Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj, como sugestão para rezar o Evangelho da solenidade de Todos os Santos e Santas.
“Bem-aventurados sois...”
A inspirada festividade deste domingo nos convida
a deixar aflorar uma verdade referente à santidade que celebramos. No
“Glória” da Missa católica professamos, referindo-nos a Deus: “Só Vós sois o
Santo...”;
estamos proclamando um atributo divino que nos afeta a todos, não de uma rica
joia que só os privilegiados herdarão. Fomos criados à imagem e semelhança do “Deus
Santo” e trazemos em nós a “faísca da santidade
divina”, que quer se expandir.
Nós nos tornamos santos(as) à
medida que abrimos espaço em nossas vidas para Deus se manifestar em sua
santidade. A verdade última, a mais consistente e sólida, é que não somos
santos(as) por nós mesmos, mesmo que derramemos todo nosso sangue por defender
nossa fé e gastemos nossas vidas em benefício de nossos irmãos, mas porque em
nossa vida, Deus deixa transparecer seu rosto, impregnando-nos de sua
santidade. Não conquistamos nossa santidade por meritocracia, por esforço
pessoal, mas por pura gratuidade. Ser transparência da santidade de Deus é a
suprema vocação de todos nós.
Em outras palavras, somos santos(as)
porque é Deus mesmo quem nos criou e nos colocou, com muito carinho, neste
mundo, para sermos presenças visíveis da sua eterna santidade.
Na festividade de “Todos os Santos” cabem
todos(as); aqueles(as) que, na glória eterna, já estão no coração de Deus; e
todos nós que, durante este percurso de vida, fazemos das Bem-aventuranças
a pauta de nossa conduta cristã.
Surge, então, a imagem de um(a) santo(a) que é filho(a) do momento e da
situação presente, cuja atuação se dá no mundo em que está encarnado. O(a) santo(a) é aquele que, na “loucura
santa”, revela uma pulsação
de vida para com o mundo; é um biófilo (amigo
da vida); é um(a) co-operador(a),
agindo sob o primado da escuta da Palavra de Deus dita na e pela situação
cotidiana.
Não é o trivial ou o excepcional
que distingue a santidade de cada pessoa:
o que importa é sua correspondência à Vontade de Deus expressa na situação
concreta de cada dia.
Ser santo(a), portanto, é sermos dóceis para “deixar-nos
conduzir” pelos impulsos de Deus, por onde muitas vezes não sabemos e
não entendemos. Seus caminhos não
são os nossos caminhos.
Assim, nós
cristãos honramos a santidade universal, sem fronteiras de raça, de
credo, de cultura... Nesse sentido, a santidade excede os limites da Igreja
católica, porque o Espírito derrama seus dons sem medida e suscita sinais de
sua presença em todos e em tudo. E, que sinais da presença do Deus Santo é mais
eloquente que a vida, o amor, a plenitude ou a felicidade? E, talvez, deixar
ressoar em nós o “somos todos santos(as)”, como um apelo a ser vivido no
presente e não como uma promessa de futuro.
Diante disto, vamos nos deixar
surpreender mais uma vez pelo evangelho indicado para a festa deste domingo e
descobrir-nos “bem-aventurados(as)”, chamados(as) a ser felizes, a abrir espaço
para que cada bem-aventurança fique gravada no mais profundo de nosso ser, iluminando
nossa existência e deixando transparecer o rosto santo de Deus.
Como podemos viver diariamente as bem-aventuranças
proclamadas por Jesus? Quem se encontra frequentemente com elas tem
consciência de que seu conteúdo é inesgotável; sempre tem ressonâncias novas;
sempre encontramos nelas uma luz diferente para o momento que estamos vivendo;
elas se revelam sempre inspiradoras para o nosso modo de ser e viver.
As bem-aventuranças não são uma teoria, nem leis
mais sofisticadas ou um plano que brota de nossa mente; em primeiro lugar, elas
são a melhor descrição de quem foi Jesus e como Ele viveu; ao mesmo tempo, elas
são a revelação do que há de melhor em nosso interior. Elas des-velam nossa
verdadeira identidade, nossa essência humana.
“As
bem-aventuranças são a carteira de identidade do cristão, que o identifica como
o seguidor de Jesus”,
afirma o papa Francisco. Se
quisermos saber o que Jesus nos propõe para sermos felizes, para vivermos com
mais intensidade e sentido, para realizarmos o sonho que Deus Pai-Mãe teve ao
nos criar, encontraremos nas bem-aventuranças o manual de instruções. Se as
seguirmos, seremos ditosos, benditos e iremos nos aproximando de nossa
plenitude humana e divina.
A proclamação das bem-aventuranças é o
prelúdio, a essência do estilo de vida que Jesus, o Bem-aventurando por
excelência, que propõe o mesmo para toda a humanidade, independente de credo,
raça, condição social... É a síntese da proposta vital que Jesus oferece à
humanidade sedenta de sentido e necessitada de um projeto inspirador para
orientar suas aspirações existenciais e a vivência da felicidade (plenitude)
que tanto busca. O que Jesus oferece é um modo de ser e viver para ser feliz.
Isso é justamente aquilo que a humanidade, em todo momento e lugar, tanto
deseja.
Jesus é para nós o revelador de
Deus e o revelador do ser humano. Nas bem-aventuranças Ele nos revela o plano
de salvação (libertação, felicidade, plenitude) que Deus propõe para a
humanidade inteira, em todo tempo e lugar. Deus nos criou a todos para que
sejamos felizes, aspiração latente no interior de cada pessoa. Jesus, nas
bem-aventuranças, nos mostra o caminho para viver com mais intensidade e
plenitude.
O evangelista Mateus situa a proclamação das
bem-aventuranças como abertura do “discurso evangélico” (caps 5; 6 e 7). E a
primeira coisa que ele faz é descrever com detalhes o cenário onde se situa
este discurso. Com isso, o que ele pretende é preparar-nos para escutar algo
muito solene e muito importante: a multidão numerosa, a subida ao monte, Jesus
sentado como o Mestre, os discípulos que se aproximam para não perder nada do
que vai ser dito, o início solene da proclamação do discurso. Como bom mestre,
Jesus apresenta o programa que Ele vai desenvolver ao longo de toda sua vida.
Ao mesmo tempo, o programa de vida de todo(a) seguidor(a) seu(sua).
As bem-aventuranças são um retrato,
um perfil do estilo de vida que Jesus assumiu e deseja que todos o assumam da
mesma maneira. Como perfil, elas concretizam as características desse estilo de
vida: partilha, mansidão, compaixão, justiça, misericórdia, humildade,
coerência, abertura, proximidade, serviço... Em suma, as bem-aventuranças
descrevem o perfil de uma “pessoa integrada”, de uma pessoa “muito humana”,
pois elas revelam aquilo que é mais humano, e que está presente no mais
profundo de cada um. Quem vive este perfil é feliz, ditoso, bem-aventurado. E a
razão desta felicidade é porque nisso encontramos a Deus e fazemos parte de seu
Reino.
Neste tempo de profundas divisões e conflitos
entre as pessoas, neste tempo de dor e de ódio, neste tempo de desesperança e solidão,
as bem-aventuranças nos ajudam a semear sementes de alegria, de paz, de
mansidão, de compaixão..., porque são a grande força que temos para transformar
a Igreja e o mundo.
As bem-aventuranças nos fazem ver que, mais que
ciência e tecnologia, precisamos de mais humanidade, ternura, bondade,
compaixão..., pois sem esses valores a vida se desumaniza. Por isso, as
bem-aventuranças nos ajudam a viver com as mãos abertas e o coração solidário e
nos anima a rejeitar o cinismo que reina em nossa vida ecológica, política,
econômica e social.
As bem-aventuranças,
portanto, vão muito mais além de tudo o que os mandamentos significam;
elas não se fixam em alguns limites que não podem ser
transgredidos, mas marcam algumas metas que nunca chegaremos a
alcançar em plenitude. Não são a negação que estabelece o que não
se pode fazer, mas a afirmação que nos dá vida e nos deixa
profundamente felizes.
Por não serem leis, nem mandamentos, as bem-aventuranças não despertam sentimento de culpa. Pelo contrário, são fonte da perene alegria: alegria oblativa, carregada de compaixão, des-centrada...
Texto bíblico:
Evangelho segundo Mateus 5,1-12
Na
oração:
Repassar,
pausadamente, cada uma das bem-aventuranças, contemplando o significado de cada
palavra nascida do coração de Jesus.
-
Em que medida elas se fazem presentes em sua vida? Há alguma bem-aventurança
ainda “escondida” em seu interior, e que precisa ser ativada, para crescer na
identificação com Jesus Cristo?
-
Sua vida está centrada na vivência das bem-aventuranças (essência da vida
cristã), ou ela se reduz a um mero cumprir alguns ritos vazios, algumas
devoções egóicas, algumas práticas penitenciais estéreis...?