Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 9º. Domingo do Tempo Comum (Ano B).
“Estende a mão!” (Mc 3,5)
Retornamos ao tempo litúrgico conhecido como
“Tempo Comum”, depois de termos feito o percurso do Tempo Quaresmal e do Tempo
Pascal. Neste ano “B”, seguimos o evangelista Marcos.
O evangelho deste domingo nos motiva a fazer
caminho com Jesus, que se revelou profundamente livre diante das tradições
religiosas judaicas; o relato que a liturgia nos propõe encontramos Jesus
“transgredindo” a lei do sábado em duas situações diferentes: uma no campo,
onde os discípulos colhiam espigas de trigo para comer e outra na sinagoga,
onde o próprio Jesus se encontra com um homem de mão atrofiada, excluído, carente
de energia e vitalidade.
A sinagoga era o lugar onde
se recordava e se celebrava o Deus que havia conduzido o seu povo “com braço estendido e mão
forte” para a terra da liberdade; agora se
converteu em um lugar onde a Lei afoga a liberdade dos filhos de Israel.
A sinagoga se transformou no espaço onde se gera submissão, medo e escravidão;
em vez de pôr as pessoas de pé, a caminho de uma nova Páscoa, atrofia seus
braços e as paralisa; ela deixa de ser lugar de celebração da vida para ser
lugar de exclusão, de indiferença e preconceito.
O sentido do sábado era
este: dia de festa pelo bem-estar (Shalon) de todas as criaturas, dia da
comunhão universal, do repouso da Criação em Deus. No entanto, a casuística e o
legalismo farisaico fizeram da libertação um jugo e da festa um pranto.
Na sinagoga Jesus expressa sua dor e sua
profunda irritação porque lhe dói a dureza de coração daqueles que fizeram de
Deus uma propriedade privada e da sinagoga, uma garantia de seus interesses.
Jesus vai converter a sinagoga em lugar de vida
para o filho de Israel paralisado; coloca-o de pé, estende-lhe a mão,
leva-o para o meio, devolve-lhe a capacidade de decisão...
No centro da sinagoga, ao lado do “Santo” (espaço
em que são conservados os livros sagrados), há uma elevação, o púlpito, onde
fica quem preside e quem faz a leitura. O “centro” é, pois, o
espaço que atrai as atenções de todos. É daí que, “paramentado”, o leitor
proclama o texto da Torá e dos Profetas, seguido da pregação. Normalmente os
doutores da Lei é que ocupavam a tribuna para fazer a pregação.
O centro, portanto, é o lugar mais
importante (e sagrado) da sinagoga, o lugar de onde a Torá ilumina a conduta do
ser humano.
O homem da mão seca certamente estava sentado
(“levante-se”) quando Jesus lhe ordena “ocupar o lugar da Torá”. Uma pessoa
deficiente é o centro de todas as atenções. Em vez de ler a Torá, Jesus provoca
a assembleia a fazer outra leitura – a leitura da vida de um
homem estigmatizado pela má interpretação da lei. Em outras palavras, trata-se
de permitir que fale o espírito da Lei, e não sua letra. Jesus provoca seus
adversários, acusando-os de transformar o sábado em dia de opressão, a festa em
dor.
Para o homem da mão seca, ocupar o “centro”
não era apenas dar uns passos rumo ao meio da sinagoga.
Certamente Jesus pretendia que ele encontrasse o
próprio centro, que reconhecesse a própria dignidade de ser humano, que
descobrisse o “eixo” da própria vida, assim como o ser humano foi criado
como centro de toda Criação. Não é a mão seca que diminui ou suprime a
dignidade do ser humano, como não são as mãos sadias a incrementá-la ou
garanti-la. O deficiente foi convidado a viajar para o próprio centro à
procura de sua “alma”, seu eixo, seu “eu interior”. Com isso pode estender o
braço, mostrar a mão, sem medo de dizer “eu sou gente”. Aí se dá a cura total
da pessoa.
Para que possa ser curado, ele
precisa encarar sua deficiência, precisa tornar-se o centro das atenções, não
pode se esconder dos olhares dos outros. Jesus exige que faça exatamente aquilo
que sempre tentou evitar: colocar-se no centro, ser observado e considerado.
Mas, Jesus queria atingir também a assembleia e
os defensores do legalismo do sábado. Agora põe como ponto de partida para
todas as leis uma pessoa concreta, com suas necessidades especiais.
Quando ordena ao deficiente físico ocupar o
centro, Jesus pretendia atingir tanto o doente quanto os que, embora fossem
fisicamente sãos, eram profundamente doentes de fundamentalismo e legalismo.
O sábado nasce como dia de comunhão com Deus e com as pessoas,
como festa pela vida que percorre a vida de todos. Enquanto uma criatura de
Deus estiver privada de liberdade e de vida, o sábado e a festa terão sempre o
gosto amargo da exclusão e do preconceito.
Os letrados e fariseus de hoje também não se alegram
quando o favor, o perdão e a misericórdia de Deus se aproximam dos pecadores e
excluídos. Eles têm prazer doentio em impor sobre os outros “pesados fardos”,
ritos vazios, mortificações e penitências que alimentam culpa...
Há concepções de “Deus” que matam a festa, a
alegria e o prazer de celebrar a vida; há homens e mulheres piedosos que não
sabem de banquete, de dança e de alegria. Há pessoas que não suportam a ternura
e a compaixão de Deus; parece que estão cheias de ressentimentos e frustrações,
como se a experiência de Deus não fosse uma experiência prazerosa e
vivificante. Não suportam a alegria dos outros, não se alegram pelo fato de que
os pecadores tenham festa e perdão, os solitários tenham companhia, os
atrofiados recuperem sua liberdade e autonomia. Determinadas concepções de “Deus”
provocam atrofia do coração.
O homem da “mão ressequida” é um personagem
significativo. Jesus não hesita em transgredir o preceito sabático e declara o
supremo valor da vida. Temos aqui um homem impedido, pela atrofia e pelos
preconceitos religiosos, de exercer sua vida plena, sua autonomia e,
provavelmente, de participar integralmente do culto judaico. Lucas especifica
ser a mão direita. A mão é símbolo da força e da liberdade: através das mãos é
que são realizados os trabalhos: “dos trabalhos de tuas mãos hás de
viver”
(Sl 128,2); também na oração elas são meios de expressão: “à noite estendi
a mão, sem descanso”
(Sl 77,3).
Em termos antropológicos, ter as
mãos atrofiadas pode significar ausência de liberdade, de autonomia. Machucar
ou quebrar a mão ou o braço impede o exercício de funções e cria dependências.
Ficar de pé e ter a mão curada está em oposição à interpretação do sábado
proposta pelos fariseus e doutores da lei que criavam impedimentos, tolhendo a
maturidade e a autonomia dos fiéis perante o culto e a sociedade.
Jesus é o Senhor do sábado e
liberta o homem para o exercício da vida plena: trabalho e celebração, fé e
vida.
O Evangelho deste domingo também nos motiva a descer e transitar
pela nossa sinagoga interior, em companhia do Senhor; ali
encontraremos dimensões da vida que estão atrofiadas: nossa auto-imagem,
sentimentos negativos, rejeições, feridas, fracassos... que, embora dentro da
sinagoga, estão em um canto, escondidas dos olhares dos outros. Tais situações
consomem energia e esvaziam o fluir da vida.
O que é mais desumanizante e trágico não é ter mãos atrofiadas,
mas ter mentes e corações bloqueados pelo negacionismo,
intolerância, preconceito... Mentes atrofiadas são geradoras de mentiras (fake
news) e incapazes de uma visão mais crítica da realidade; mentes manipuladas
por aproveitadores de plantão; mentes incapazes de discernimento e de criar
algo novo... Corações atrofiados são fonte de rigidez, de insensibilidade, de
falta de compaixão; corações de pedra que só expelem veneno e impedem toda
possibilidade de encontro e de acolhida; corações incapazes de bombear uma só
gota de amor, mas só injetam veneno nas relações familiares, sociais,
religiosas, carregando o ambiente de violência, exclusão e ódio.
E Jesus mete o dedo na chaga daqueles que são “duros de coração”. Ele os chama de hipócritas, pois sabem manejar a lei segundo seus próprios interesses, mas incapazes de compaixão. O que Jesus não suporta é a falta de compaixão dos “piedosos”, “lobos revestidos em pele de cordeiro”.
Texto bíblico: Evangelho segundo Marcos 2,23-3,6
Na oração:
A
narrativa deste domingo nos convida a encarar a nossa vida e parar de nos esconder por trás de outros;
nos encoraja a arriscarmos, pois somente assim poderemos lidar com os conflitos
com os quais somos confrontados e dos quais não devemos fugir.
- Na “sinagoga” que é você (pensamentos, emoções, reações,
dizeres, olhares, conhecimentos, atitudes), o que está paralisado? atrofiado?
Nosso eu interior, nossa sinagoga. É nossa essência mas a nossa mente condicionada nos atrofia. Obrigada por esse texto tão brilhante
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