas, para chegar a se colocar no lugar do outro e atuar por e para ele.
A compaixão é essa
capacidade de sentir com o outro, particularmente o outro
golpeado pelas circunstâncias da vida. É a valentia para compartilhar sua
paixão, é participação imediata no seu sofrimento e buscar com ele a esperança,
o alívio e a alegria.
A compaixão des-vela o sentimento
profundo de amor para com aqueles que sofrem, buscando eficazmente aliviar sua
situação, através de uma ação bondosa e serviçal.
Por isso o outro deixa de ser um
estranho e se converte em próximo.
Mas a compaixão genuína nasce de uma fonte ainda
mais profunda: não é só a experiência da própria vulnerabilidade, mas a
consciência de uma identidade compartilhada. Não somos seres separados que,
eventualmente, se ajudam uns aos outros, mas que constituímos uma Unidade, pela
qual ninguém nos é indiferente. O bem dos outros é nosso bem; sua dor, nossa
dor. “Sou humano, e nada do humano me é
alheio”
(escritor romano Lactancio).
Por isso, podemos afirmar que o
obstáculo comum para viver a compaixão é a identificação com o ego.
Tal identificação apoia-se na
crença fundamental de que somos seres separados. Dessa crença nascem, entre
outras coisas, o individualismo, a egocentrismo, a indiferença, a
intolerância...
O ego busca a comodidade, porque se
rege pela lei do mínimo esforço, ou seja, pelo apego ao “agradável” e a aversão
para o “desagradável”. Tende a evitar tudo aquilo que lhe implica mudança em
suas rotinas ou expectativas e busca, acima de tudo, “sentir-se bem”. Dado que
a necessidade do outro o implicaria em um compromisso, o ego tende a
refugiar-se na indiferença, que não é outra coisa que a “cegueira” diante da
realidade, porque, como diz o refrão popular “olhos que não veem, coração que não
sente”.
Em definitiva, para poder viver a compaixão, precisamos ativar os
recursos internos que potenciam nossa capacidade de sentir e nossa capacidade
de amar e, simultaneamente, o empenho pessoal que nos permita libertar-nos da
identificação com o ego, assumindo um compromisso solidário com quem mais
sofre.
A compaixão esvazia toda pretensão de poder,
pois ela projeta a pessoa para o outro, torna a pessoa sensível ao clamor e às
necessidades do outro. A compaixão rompe a couraça do “eu”
constituída pelo poder. A vida do outro é a razão única da autoridade.
Um dos sintomas que definem a nossa
época é o fato de ser um tempo de “sem-compaixão”, um tempo no
qual se faz muito difícil vibrar de verdade com os outros, alegrar-se com quem
se alegra, caminhar juntos, com-viver, oferecendo-se mutuamente o ombro e
dando-se as mãos.
O outro, sua necessidade e sofrimento,
será sempre a alavanca que gera no coração humano a compreensão e o exercício
da autoridade como verdadeiro serviço.
Só a compaixão desloca cada
um para o lugar do outro. Só a compaixão ilumina a realidade do sofrimento
do outro. Só a compaixão move na direção da oferta do outro.
A compaixão é a entrada do
ser humano no mundo do humano; ela é o perfume do humano
que invade a chão da vida, a sua fragilidade e sofrimento, e torna operativo o
processo de humanização.
Texto bíblico:
Mc 6,30-34
Na oração:
A experiência de viver permanentemente sob o
olhar compassivo de Deus nos permite descobrir que “o ser-com” e “o
ser-para” é a autêntica condição humana que se desloca em direção ao
outro, na arte de deixar e abrir lugar ao excluído, ao estranho, ao
sobrante...
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Sua vivência do Seguimento de Jesus é marcada pelo “olhar compassivo e
comprometido” ou por práticas piedosas alienadas, que não o(a) projetam em
direção aos mais sofredores?
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