quinta-feira, 31 de outubro de 2024

"Todos os Santos" ou "todos santos"?

 Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj, como sugestão para rezar o Evangelho da solenidade de Todos os Santos e Santas.

“Bem-aventurados sois...”

A inspirada festividade deste domingo nos convida a deixar aflorar uma verdade referente à santidade que celebramos. No “Glória” da Missa católica professamos, referindo-nos a Deus: “Só Vós sois o Santo...”; estamos proclamando um atributo divino que nos afeta a todos, não de uma rica joia que só os privilegiados herdarão. Fomos criados à imagem e semelhança do “Deus Santo” e trazemos em nós a “faísca da santidade divina”, que quer se expandir.

Nós nos tornamos santos(as) à medida que abrimos espaço em nossas vidas para Deus se manifestar em sua santidade. A verdade última, a mais consistente e sólida, é que não somos santos(as) por nós mesmos, mesmo que derramemos todo nosso sangue por defender nossa fé e gastemos nossas vidas em benefício de nossos irmãos, mas porque em nossa vida, Deus deixa transparecer seu rosto, impregnando-nos de sua santidade. Não conquistamos nossa santidade por meritocracia, por esforço pessoal, mas por pura gratuidade. Ser transparência da santidade de Deus é a suprema vocação de todos nós.

Em outras palavras, somos santos(as) porque é Deus mesmo quem nos criou e nos colocou, com muito carinho, neste mundo, para sermos presenças visíveis da sua eterna santidade.

Na festividade de “Todos os Santos” cabem todos(as); aqueles(as) que, na glória eterna, já estão no coração de Deus; e todos nós que, durante este percurso de vida, fazemos das Bem-aventuranças a pauta de nossa conduta cristã.

Surge, então, a imagem de um(a) santo(a) que é filho(a) do momento e da situação presente, cuja atuação se dá no mundo em que está encarnado. O(a) santo(a) é aquele que, na “loucura santa”, revela uma pulsação de vida para com o mundo; é um biófilo (amigo da vida); é um(a) co-operador(a), agindo sob o primado da escuta da Palavra de Deus dita na e pela situação cotidiana.

Não é o trivial ou o excepcional que distingue a santidade de cada pessoa: o que importa é sua correspondência à Vontade de Deus expressa na situação concreta de cada dia.

Ser santo(a), portanto, é sermos dóceis para “deixar-nos conduzir” pelos impulsos de Deus, por onde muitas vezes não sabemos e não entendemos. Seus caminhos não são os nossos caminhos.

Assim, nós cristãos honramos a santidade universal, sem fronteiras de raça, de credo, de cultura... Nesse sentido, a santidade excede os limites da Igreja católica, porque o Espírito derrama seus dons sem medida e suscita sinais de sua presença em todos e em tudo. E, que sinais da presença do Deus Santo é mais eloquente que a vida, o amor, a plenitude ou a felicidade? E, talvez, deixar ressoar em nós o “somos todos santos(as)”, como um apelo a ser vivido no presente e não como uma promessa de futuro.

Diante disto, vamos nos deixar surpreender mais uma vez pelo evangelho indicado para a festa deste domingo e descobrir-nos “bem-aventurados(as)”, chamados(as) a ser felizes, a abrir espaço para que cada bem-aventurança fique gravada no mais profundo de nosso ser, iluminando nossa existência e deixando transparecer o rosto santo de Deus.

Como podemos viver diariamente as bem-aventuranças proclamadas por Jesus? Quem se encontra frequentemente com elas tem consciência de que seu conteúdo é inesgotável; sempre tem ressonâncias novas; sempre encontramos nelas uma luz diferente para o momento que estamos vivendo; elas se revelam sempre inspiradoras para o nosso modo de ser e viver.

As bem-aventuranças não são uma teoria, nem leis mais sofisticadas ou um plano que brota de nossa mente; em primeiro lugar, elas são a melhor descrição de quem foi Jesus e como Ele viveu; ao mesmo tempo, elas são a revelação do que há de melhor em nosso interior. Elas des-velam nossa verdadeira identidade, nossa essência humana.

“As bem-aventuranças são a carteira de identidade do cristão, que o identifica como o seguidor de Jesus”, afirma o papa Francisco. Se quisermos saber o que Jesus nos propõe para sermos felizes, para vivermos com mais intensidade e sentido, para realizarmos o sonho que Deus Pai-Mãe teve ao nos criar, encontraremos nas bem-aventuranças o manual de instruções. Se as seguirmos, seremos ditosos, benditos e iremos nos aproximando de nossa plenitude humana e divina.

A proclamação das bem-aventuranças é o prelúdio, a essência do estilo de vida que Jesus, o Bem-aventurando por excelência, que propõe o mesmo para toda a humanidade, independente de credo, raça, condição social... É a síntese da proposta vital que Jesus oferece à humanidade sedenta de sentido e necessitada de um projeto inspirador para orientar suas aspirações existenciais e a vivência da felicidade (plenitude) que tanto busca. O que Jesus oferece é um modo de ser e viver para ser feliz. Isso é justamente aquilo que a humanidade, em todo momento e lugar, tanto deseja.

Jesus é para nós o revelador de Deus e o revelador do ser humano. Nas bem-aventuranças Ele nos revela o plano de salvação (libertação, felicidade, plenitude) que Deus propõe para a humanidade inteira, em todo tempo e lugar. Deus nos criou a todos para que sejamos felizes, aspiração latente no interior de cada pessoa. Jesus, nas bem-aventuranças, nos mostra o caminho para viver com mais intensidade e plenitude.

O evangelista Mateus situa a proclamação das bem-aventuranças como abertura do “discurso evangélico” (caps 5; 6 e 7). E a primeira coisa que ele faz é descrever com detalhes o cenário onde se situa este discurso. Com isso, o que ele pretende é preparar-nos para escutar algo muito solene e muito importante: a multidão numerosa, a subida ao monte, Jesus sentado como o Mestre, os discípulos que se aproximam para não perder nada do que vai ser dito, o início solene da proclamação do discurso. Como bom mestre, Jesus apresenta o programa que Ele vai desenvolver ao longo de toda sua vida. Ao mesmo tempo, o programa de vida de todo(a) seguidor(a) seu(sua).

As bem-aventuranças são um retrato, um perfil do estilo de vida que Jesus assumiu e deseja que todos o assumam da mesma maneira. Como perfil, elas concretizam as características desse estilo de vida: partilha, mansidão, compaixão, justiça, misericórdia, humildade, coerência, abertura, proximidade, serviço... Em suma, as bem-aventuranças descrevem o perfil de uma “pessoa integrada”, de uma pessoa “muito humana”, pois elas revelam aquilo que é mais humano, e que está presente no mais profundo de cada um. Quem vive este perfil é feliz, ditoso, bem-aventurado. E a razão desta felicidade é porque nisso encontramos a Deus e fazemos parte de seu Reino.

Neste tempo de profundas divisões e conflitos entre as pessoas, neste tempo de dor e de ódio, neste tempo de desesperança e solidão, as bem-aventuranças nos ajudam a semear sementes de alegria, de paz, de mansidão, de compaixão..., porque são a grande força que temos para transformar a Igreja e o mundo.

As bem-aventuranças nos fazem ver que, mais que ciência e tecnologia, precisamos de mais humanidade, ternura, bondade, compaixão..., pois sem esses valores a vida se desumaniza. Por isso, as bem-aventuranças nos ajudam a viver com as mãos abertas e o coração solidário e nos anima a rejeitar o cinismo que reina em nossa vida ecológica, política, econômica e social.

As bem-aventuranças, portanto, vão muito mais além de tudo o que os mandamentos significam; elas não se fixam em alguns limites que não podem ser transgredidos, mas marcam algumas metas que nunca chegaremos a alcançar em plenitude. Não são a negação que estabelece o que não se pode fazer, mas a afirmação que nos dá vida e nos deixa profundamente felizes.

Por não serem leis, nem mandamentos, as bem-aventuranças não despertam sentimento de culpa. Pelo contrário, são fonte da perene alegria: alegria oblativa, carregada de compaixão, des-centrada...

Texto bíblico: Evangelho segundo Mateus 5,1-12


Na oração:

Repassar, pausadamente, cada uma das bem-aventuranças, contemplando o significado de cada palavra nascida do coração de Jesus.

- Em que medida elas se fazem presentes em sua vida? Há alguma bem-aventurança ainda “escondida” em seu interior, e que precisa ser ativada, para crescer na identificação com Jesus Cristo?

- Sua vida está centrada na vivência das bem-aventuranças (essência da vida cristã), ou ela se reduz a um mero cumprir alguns ritos vazios, algumas devoções egóicas, algumas práticas penitenciais estéreis...?

quarta-feira, 23 de outubro de 2024

CEGO DE JERICÓ: olhos abertos às surpresas da vida

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 30º. Domingo do Tempo Comum (Ano B).

“O cego jogou o manto, deu um salto e foi até Jesus” (Mc. 10,50)

 

Bar-Timeu: “bar”, em aramaico, significa “filho de”. Ele é um homem sem nome, conhecido simplesmente como filho de Timeu. Está sentado num ponto estratégico, mendigando às margens da estrada. Todos os peregrinos passam por ali para ir a Jerusalém. Marcos nos fala da “marcha decidida”, encabeçada por Jesus, em direção à Cidade Santa. Esta marcha estremece, dá medo, pois não se realiza nas melhores condições. Em três ocasiões anteriores Jesus já tinha predito sua paixão e morte em Jerusalém, nas mãos das autoridades, civis e religiosas. Os discípulos, também com medo, o seguiam; pouco a pouco muitas pessoas vão se somando à peregrinação: uma “multidão considerável”, nos diz o evangelista.

É o caminho da fidelidade no seguimento de Jesus. Identificar-se com Ele é levar até as últimas consequências o compromisso em favor da vida e dos mais excluídos.

À beira deste caminho, um cego está atento, pois é difícil que alguém passe por este ponto sem perceber a presença dele. Só ele sabe o incômodo que é estar cego, esmolar, vivendo fora da cidade, à margem do caminho.

A hora é agora e não há tempo a perder diante de tamanha oportunidade: a passagem do “Filho de Davi”.

Aquele que não via, vê Alguém muito especial que passa; e Aquele que passa é o Filho de Davi, o Messias aguardado por tantas gerações.

Ao mesmo tempo, o cego reconhece que Ele tem poderes terapêuticos e que pode curá-lo de sua cegueira.

Assim, do meio do barulho dos passos, da balbúrdia e do vozerio das pessoas, brota, da boca do cego, uma invocação incontrolável, cada vez mais persistente; uma oração, um ato de fé:

                                      “Jesus, Filho de Davi, tem compaixão de mim”.

Surpreende-nos a variedade de nomes e qualificativos em sua maneira de dirigir-se a Jesus. Certamente já ouvira falar sobre Ele e reconhece que Ele vem da parte de Deus e que age com autoridade.

Soa o primeiro “kyrie eleison”, que depois repetiremos constantemente nas comunidades cristãs.

Os “guardiões da ordem” o repreendem para que se cale esta voz incômoda que vem da margem.

Aqueles que acompanham a Jesus não querem saber nada dos problemas do cego. É como se dissesse: “na situação em que te encontras não tens direito a protestar nem a gritar. Aguenta e cala-te!”.  São “muitos” que fazem caminho com Jesus, mas não têm a sensibilidade de descobrir a necessidade dos outros.

Mas a voz suplicante chega aos ouvidos de Jesus; este deixa-se afetar por ela e “se detém” no caminho.

Jesus interrompe bruscamente a sua caminhada apressada para Jerusalém. Ele ouve e pede para chamar justamente aquele cujo grito perturbava e incomodava a “tranquilidade” da multidão que o seguia.

O relato deste domingo tem pouco a ver com outros relatos de cura em Marcos.

É Jesus que chama o cego, pergunta o que ele quer, admite o título de “Filho de Davi”, não o afasta da multidão, a cura não é acompanhada de nenhum gesto, não o manda guardar silêncio a respeito da cura...

Os dois ainda não se conheciam, mas era forte, em ambos, o desejo de se encontrar.

Aquele que vê com os olhos da fé, quer ver com os olhos físicos. O cego levanta-se de um pulo, deixa de lado seu manto, sem hesitar: sua riqueza, sua segurança, seu teto... e entra na luz do olhar de Jesus.

Bartimeu não está mais excluído, às margens da estrada. Agora, ele se encontra no centro da cena: face a face com o “Filho de Davi”. Na verdadeira fé a luz interior envolve todo o seu corpo. Jesus acende os sentidos do cego e este recupera sua visão. Curado, ele se incorpora à marcha e segue alegremente Àquele que vai na frente.

A partir de agora ele poderá ver, não apenas o rosto das pessoas, a cor de uma flor, o sorriso de uma criança, o encanto da aurora ou o pôr-do-sol, mas, sobretudo, poderá ver a própria existência, o sentido das coisas, da história, dos acontecimentos humanos e da vida...

Finalmente, Bartimeu poderá decidir aonde ir, o que fazer da própria vida e como dirigir-se ao próprio Deus. Jesus não o segura; não o convida a segui-lo, mas oferece a capacidade de ver na direção certa; oferece-lhe a liberdade; ajuda-o a descobrir que, o desejo de viver, de caminhar, de gritar, nasce da fé.

E, naquela liberdade total, interior, faz a sua opção decidida: “...e seguia-o pelo caminho”. Esta frase expressa mobilidade e proximidade. Depois da experiência do encontro com Jesus, Bartimeu passou da imobilidade ao movimento, da exclusão à inclusão, do afastamento à proximidade...

Para ele, a obscuridade se tornou luz; a marginalidade se tornou estrada; a estraneidade se tornou familiaridade; a liberdade se tornou gratidão; a solidão se tornou seguimento...

E tudo isso começou de um grito... e de um salto.

A capa, que antes o acompanhava e o protegia, agora é abandonada. Fica lá, na beira da estrada, marcando o lugar da mudança. A imagem que ela representava é coisa do passado. A capa continua lá no mesmo lugar, mas Bartimeu, agora tomado pelo olhar de Jesus, é homem do caminho, discípulo, seguidor...

Ao chamado de Jesus, reage dando um salto. Salta para um novo ver, salta ainda mais para um novo ser.

Salta da vida sem graça, limitada a pedinte da margem do caminho, para a graça da vida de caminheiro solidário rumo à transformação.

O relato evangélico deste domingo também nos ajuda a recuperar o sentido de nossa visão, normalmente possessiva, estreita e interesseira. Nossa maneira de ver, nesta cultura da imagem, está muito condicionada pelos grandes meios de comunicação, que constantemente nos transmitem informações sobre a realidade, segundo a visão e o interesse dos donos. Gerou-se nas sociedades atuais uma maneira “comprada de ver”.

Por isso temos de libertar nossos olhares, tanto para olharmos a nós mesmos como para não entrarmos nas expectativas daqueles que nos olham com olhos que não respeitam nossa própria realidade pessoal.

É preciso olhar de outra maneira para ver e oferecer uma visão alternativa da realidade, para saber o que vivemos e a partir de onde o vivemos. Mas isso supõe um longo processo contemplativo que é inseparavelmente ascético e místico, íntimo e social, pessoal e comunitário.

Todos participamos de algum jeito das diferentes cegueiras deste mundo. Necessitamos de colírios que nos devolvam a vista, como a Igreja de Laodicéia (Ap 3,18).

Todos precisamos libertar o olhar de nossas cegueiras para contemplar a realidade como Deus a olha.

Precisamos voltar a receber, muitas e muitas vezes, esse olhar primeiro e originante de Deus, que pôs seus olhos sobre a criação, sobre cada criatura, fixa-se nela e a vê como boa e preciosa.

Nossa presença consiste em recuperar esse olhar de benção sobre nós e sobre o mundo. Com muito mais motivo sobre aqueles rostos que não encontram razões para serem considerados bons, formosos e atrativos.

São muitos os que, à beira da estrada, clamam para serem escutados e olhados de maneira compassiva, sem a frieza do julgamento, sem intolerância e preconceito.

É preciso “cristificar” nosso olhar para ativar uma sensibilidade solidária e comprometida.


Textos bíblicos: Evangelho segundo Marcos 10,46-52

Na oração:  

Orar com os olhos é dar o salto do simples “ver” a um sereno e profundo “olhar”. E deste, a um “sentir-nos olhados” muito mais amorosamente...

Ao orar, precisamos “olhar” e “sentir-nos olhados”.

     “O olho através do qual eu vejo Deus é o mesmo olho através do qual Deus me vê” (Angelo Silésius).

Para orar, basta aprender a olhar e a sentir-nos olhados.

Se pretendemos aprender a “olhar com amor”, sintamo-nos olhados desse modo.

- Além de olhar tudo com paz, se você quiser converta cada olhar em oração; olhe tudo com carinho.

- Recorde todos os “olhares amorosos” que Deus foi depositando sobre você ao longo da vida.

- Procure sempre que seu olhar seja límpido, sem filtro, isto é, isento de preconceitos.

- Coração e olhos espreitam na mesma direção. São os puros de coração os que verão a Deus (Mt 5,8).

quinta-feira, 17 de outubro de 2024

Menos poder e mais autoridade

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 29º. Domingo do Tempo Comum (Ano B).

Quem quiser entre vós ser grande, que se faça vosso servidor” (Mc 10,43)

Enquanto fazem o caminho de subida a Jerusalém, Jesus vai anunciando aos seus discípulos o desenlace trágico de sua missão na capital. Mas os discípulos não o compreendem, pois estão disputando entre eles os primeiros lugares. Tiago e João, discípulos de primeira hora, se aproximam d’Ele para pedir diretamente que, no Reino, pudessem sentar-se “um à sua direita e outro à sua esquerda”.

Tiago e João pedem privilégios a Jesus e, diante deste pedido atrevido, os outros dez discípulos ficam indignados contra eles. O grupo está mais agitado que nunca. A ambição está dividindo o grupo.

Ninguém no grupo dos discípulos entende que seguir Jesus de perto, colaborando em seu projeto de vida, nunca será um caminho de poder, de grandezas e ambição, mas de doação e compromisso fiel. Por isso, Jesus reúne a todos para deixar claro seu modo de ser e pensar.

Recorda-os que aqueles que são reconhecidos como chefes utilizam seu poder para “tiranizar” os povos, e os grandes “oprimem” seus súditos. Jesus é taxativo: “entre vós, não deve ser assim”.

Jesus dá tanta importância ao que está dizendo que se apresenta a si mesmo como exemplo, pois não veio ao mundo para exigir que lhe sirvam, mas “para servir e dar sua vida em resgate de muitos”. Ele não ensina ninguém a triunfar em sua nova comunidade, nem alimentar uma ambição que acaba envenenando as relações entre seus seguidores. A atitude essencial no seu Reino é o serviço, desgastando-se em favor dos mais fracos e necessitados.

O ensinamento de Jesus não é só para os dirigentes religiosos. A partir das funções e responsabilidades diferentes, todos devemos nos comprometer a viver com mais entrega no serviço de seu projeto. Na Igreja, não precisamos de imitadores de Tiago e João, mas de seguidores(as) de Jesus. Quem quiser ser importante, que desça do pedestal do poder e se coloque no lugar mais baixo, para trabalhar e colaborar com o Reino.

É muito próprio do ser humano o impulso egóico por sobressair sobre os outros, ter privilégios, conquistar fama. Esta é uma das grandes tentações que afloram, sobretudo em muitos membros das comunidades cristãs, ou seja, o avassalador desejo de serem protagonistas, de se imporem sobre os outros, de subirem o pedestal para serem o centro das atenções; essa é a desejada posição onde possam ser vistos, serem obedecidos e receberem algum tipo de bajulação. Todos estamos expostos à tentação de nos sentirmos indispensáveis, insubstituíveis e únicos.

E grande parte das tensões nos relacionamentos nas comunidades cristãs surge da confusão que fazemos entre “poder” e “autoridade”.

Poder: é a faculdade de forçar, coagir ou pressionar alguém a fazer sua vontade, por causa de sua posição ou força; exige submissão ou obediência cega.

Autoridade: é a capacidade de convencer, atrair, seduzir..., pelo seu modo de ser e viver, pelos seus valores, pela sua causa mobilizadora. Desperta “seguimento”.

O poder é definido como uma “faculdade”, enquanto autoridade é definida como uma “habilidade”. Uma pessoa pode estar num cargo de poder e não ter autoridade sobre as pessoas. Ou, ao contrário, uma pessoa pode ter autoridade sobre os outros sem estar numa posição de poder.

Outro modo de diferenciar “poder” e “autoridade” é lembrar que o poder pode ser vendido e comprado, dado e tomado. A autoridade, por sua vez, não pode ser comprada nem vendida, nem dada ou tomada.

A autoridade diz respeito àquilo que a pessoa é em sua essência, em sua identidade original; diz respeito ao seu caráter, à sua interioridade nobre e à sua presença inspiradora junto aos outros.

Acontece que, muitas vezes, aqueles que não vivem a autoridade descentrada, se apoiam no poder. Deixam de convencer e passam a se impor; perdem o apreço pelos outros e se mantém à base de força e opressão.

O poder é uma tentação permanente, inclusive nas comunidades cristãs; isso se manifesta pela quantidade de vezes que encontramos no NT advertências às lideranças eclesiásticas para que não corrompam sua autoridade, convertendo-a em poder (1Ped 5,1-4).

O poder encontra sua expressão visível e sua força numa instituição de estrutura piramidal, hierárquica. Neste paradigma de cima para baixo”, todos estão olhando para cima, tentando agradar aqueles que ocupam cargos, e não dirigem o olhar para os lados, onde a verdadeira realidade de uma instituição está acontecendo.

A estrutura hierárquica-piramidal fortalece a estrutura de poder, controle, vigilância, supervisão...; tal estrutura acaba por afetar e asfixiar a liberdade interna, a motivação e o compromisso dos membros da instituição; além disso, ela suprime iniciativas, criatividade e incentivos, em relação aos novos projetos.

O poder religioso é o mais tóxico, pois manipula consciências, alimenta culpa e medo de Deus, centraliza as decisões, é incapaz de escuta e de discernimento... Quão distante está da “sinodalidade”, modo original de ser e proceder das primitivas comunidades cristãs!

Na Igreja não há poderes, e sim funções diferentes. Nela, a autoridade é exercida como um serviço fraterno.

Assim sendo, Jesus não se situou, diante de seus discípulos como o superior que exige “obediência” de seus súditos, mas como o amigo exemplar que desperta “seguimento” de seus fiéis “amigos” (Jo. 15.15).

Jamais se disse dos discípulos ou de qualquer outro ser humano que se relacionasse com Jesus mediante a obediência ou a sujeição, que é a resposta obediente a uma ordem.

Portanto, os Evangelhos não falam de “obediência” a um poder que se impõe, submete e manda. A relação que se estabelece entre os discípulos e Jesus é a do “seguimento”.

De fato, nos evangelhos o verbo “obedecer” nunca é aplicado a indivíduos ou grupos que se submetem a um superior. Com efeito, o verbo “obedecer” aparece nos Evangelhos apenas três vezes: quando se diz que “o vento e o mar obedecem” a Jesus (Mc. 4,41); quando o próprio Jesus diz aos discípulos que, se tiverem fé, até uma amoreira silvestre lhes obedeceria (Lc. 17,6); e, quando as pessoas ficam espantadas ao verem que Jesus “manda até nos espíritos impuros e eles lhe obedecem” (Mc. 1,27).

No entanto, o verbo “seguir” aparece 67 vezes para expressar a relação entre Jesus e aqueles(as) que creem e confiam n’Ele.

A autoridade de Jesus, portanto, não se fundamenta na submissão e nem se sustenta no poder que manda, que controla e que dá ordens, mas suscita seguimento, pois Ele se apresenta numa atitude exemplar que atrai e dá sentido à vida das pessoas que o circundam.

A partir deste pano de fundo, o evangelho deste domingo aparece como um manual de uma Igreja de servidores (as), onde a vida adquire seu mais profundo sentido, onde surgem relações novas, fundadas na gratuidade, na compaixão, na acolhida...

Já é tempo de uma revolução. Há de ser uma revolução original e não violenta que brota do evangelho. Uma revolução de gente boa, simples, inteligente, sábia, que pratica a empatia, a ética e o sentido comum, que valoriza o silêncio e a palavra, que acolhe a todos, brancos ou negros, homens ou mulheres...

Falamos da revolução do serviço. Jesus não atua por meio do poder, mas do serviço. Por isso, seus seguidores devem renunciar o poder (isto é, a imposição sobre os outros). Aqui se expressa a Nova Comunidade que nasce do coração do Compassivo e Servidor, invertendo o desejo de poder dos “filhos de Zebedeu” e dos outros dez que queriam organizá-la a partir de cima.

Por isso, frente à manipulação messiânica dos “filhos de Zebedeu”, Jesus estabeleceu as bases de uma fraternidade onde não existe poder, senão serviço, exercido pelo “diakonos” (servidor libre).

Texto bíblico: Evangelho segundo Marcos 10,35-45

Na oração:

Diante de Jesus servidor deixe que Ele desvele sinais de “zebedeus” presentes em sua vida, quando busca poder, alimenta vaidade, tem desejos de imposição e controle sobre os outros, manipula consciências...

- Na sua comunidade (paroquial, religiosa, familiar...) predomina o poder que cria subservientes ou a autoridade que alimenta subsidiariedade (partilha, confia serviços e ministérios...).

quinta-feira, 10 de outubro de 2024

Há Vida Nesta Vida?

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 28º. Domingo do Tempo Comum (Ano B).

“Bom Mestre, o que devo fazer para herdar a vida eterna?”

Uma pergunta fundamental que brota de nossa interioridade: como chegar a viver uma vida que tenha o sabor de “eternidade”, ou seja, para além das limitações do tempo, da fragilidade e da caducidade das relações humanas; em outras palavras, uma vida plena, livre, profunda, transbordante... Todos desejamos dar um sentido à nossa vida, vivê-la com intensidade e com inspiração. Não nos satisfaz a explicação de que viveremos essa vida “na eternidade”: não poderemos começar a vivê-la já agora, em meio às carências, desafios, perdas, fracassos, crises... que vão se fazendo presentes em nossa existência cotidiana?

Aqui não se trata uma aspiração a mais; é o desejo de toda pessoa conseguir uma existência digna e feliz. Quem deseja uma vida vazia? Preenchê-la parece ser a meta, mas a questão é: de quê. Alguns mais, outros menos, mas todos aspiram uma vida plena, intensa, completa...

O “quê” da questão surge quando alguém descobre sua mochila vital transbordante de objetos, riquezas, ansiedades, pressas e vivências que, enganosamente, se mostram valiosos, mas que na realidade não o são. E quão cheia parece estar essa vida! E quão vazia a pessoa podem se sentir! Essa é a “síndrome existencial” onde o acumular embota os sentidos, atrofia o interior e não deixa lugar para o que é verdadeiramente importante. Uma vida cheia? Cheia de quê? De Vida!

Aqueles que seguiram Jesus de perto fizeram a experiência de estar junto de alguém que vivia intensamente, sem colocar sua segurança na posse de bens ou no apego às pessoas, títulos, prestígio, poder... Seu único tesouro era a confiança em seu Pai, e seu projeto, como Mestre, era ensinar as pessoas a viverem a partir da liberdade e da alegria de servir, sem se deixar determinar pelo apego e preocupação em possuir e acumular.

 É nesse contexto que alguém, de maneira inesperada, interrompe o caminho de Jesus, ajoelha-se diante d’Ele, chama-o de “Bom Mestre” e manifesta uma pergunta existencial, presente em todo ser humano: “que devo fazer para herdar a vida eterna? Chamou Jesus de “Bom Mestre”, não tanto como um reconhecimento de sua bondade, mas porque intuía nele uma autoridade capaz de orientar-lhe à hora de conseguir essa vida que tanto buscava. Mas Jesus, sem maiores explicações, remeteu-o à vivência dos mandamentos. Quando o homem lhe respondeu que os havia guardado desde sua juventude, Jesus fixou nele seu olhar com amor, acentuando a comunicação pessoal com alguém que andava buscando a Deus.

Jesus intui que o homem que está prostrado diante de si é bom, religioso e pratica os mandamentos; ele tem uma consistência humana; por isso, Jesus quer ajudá-lo a ir mais além da simples observância dos preceitos. A vivência dos mandamentos é necessária, mas não basta. Realizar o que está previsto pode ser até fácil e cômodo, mas não há muito mérito nisso; é preciso ser criativo e descobrir caminhos novos, e não apenas cumprir leis e preceitos. Para Jesus, não basta ser apenas cumpridores de normas, por mais recomendáveis e santas que sejam. A cada um Ele diz o que ainda “falta”.

Jesus não se fixa na situação atual daquele homem, preocupado em acumular riquezas, mas vislumbra nele uma outra possibilidade de vida e que estaria esperando em seu interior para nascer, para iluminá-lo nesse novo percurso existencial ao qual o “Bom Mestre” o convida a empreender. Para “herdar a vida eterna” é preciso investir os próprios recursos internos numa vida descentrada, oblativa, comprometida e que se expressa na partilha dos bens com os mais necessitados.

Jesus revela um olhar profundo capaz de vislumbrar o melhor que está presente naquele homem que veio correndo ao seu encontro, esperando uma ocasião para se expressar. Seu olhar contemplativo não permanece na superficialidade da pessoa, nas suas limitações e apegos.

Jesus viu, em profundidade, que o rico corria o risco de sufocar os desejos de liberdade, justiça e fraternidade presentes no mais íntimo do seu ser.

No diálogo com ele, Jesus o ajuda a discernir. Propõe-lhe que olhe o seu interior, à luz do amor com o qual Ele mesmo, olhando-o, o ama; é com esta luz do amor que o homem deve verificar a que seu coração está apegado verdadeiramente. Ele deve descobrir que seu bem maior não é acrescentar outros atos religiosos, talvez mais difíceis, mas, pelo contrário, esvaziar-se de si mesmo, vender o que ocupa sou coração para ampliar espaço para Deus. Esta é a chave que o abre à vida e que se encontra justamente na atitude de deixar, soltar, abandonar, desapegar-se, descentrar-se, partilhar... Viver esta vida com sabor de eternidade está longe de acumular, reter, colocar a segurança nos bens...

É uma indicação preciosa também para todos nós. Onde investimos o melhor de nós mesmos? Qual é o “tesouro” que nos seduz? Para onde estão orientados nossos “afetos”?

A “pressa” do homem do relato deste domingo, que veio correndo ao encontro de Jesus, parece que expressa uma falsa inquietude, uma má consciência, a necessidade de perfeição, de ser maior ou o melhor que os outros. Em todo caso, ele não está preocupado com a situação dos outros, mas com sua própria situação, com sua vida futura. Que importa a ele a situação dos camponeses, dos sem-teto, dos doentes... ou dos excluídos com os quais Jesus mais se preocupa?

Jesus o desafia a romper com seu mundo fechado, com seu modo legalista de viver... O desafio consiste em ir além da prática dos mandamentos, radicalizando-a. Como? Vivendo a solidariedade com os pobres e o desapego, numa experiência real da centralidade de Deus em sua vida, sem resquícios de idolatria. E, além disso, dar o passo do discipulado do Reino, no seguimento de Jesus.

Tal desafio deixa o homem contristado. O apego aos bens torna árido o seu coração, fecha-o no egoísmo, impede que ele se abra na direção de Deus e dos irmãos.

O “homem rico” do evangelho de hoje é o nosso espelho: nele nos vemos; nele Jesus nos desafia a sair de nossa acomodação, a romper nossa prática rotineira das leis, do apego aos bens, prestígio, poder... (falsos ídolos que nos desumanizam).

Jesus “olhou aquele homem com amor” e viu em seu interior ricas possibilidades, impulsos para algo maior, o desejo do “mais” ... Ele também dirige o seu “olhar” para cada um de nós e capta a grandeza e a nobreza presentes no nosso coração. Somos seres de travessia, de largos horizontes... Somos, por natureza, expansivos, em contínuos deslocamentos nos projetos, nos relacionamentos, na maneira de viver...

Nós nos humanizamos à medida que nos deixamos mover pelos sonhos, projetos, desejos profundos...

Ao mesmo tempo, Jesus, com seu olhar, “lê”, no mais escondido de nosso interior, os mais diferentes medos e apegos que minam a força e a coragem do seguimento.

Carregamos em nosso coração um “gérmen de vida” que busca desenvolver-se e chegar à plenitude.

S. Inácio nos diz que “Deus pôs grandes desejos em nosso coração”. O desejo é desejo de vida. O desejo não é a posse, mas a expectativa. Como explica S. Agostinho, o desejo escava no nosso interior uma capacidade maior de receber.

Quem se julga saciado ou pouco interessado em aceitar um esvaziamento de si, apaga dentro dele este desejo que tem sabor de eternidade e embarca numa vida medíocre e sem criatividade.

Texto bíblico: Evangelho segundo Marcos 10,17-30

Na oração:

Diante de Jesus, que desafia a todos a “fazer estrada com Ele”, deixar ressoar estas perguntas: “há vida na minha maneira de viver atualmente? Há algum “afeto desordenado” que atrofia as potencialidades presentes em meu interior? Quem é o “senhor” que move meu coração? A quê me dedico a investir os melhores recursos que recebi como dons? O mundo dos pobres e excluídos desperta uma sensibilidade solidária em mim, ou permaneço “indiferente” frente a esta cultura do consumismo e do esbanjamento?...”

sábado, 5 de outubro de 2024

Matrimônio: “amor originante” que se eterniza

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 27º. Domingo do Tempo Comum (Ano B).

“Desde o início da Criação, Deus os criou homem e mulher” (Mc 10,6) 

Os fariseus apresentam a Jesus uma pergunta para pô-lo à prova. Desta vez não é uma questão sem importância, mas uma situação que alimenta muito sofrimento às mulheres da Galileia e é motivo de acaloradas discussões entre os seguidores de diferentes escolas rabínicas: “É lícito o marido separar-se de sua mulher?”.

Não se trata do divórcio moderno que conhecemos hoje, mas da situação em que vivia a mulher judia dentro do casamento, controlado absolutamente pelo homem. Segundo a Lei de Moisés, o marido podia romper o contrato matrimonial e expulsar sua esposa de casa. A mulher, pelo contrário, submetida em tudo ao homem, não podia fazer o mesmo.

A resposta de Jesus surpreende a todos. Não entra nas discussões dos rabinos. Convida a descobrir o projeto original de Deus, que está acima de leis e normas. Esta lei “machista”, em concreto, se impôs no povo judeu pela dureza do coração dos homens, que controlavam as mulheres e as submetiam à sua vontade.

Jesus aprofunda no mistério do ser humano a partir de sua origem, quando Deus “os criou homem e mulher”. Os dois foram criados em igualdade. Deus não criou o homem com poder sobre a mulher. Não criou a mulher submetida ao homem. Entre homens e mulheres não deve haver dominação por parte de ninguém.

A partir desta visão do ser humano, já presente na origem, Jesus oferece uma visão do matrimônio que vai mais além de tudo o que foi estabelecido pela Lei. Mulheres e homens se unirão para “serem uma só carne” e iniciar uma vida compartilhada na mútua entrega, sem imposição nem submissão.

Este projeto matrimonial é para Jesus a suprema expressão do amor humano. O homem não tem direito algum para controlar a mulher como se fosse seu dono. A mulher não deve aceitar viver submetida ao homem. É Deus mesmo que os atrai a viver unidos por um amor livre e gratuito. Jesus conclui de maneira clara: “O que Deus uniu, o homem não separe”.

Com esta posição, Jesus está destruindo na raiz o fundamento do patriarcado e do machismo, sob todas as suas formas de controle, submissão e imposição do homem sobre a mulher. Não só no matrimônio, mas em qualquer instituição, civil ou religiosa.

O evangelho de hoje nos convida a retornar ao início da criação do ser humano, homem e mulher, chamados a viver a vocação da união mútua. O homem deve deixar seu pai e sua mãe, deve abandonar o sistema patriarcal e empreender um novo caminho, não já em solidão, mas na união maior imaginável: “se unirá à sua mulher e serão os dois uma só carne”. A identidade não é uma soma, mas a comunhão crescente que busca a unidade. Esta proposta original de Deus é vivida sempre entre os casais, de ontem e dos tempos atuais?

Hoje descobrimos, talvez com mais claridade que em outros tempos, o quão difícil para muitos casais manter a unidade amorosa, que no princípio de sua relação parecia ser tão forte.

São muitos os fatores dissonantes que impedem o “concerto amoroso”, são muitos os distanciamentos, as incompatibilidades, as divisões..., que esfriam o romance entre os casais. Hoje também, mais conhecedores da biologia e da psicologia humana, somos mais sensíveis e compreensivos para com aqueles que vivem profundos conflitos na relação matrimonial e, no entanto, sentem o chamado para a unidade.

A partitura que o Criador nos oferece de comunhão entre o homem e a mulher é belíssima, é “imagem e semelhança do mesmo Deus”, mas também é difícil interpretá-la como projeto de vida e de aliança sem volta atrás.

Jesus, na sua vida oculta e pública, encontrou uma realidade de muitos casais que não correspondia àquela desejada por seu Abbá Criador: “no princípio não foi assim!”. Ele que tem palavras de vida (transmissoras de vida), afirma taxativamente: “O que Deus uniu, o homem não separe”.

Estas palavras não são uma lei fria, mas uma promessa, uma realidade possível. O ser humano pode bloquear, com sua falta de fé e seu compromisso, o dom que lhe foi concedido. É preciso deixar o protagonismo para Deus na relação de casal.

Jesus convida a deixar-se unir por Deus, a descobrir aquela pessoa, na qual cada ser humano encontra sua “ajuda semelhante”. É preciso saber discernir que é “o que Deus uniu”. Bendizer aquilo que Deus “não uniu” é uma profanação. A beleza do Sacramento do Matrimônio está precisamente em deixar transparecer a benção de Deus diante daquele casal que Ele foi unindo através da aventura e do romance amoroso.

Ou seja, “serão uma só carne” quando realizam essa união ao longo da vida; tal realidade não se revela de forma automática ou mágica no instante de dizer “sim, quero”. Demora toda uma vida em realizá-la; às vezes não se consegue, o vínculo se interrompe ou se fragiliza. Requer, em alguns casos, sanação; em outros, refazer o caminho da vida.

O Evangelho de Jesus Cristo não é um código canônico, mas a Boa Nova da misericórdia. Deus nos ama também e, sobretudo, em nossas falhas e fracassos. A Igreja não é alfândega, mas casa paterna-materna onde há lugar para cada um com sua vida, carregada de recursos e de fragilidades.

Não se trata de pôr em discussão a visão cristã do matrimônio, mas de ser fiéis a esse Jesus que, ao mesmo tempo que defende o matrimônio, se faz presente a todo homem ou mulher, oferecendo-lhes sua compreensão e sua graça. Nunca se deixa determinar pela lei que julga e condena; mas, deixa transparecer um coração compassivo e acolhedor para com aqueles(as) que fracassaram em seu projeto de amor mútuo.

O próprio Jesus, que condena o adultério, se apresenta como defensor de uma mulher surpreendida em adultério, quando se encontra com ela cara a cara, cuja vida as autoridades religiosas queriam eliminar, Jesus, com sua atitude misericordiosa, longe de destruí-la, a perdoa e lhe oferece um novo futuro: “Nem eu te condeno. Vai e de agora em diante não peques mais”. Esta é a atitude mais humana e humanizadora: crítica exigente frente a uma sociedade que chama “amor” a qualquer coisa. E toda a compreensão do mundo diante de quem tem que viver situações de dor e de sofrimento, porque seu amor se rompeu ou fracassou.

Os fracassos matrimoniais não são sempre e nem fundamentalmente um problema jurídico que se possa resolver com determinadas leis. São problemas pessoais, emocionais, psíquicos, de raízes e consequências muito profundas, que as leis não podem nunca solucionar.

Temos de redescobrir atitudes mais próximas para com os casais rompidos, independentemente de soluções jurídicas, civis ou eclesiais. Como cristãos, não podemos fechar os olhos diante de um fato profundamente doloroso. Os(as) divorciados(as), geralmente, não se sentem compreendidos pela Igreja, nem pelas comunidades cristãs. A maioria só escuta a aplicação de leis e disciplinas que não conseguem entender. Abandonados(as) em seus problemas e sem a ajuda de que necessitam, não encontram na Igreja o lugar da acolhida.

É precisamente nestas circunstâncias quando deveríamos nos perguntar o que podemos fazer, como cristãos, para ajudar tantos homens e mulheres que vivem situações de profundas dores, provocadas por conflitos e incompatibilidades na vivência matrimonial. Não basta defender teoricamente a indissolubilidade matrimonial e impor mais pesos sobre os ombros dos casais católicos que não podem carregar.

Temos de nos perguntar: que ajudas as comunidades cristãs podem oferecer a tantas pessoas que fracassaram em seu matrimônio, devido a uma opção não amadurecida, a uma falta de conhecimento mais profundo do(a) parceiro(a), a uma deterioração em sua comunicação, a incompatibilidades psicológicas, ou simplesmente por uma atitude egoísta?

É injusto que, levados por um rigorismo e legalismo excessivo, marginalizemos e esqueçamos muitos homens e mulheres que se esforçaram por salvar seu matrimônio, e que já não tem mais forças para enfrentar sozinhos(as) seu futuro. Mais misericórdia e menos rigorismo!

Texto bíblico: Evangelho segundo Marcos 10,2-16

Na oração:

Fazer memória de muitas pessoas que sofrem por causa do fracasso matrimonial e que não encontram apoio na comunidade cristã.

- Qual sua atitude diante delas? Rigidez na aplicação de leis ou acolhida misericordiosa?