quarta-feira, 29 de maio de 2024

Destravar Mãos, Mentes e Corações

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 9º. Domingo do Tempo Comum (Ano B).

“Estende a mão!” (Mc 3,5) 

Retornamos ao tempo litúrgico conhecido como “Tempo Comum”, depois de termos feito o percurso do Tempo Quaresmal e do Tempo Pascal. Neste ano “B”, seguimos o evangelista Marcos.

O evangelho deste domingo nos motiva a fazer caminho com Jesus, que se revelou profundamente livre diante das tradições religiosas judaicas; o relato que a liturgia nos propõe encontramos Jesus “transgredindo” a lei do sábado em duas situações diferentes: uma no campo, onde os discípulos colhiam espigas de trigo para comer e outra na sinagoga, onde o próprio Jesus se encontra com um homem de mão atrofiada, excluído, carente de energia e vitalidade.

A sinagoga era o lugar onde se recordava e se celebrava o Deus que havia conduzido o seu povo “com braço estendido e mão forte” para a terra da liberdade; agora se converteu em um lugar onde a Lei afoga a liberdade dos filhos de Israel. A sinagoga se transformou no espaço onde se gera submissão, medo e escravidão; em vez de pôr as pessoas de pé, a caminho de uma nova Páscoa, atrofia seus braços e as paralisa; ela deixa de ser lugar de celebração da vida para ser lugar de exclusão, de indiferença e preconceito.

O sentido do sábado era este: dia de festa pelo bem-estar (Shalon) de todas as criaturas, dia da comunhão universal, do repouso da Criação em Deus. No entanto, a casuística e o legalismo farisaico fizeram da libertação um jugo e da festa um pranto.

Na sinagoga Jesus expressa sua dor e sua profunda irritação porque lhe dói a dureza de coração daqueles que fizeram de Deus uma propriedade privada e da sinagoga, uma garantia de seus interesses.

Jesus vai converter a sinagoga em lugar de vida para o filho de Israel paralisado; coloca-o de pé, estende-lhe a mão, leva-o para o meio, devolve-lhe a capacidade de decisão...

No centro da sinagoga, ao lado do “Santo” (espaço em que são conservados os livros sagrados), há uma elevação, o púlpito, onde fica quem preside e quem faz a leitura. O “centro” é, pois, o espaço que atrai as atenções de todos. É daí que, “paramentado”, o leitor proclama o texto da Torá e dos Profetas, seguido da pregação. Normalmente os doutores da Lei é que ocupavam a tribuna para fazer a pregação.

O centro, portanto, é o lugar mais importante (e sagrado) da sinagoga, o lugar de onde a Torá ilumina a conduta do ser humano.

O homem da mão seca certamente estava sentado (“levante-se”) quando Jesus lhe ordena “ocupar o lugar da Torá”. Uma pessoa deficiente é o centro de todas as atenções. Em vez de ler a Torá, Jesus provoca a assembleia a fazer outra leitura – a leitura da vida de um homem estigmatizado pela má interpretação da lei. Em outras palavras, trata-se de permitir que fale o espírito da Lei, e não sua letra. Jesus provoca seus adversários, acusando-os de transformar o sábado em dia de opressão, a festa em dor.

Para o homem da mão seca, ocupar o “centro” não era apenas dar uns passos rumo ao meio da sinagoga.

Certamente Jesus pretendia que ele encontrasse o próprio centro, que reconhecesse a própria dignidade de ser humano, que descobrisse o “eixo” da própria vida, assim como o ser humano foi criado como centro de toda Criação. Não é a mão seca que diminui ou suprime a dignidade do ser humano, como não são as mãos sadias a incrementá-la ou garanti-la. O deficiente foi convidado a viajar para o próprio centro à procura de sua “alma”, seu eixo, seu “eu interior”. Com isso pode estender o braço, mostrar a mão, sem medo de dizer “eu sou gente”. Aí se dá a cura total da pessoa.

Para que possa ser curado, ele precisa encarar sua deficiência, precisa tornar-se o centro das atenções, não pode se esconder dos olhares dos outros. Jesus exige que faça exatamente aquilo que sempre tentou evitar: colocar-se no centro, ser observado e considerado.

Mas, Jesus queria atingir também a assembleia e os defensores do legalismo do sábado. Agora põe como ponto de partida para todas as leis uma pessoa concreta, com suas necessidades especiais.

Quando ordena ao deficiente físico ocupar o centro, Jesus pretendia atingir tanto o doente quanto os que, embora fossem fisicamente sãos, eram profundamente doentes de fundamentalismo e legalismo.

O sábado nasce como dia de comunhão com Deus e com as pessoas, como festa pela vida que percorre a vida de todos. Enquanto uma criatura de Deus estiver privada de liberdade e de vida, o sábado e a festa terão sempre o gosto amargo da exclusão e do preconceito.

Os letrados e fariseus de hoje também não se alegram quando o favor, o perdão e a misericórdia de Deus se aproximam dos pecadores e excluídos. Eles têm prazer doentio em impor sobre os outros “pesados fardos”, ritos vazios, mortificações e penitências que alimentam culpa...

Há concepções de “Deus” que matam a festa, a alegria e o prazer de celebrar a vida; há homens e mulheres piedosos que não sabem de banquete, de dança e de alegria. Há pessoas que não suportam a ternura e a compaixão de Deus; parece que estão cheias de ressentimentos e frustrações, como se a experiência de Deus não fosse uma experiência prazerosa e vivificante. Não suportam a alegria dos outros, não se alegram pelo fato de que os pecadores tenham festa e perdão, os solitários tenham companhia, os atrofiados recuperem sua liberdade e autonomia. Determinadas concepções de “Deus” provocam atrofia do coração.

 

O homem da “mão ressequida” é um personagem significativo. Jesus não hesita em transgredir o preceito sabático e declara o supremo valor da vida. Temos aqui um homem impedido, pela atrofia e pelos preconceitos religiosos, de exercer sua vida plena, sua autonomia e, provavelmente, de participar integralmente do culto judaico. Lucas especifica ser a mão direita. A mão é símbolo da força e da liberdade: através das mãos é que são realizados os trabalhos: “dos trabalhos de tuas mãos hás de viver” (Sl 128,2); também na oração elas são meios de expressão: “à noite estendi a mão, sem descanso” (Sl 77,3).

Em termos antropológicos, ter as mãos atrofiadas pode significar ausência de liberdade, de autonomia. Machucar ou quebrar a mão ou o braço impede o exercício de funções e cria dependências. Ficar de pé e ter a mão curada está em oposição à interpretação do sábado proposta pelos fariseus e doutores da lei que criavam impedimentos, tolhendo a maturidade e a autonomia dos fiéis perante o culto e a sociedade.

Jesus é o Senhor do sábado e liberta o homem para o exercício da vida plena: trabalho e celebração, fé e vida.

O Evangelho deste domingo também nos motiva a descer e transitar pela nossa sinagoga interior, em companhia do Senhor; ali encontraremos dimensões da vida que estão atrofiadas: nossa auto-imagem, sentimentos negativos, rejeições, feridas, fracassos... que, embora dentro da sinagoga, estão em um canto, escondidas dos olhares dos outros. Tais situações consomem energia e esvaziam o fluir da vida.

O que é mais desumanizante e trágico não é ter mãos atrofiadas, mas ter mentes e corações bloqueados pelo negacionismo, intolerância, preconceito... Mentes atrofiadas são geradoras de mentiras (fake news) e incapazes de uma visão mais crítica da realidade; mentes manipuladas por aproveitadores de plantão; mentes incapazes de discernimento e de criar algo novo... Corações atrofiados são fonte de rigidez, de insensibilidade, de falta de compaixão; corações de pedra que só expelem veneno e impedem toda possibilidade de encontro e de acolhida; corações incapazes de bombear uma só gota de amor, mas só injetam veneno nas relações familiares, sociais, religiosas, carregando o ambiente de violência, exclusão e ódio.

E Jesus mete o dedo na chaga daqueles que são “duros de coração”. Ele os chama de hipócritas, pois sabem manejar a lei segundo seus próprios interesses, mas incapazes de compaixão. O que Jesus não suporta é a falta de compaixão dos “piedosos”, “lobos revestidos em pele de cordeiro”.


Texto bíblico: Evangelho segundo Marcos 2,23-3,6

Na oração: 

A narrativa deste domingo nos convida a encarar a nossa vida e parar de nos esconder por trás de outros; nos encoraja a arriscarmos, pois somente assim poderemos lidar com os conflitos com os quais somos confrontados e dos quais não devemos fugir.

- Na “sinagoga” que é você (pensamentos, emoções, reações, dizeres, olhares, conhecimentos, atitudes), o que está paralisado? atrofiado?

segunda-feira, 20 de maio de 2024

“No Espírito, pelo Filho, ao Pai”

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, SJ, como sugestão para rezar o Evangelho da solenidade da Santíssima Trindade.

“Ide e fazei discípulos meus todos os povos, batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo” (Mt 28,19)

 

Nem sempre é fácil, como cristãos, relacionar-nos de maneira concreta e viva com o mistério de Deus confessado como Trindade. A festa da Trindade nos recorda que não se trata de entender, ou simplesmente de pensar e estudar o Mistério das Três Pessoas divinas. O decisivo é viver o Mistério a partir da adoração e da partilha fraterna.

De Deus não sabemos nem podemos saber absolutamente nada. Temos que retornar à simplicidade da linguagem evangélica e utilizar a parábola, a alegoria, a comparação, o exemplo simples, como fazia Jesus. A realidade de Deus não pode ser compreendida, não porque seja complicada, senão porque é absolutamente simples; a nossa maneira de conhecer é que analisa e divide a realidade. Deus não é dividido em partes para que cada uma delas possa ser analisada por separado.

A Trindade chega até nós, não cada uma das “Pessoas” por separado. Ninguém poderá se encontrar só com o Filho, ou só com o Pai, ou só com o Espírito Santo. Nossa relação será sempre com o Deus Uno e Trino. É necessário tomar consciência de que quando falamos de qualquer uma das Três Pessoas divinas relacionando-se conosco, estamos falando de Deus. Nem o Pai só cria, nem o Filho só salva, nem o Espírito Santo só santifica. Tudo é sempre obra do Deus Uno e Trino.

Tudo em nós é obra do único Deus. Dizer que é preciso ter devoção a cada uma das pessoas, é uma “piedosa” interpretação do dogma. Que sentido pode ter, dirigir as orações ao Pai crendo que é diferente do Filho e do Espírito?

A partir de sua própria experiência de Deus, Jesus convida seus seguidores a se relacionarem de maneira confiada com Deus Pai, a seguirem fielmente seus passos como Filho de Deus encarnado e a deixarem-se guiar e alentar pelo Espírito Santo.  Enfim, ensina-os a se abrirem ao mistério da Trindade Santa.

“Só n’Ele (Jesus Cristo) a Trindade se comunica a nós e somos revelados pela Trindade. Jesus é o Mestre porque é a voz da Trindade para nós e a nossa voz para a Trindade. Jesus Cristo é a porta através da qual a Trindade passa até nós e nós até a Trindade. Jesus Cristo é o caminho que nos leva à Trindade e através da qual a Trindade chega até nós. Jesus Cristo é a Vida, porque n’Ele a Vida da Trindade corre em nós e a nossa pobre vida corre na vida da Trindade eterna de Deus” (Bruno Forte).

A festa da Trindade quer expressar o mistério do Amor-Vida de Deus que se comunica a nós. “Deus é UM, mas não está jamais só”. Deus não é um ser isolado, distante da Criação, solitário. É um Deus comunhão, família, sociedade, fraternidade etc. Por isso, o cume de toda a revelação bíblica é esta: “Deus é Amor”, ou seja, Deus não é uma realidade fria e impessoal, um ser triste, solitário e narcisista. E o Amor nunca é solidão, isolamento, mas comunhão, proximidade, diálogo, aliança...

O Deus revelado por Jesus é Amor e aproximar-nos do Deus Amor é descobrir a Trindade.

Se Deus deixasse de amar um só instante, deixaria de ser Deus. O movimento que parte do Pai, passa pelo Filho e se consuma no Espírito é um movimento de Amor sem fim.

Não podemos imaginá-Lo como poder impetrável, fechado em si mesmo. Em seu ser mais íntimo, Deus é vida compartilhada, diálogo, entrega mútua, abraço, comunhão de pessoas. O amor trinitário de Deus é amor que se expande e se faz presente em todas as criaturas.

Só quando intuímos, a partir da fé, que Deus é só Amor e descobrimos fascinados que não pode ser outra coisa senão Amor presente e palpitante no mais profundo de nossa vida, começa a crescer, livre em nosso coração, a confiança em um Deus Trindade, de quem o único que sabemos foi revelado por Jesus.

Quando se anuncia que estamos envolvidos amorosamente pela Trindade Santa, não devemos pensar em três entidades fazendo e desfazendo, separada cada uma das outras duas. As tradições orientais afirmam: “No Espírito, pelo Filho ao Pai”.

Antes de mais nada, Jesus convida seus seguidores a viverem como filhos e filhas de um Deus próximo, bom, com entranhas de misericórdia, amoroso, a quem todos poderão invocar como Pai querido. O que caracteriza este Pai não é seu poder e sua força, mas sua bondade e sua compaixão infinitas. Ninguém está só; todos temos um Deus Pai que nos compreende, nos ama e nos perdoa sempre.

Ao mesmo tempo Jesus convida seus seguidores a confiarem também n’Ele: “Não se perturbe vosso coração. Crede em Deus e crede em mim também”. Ele é o Filho de Deus, imagem viva de seu Pai. Suas palavras e seus gestos lhes revelam como o Pai de todos os quer bem. Por isso, convida a todos a segui-Lo. Ele os ensina a viver com confiança e docilidade a serviço do projeto do Pai.

Para isto, precisam acolher o Espírito que é o Sopro amoroso do Pai e do Filho: “Vós receberei a força do Espírito Santo que virá sobre vós e assim sereis minhas testemunhas”. Este Espírito é o Amor de Deus, o Alento que o Pai e seu Filho Jesus compartilham, a força, o impulso e a energia vital que fará dos seguidores de Jesus suas testemunhas e colaboradores a serviço do grande projeto da Trindade Santa.

A festa de hoje, portanto, nos coloca diante de nossos olhos a unidade da obra do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Jesus veio cumprir a obra do Pai e nos deu seu Espírito, para que permanecêssemos n’Ele, “ensinando a todos tudo o que Ele nos ordenou”.

Em Jesus Cristo, desperta-se a consciência da relação que há entre todos os seres humanos e destes com todas as demais criaturas e com o Criador. Ele não só tornou próximo um Deus cuja essência é encontro (cerne da doutrina cristã da Trindade), mas revelou que o caminho para a plenitude e a transformação humana consiste em “entrar no fluxo do encontro intra-trinitário”, fazendo-se encontro e re-construindo as relações rompidas.

Na verdade, Ele chamou o ser humano a sair de seu mundo fechado, de seu isolamento e padrões alienados de relacionamento para se expandir na direção de um novo encontro com tudo o que existe; tal encontro é o prolongamento do encontro trinitário e concretização do sonho do Reino de Deus.

Assim, a visão cristã de Deus como Trindade ajudou também a entender a pessoa humana como solidária mais que como solitária. A pessoa é tal quando vive em comunhão com outras pessoas.

Fomos criados à imagem do Deus, Comunidade de Pessoas; assim, carregamos em nosso interior o impulso para a convivência, a comunhão, o encontro... Só corações solidários adoram um Deus Trinitário.

Viver a cultura da indiferença, do ódio, da intolerância..., é bloquear a ação amorosa da Trindade no próprio interior. Sempre que construirmos relações pessoais e sociais que facilitem a circulação da vida, a comunhão de diferentes à base da igualdade, estaremos tornando um pouco mais visível o mistério íntimo do Deus Trino.

Texto bíblico: Evangelho segundo Mateus 28,16-20

Na oração:

A oração cristã, tanto a mais silenciosa como a mais jubilosa, é sempre abertura às permutas de amor das Três Pessoas divinas. Assim se expressa tantas vezes S. João da Cruz: o Espírito nos aspira com ele na comunhão do Pai e do Filho.

Toda oração cristã se expressa, espontaneamente, de maneira trinitária: rezamos ao Pai, pelo Filho, no Espírito. Isto não é uma fórmula, mas a expressão profunda do que vivemos. Assim se afirma, pouco a pouco, uma originalidade cristã da oração que vai marcar todas as atitudes espirituais da Igreja: contemplação, invocação, louvor litúrgico...

Configurando-nos ao Filho, no Espírito, a oração nos faz encontrar todos os seres humanos sob olhar do Pai; tal vivência fundamenta nossa fraternidade e a experiência daquilo que nos une.

sábado, 18 de maio de 2024

“A minha direção é a pessoa do Vento”

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, SJ, como sugestão para rezar o Evangelho da solenidade de Pentecostes.


“A minha direção é a pessoa do Vento” (M. Barros)

 “Soprou sobre eles e disse: ‘Recebei o Espírito Santo’” (Jo 20,22)

A Bíblia é um livro repleto de Ventos e de Caminhos. Assim são as narrativas de Pentecostes, repletas de caminhos que partem de Jerusalém e plenos de Vento, leve como uma brisa e impetuoso como um furacão.

Por seu sentido etimológico, “espírito” (“Ruah”, feminino na bíblia hebraica), se referwe ao vento, ao ar que impulsiona, ao alento ou a respiração que mantém a vitalidade dinâmica do ser humano. A “Santa Ruah” é um modo de descrever a presença divina que perpassa tudo, energiza toda a Criação, desperta o melhor em cada ser humano; como impulso, dinamismo, força, não pode ser contido nem retido, pois, assim como o vento, não sabemos de onde vem e nem para onde vai.

Desta maneira, a Sagrada Escritura ensina sobre a força, energia e ação vital do Espírito de Deus que é, por essa razão, “santo” e que se derrama sobre a humanidade para que se realize o plano de Deus na história.

O testemunho da revelação bíblica nos fala, portanto, da ação do Espírito num tríplice contexto: o Espírito é “atmosfera de Deus”, onde Deus pode ser encontrado e conhecido; “herança de Jesus”, memória de suas palavras e sinal de sua ação; e “ambiente de realização do ser humano”, porque n’Ele a vida adquire profundidade, consistência, criatividade...

Já no início do Genesis (1,1), o Deus bíblico se revela “saindo de si”, por pura gratuidade, porque “a Ruah de Deus pairava sobre a superfície das águas”. Derramado sobre a Criação toda, o Espírito Santo permeia tudo que faz parte da realidade, dos eventos históricos e da vida de todos. É o oxigênio do coração.

É o Sopro poderoso de Deus que re-spira (a-spira, in-spira, con-spira) na vida da humanidade e da Criação.

Sem o “sopro” direto de Deus, só pode existir o caos; se desaparece a Ruah, o universo morre, perde seu impulso de vida, se destrói. Só o alento de Deus oferece vida e ordem em meio ao “caos” presente na realidade. A obra do Espírito não é um ato do passado, própria do Deus antigo que por sua palavra e vontade quis fixar o mundo, mas é uma presença permanente, atravessando toda a realidade e constituindo o “cosmos” (beleza, harmonia, sinfonia).

O mundo fechado em si mesmo carece de ser, perde sua identidade. Existe, mas é distinto de Deus; só pode manter-se e ser em relação com Deus, porque Sua “Ruah” está presente e faz com que o mundo seja habitável e ofereça caminho de vida para o ser humano. Isso significa que, em sentido bíblico, as criaturas do mundo, por si mesmas, carecem de identidade e consistência; elas são, se desenvolvem e existem por força e impulso do Alento de Deus que as sustenta; elas são o que são só por “graça”, por presença pessoal divina.

Tudo se mantém vivo por meio d’Ele. É esse Espírito integrador que harmoniza todo o universo e todo o nosso ser, dando um novo sentido ao nosso existir no mundo, na comunidade cristã.

A festa de Pentecostes vem nos revelar que “Ruah” é fundamental e essencialmente energia pessoal, comunitária e cósmica. É energia de vida (força vital), energia de mudança (força de transformação) e luz para o discernimento.

Como energia vital, o Espírito é o princípio de criação; Espírito é invenção, é fonte de criatividade, de autêntica novidade.

Em relação ao velho mundo, a “Ruah” é força que emerge como “renovadora” de todas as coisas.

Por isso o Espírito é origem de surpresa e maravilhamento. Ele realmente opera maravilhas na história humana. É fonte de novas possibilidades dentro do mundo, energia inaugural de novas auroras.

E essa ação do Espírito se manifestou de modo universal e gratuita, suscitou, ao longo da história, pessoas ousadas, palavras desafiantes, caminhos ainda não percorridos, imagens novas. O Espírito insuflou vida em todas as etapas do universo, na evolução dinâmica para o novo.

Como energia de mudança, o Espírito é o grande transformador e revolucionário. Ele faz os ossos secos voltarem à vida (Ez. 37). Ele faz o deserto florescer no direito, na justiça e na paz (Is. 32,15-20). Ele é Aquele que quebra todas as amarras e desbloqueia todos os impasses.

Como luz para o discernimento: dos sete dons prometidos ao Rei messiânico, mais da metade se referem à inteligência (sabedoria, ciência, entendimento e conselho). Pois o Espírito revela o conhecimento profundo do Mistério de Deus e de seu Plano no mundo (1Cor 2,10-16). Ele dá aquela intuição profunda que permite descobrir os caminhos corretos dentro das ambiguidades da história.

Precisamos do Espírito; d’Ele precisa o nosso pequeno e estagnado mundo; d’Ele precisa a Igreja para que seja guardiã de liberdade e de esperança. O Espírito com os seus dons dá a cada cristão uma genialidade que lhe é própria. E temos extrema necessidade de discípulos(as) de gênio. Ou seja, precisamos que cada um acredite no seu próprio dom, nos próprios recursos, e que coloque a sua própria criatividade e coragem a serviço da vida. A Igreja, como Pentecostes contínuo, é coragem ousada, é inventividade, é poesia criativa, é saída solidária...

Pentecostes se revela também como momento privilegiado para ativar uma diferente perspectiva de visão e de sensibilidade. Há muita carência desse dom da sensibilidade nesse contexto marcado por profundas divisões, ódios, intolerâncias, mentiras... Somente aqueles “que vivem no Espírito” serão capazes de perceber Sua ação original e inspiradora, presente em tantos carismas que tornam a humanidade tão bela, tão interessante, tão divertida, tão inesperada.

Agora é o momento de acabar com todos os medos e inseguranças para viver centrados na confiança. A Igreja inteira é chamada a abrir todas as suas portas e janelas para que o Espírito que recebeu se faça extensivo para todo o mundo e toda a Criação. Tocados pelas “línguas de fogo” do Espírito, os cristãos discernem o que o Pai quer deste mundo e se fazem presentes nele como fermento, como sal, como grão de mostarda, como grão de trigo, para serem Igreja em missão, em saída, compassiva, generosa, portadora de perdão e cura, de força para os fracos e denúncia para os injustos.

Nós, movidos pelo Espírito que atuava em Jesus, fazendo-nos seus segui-dores(as), precisamos estar vigilantes se não quisermos cair na tentação da indiferença. Costumeiramente, tendemos ao conformismo. A cultura da indiferença é fortalecida toda vez que deixamos de acreditar que a realidade pode e deve ser diferente. Não podemos nos dar por vencidos acreditando que estamos no fim, que nossas forças já se esgotaram, que não há mais esperança e sentido para lutar.

Não apagueis o Espírito”, nos diz S. Paulo (1Tes 5,19), ou seja, não extingais a Divina Energia que faz crer, criar e ressuscitar. Cada vez que, ao longo da história, apagamos o fogo do Espírito, é preciso reavivar o braseiro da espiritualidade para além das religiões. Jesus traz o fogo que não destrói, mas que renova: força vi-vificadora e, ao mesmo tempo, “des-mascarado-ra” e “dis-cernidora” dos poderes de morte que tentam nos sufocar.

Texto bíblico: Evangelho segundo João 20,19-23

Na oração:

Depois de ter criado cada ser humano, Deus quebra o molde e lança-o fora. O Espírito nos faz únicos(as) na nossa maneira de amar, na nossa maneira de alimentar esperança; únicos(as) na maneira de consolar e viver os encontros; únicos(as) na maneira de desfrutar a doçura das coisas e a beleza das pessoas...

Esta é precisamente a obra do Espírito: guiar-nos para a “nobre verdade”, escondida no mais profundo de nós mesmos. Ninguém sabe cuidar como cada um(a) sabe; ninguém tem essa alegria de viver como cada um(a) tem; ninguém tem o dom de compreender os fatos como cada um(a) os compreende...

- Certamente, todos temos “Ruah”, alento e vida próprios. Mas nosso alento é vacilante, nossa vida é curta, nossa essência é deficiente, ameaçada pelas limitações e pela morte. Por isso, só somos “Ruah” de verdade, só existimos de maneira profunda, esperançada e criativa quando nos deixamos possuir e transformar pelo Espírito divino.

- Com que intensidade poderemos “dançar e voar”, conduzidos(as) pelo sopro da Ruah?

sexta-feira, 10 de maio de 2024

Ascensão: amplitude de visão e de ação

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, SJ, como sugestão para rezar o Evangelho da festa da Ascensão do Senhor.

 “Ide pelo mundo inteiro e anunciai a Boa-Nova a toda criatura” (Mc 16,15)

Ressurreição, Ascensão, sentar-se à direita de Deus, envio do Espírito Santo, são “mistérios” pascais.

O Mistério Pascal é tão rico e tão denso que não podemos abarcá-lo somente com uma imagem; por isso precisamos desdobrá-lo para poder experiênciá-lo de uma maneira mais profunda.

Celebrar a Ascensão de Jesus não significa, para os cristãos, algo diferente que celebrar sua Ressurreição. São só diferentes nomes para referir-se à mesma realidade: que, ao morrer, tanto Jesus como nós, mergulhamos na Vida de Deus.

Lucas, em seu Evangelho, põe todas as aparições e a Ascensão no mesmo dia. No entanto, nos Atos dos Apóstolos, ele fala de quarenta dias de permanência de Jesus com seus discípulos, provavelmente como um modo de indicar que eles haviam recebido a formação necessária para levar adiante a missão (“quarenta dias” com o mestre era o tempo que o discípulo precisava para alcançar uma preparação adequada).

A fé na Ascensão não é aceitar que uma pessoa “subiu” aos céus. É aceitar que Jesus é o sentido de tudo, a revelação de Deus e do sentido da existência: Ele é o Senhor.

Nos relatos da Ascensão, normalmente nos preocupa muito saber o lugar de onde Jesus subiu aos céus e para onde Ele foi; mas o que importa é que nosso destino é o coração de Deus e Jesus revela a grandeza do ser humano capaz de alcançar a divindade.

Pela sua Ascensão, Jesus Cristo acolheu tudo quanto é humano e desta maneira tudo redimiu.

Descobri-lo dentro de nós e nos outros é muito exigente e comprometedor. É muito mais cômodo continuar “olhando para o céu” e não sentirmos implicados com aquilo que está acontecendo ao nosso redor. Por isso, Ascensão é missão; é “descer” da montanha para as periferias da nossa Galileia (periferias existenciais, sociais, religiosas...) e ali prolongar a atividade libertadora de Jesus.

A Ascensão ocorre toda vez que, vivendo o Presente, transcendemos os limites temporais e nos experimentamos “ser em Deus”. Nestes momentos, nos alcança a Plenitude e saboreamos a Alegria.

Ao mergulhar na realidade, interna e externa, nos esbarramos n’Ele, o Ressuscitado.

A Ascensão do Ressuscitado, portanto, nos torna encarregados da missão de “fazer discípulos” à qual Ele, em sua glória, preside. Nós é que devemos reinventá-la a cada momento.

Celebrando a glorificação de Cristo, tomamos consciência de nossa própria vocação à glória.

A Ascensão é o lugar onde vai acontecer uma mudança profunda na vida de cada seguidor de Jesus: parti-mos para a missão; deixamos a Terra Santa, como os Apóstolos e, até o fim da vida, seremos os peregrinos de Cristo. Somos arrancados de tal experiência para adentrar-nos em um caminho de seguimento de horizontes desconhecidos, mas centrados no compromisso apostólico da missão na e da Igreja. “Passa-mos” da particularidade de um lugar para a universalidade da missão. A Ascensão pede de todos nós uma “amplitude de visão”, rompendo com tudo aquilo que atrofia e limita, nas diferentes dimensões da vida.

Saber-se continuadora da missão de Jesus, sustentada na bondade e na misericórdia do Abba e impulsionada pela força da Ruah: esta foi a experiência central da primitiva comunidade cristã em seu novo caminho, depois da Páscoa. Talvez por isto a pergunta dirigida aos discípulos no momento da Ascensão de Jesus: “por que ficais aqui parados, olhando para o céu?” (At 1,10). A pergunta tira-os da imobilidade e os leva de volta a Jerusalém, ao lugar onde começarão a construir a grande comunidade dos seguidores e seguidoras de Jesus. A pergunta os situa no lugar onde encontrarão, nesta vida, o “céu” que Deus quer presenteá-los.

Infelizmente, esta foi a eterna tentação: muitas igrejas e inúmeros cristãos, plantados, quietos, imóveis, ficaram olhando o “céu” durante séculos, com os braços cruzados. Pouco tinham a fazer neste mundo, além de resignar-se e esperar; seu campo de atuação não era o aqui e agora, senão o mais além. O mundo era “um vale de lágrimas” e a vida se definia como situação de passagem, espera de amanheceres que não dependiam deles, vale de sofrimentos sem consolo, morada do desencanto...

Ao contemplar a Ascensão de Jesus, muitos cristãos sentiam uma grande vontade de “subir” com Jesus, de fugir, de abandonar o mundo da violência, da injustiça, da desigualdade social, da fome, da violência... Diante da impossibilidade de “subir” com Ele, para além de nosso mundo caótico, eles se retiraram à vida privada, ao individualismo religioso, ao ritualismo, à salvação de sua alma, aos desertos, aos mosteiros, aos templos... para rezar, fazer penitências e mortificações, enquanto aguardavam a “segunda vinda” de Jesus.

Assim nasceu a “teologia do desencanto com o mundo”, como uma falsa leitura da Ascensão de Jesus.

Ainda hoje, são muitos aqueles que continuam olhando o céu, parados, fechados numa prática religiosa alienante, devocional e estéril, vivendo uma espiritualidade tóxica, distantes do compromisso com a transformação deste velho mundo. Também eles e elas merecem a reprimenda dos Atos dos Apóstolos: “Galileus, por que estais aí plantados, olhando o céu” (At 1,11).

A Ascensão de Jesus, curiosamente, é o contrário do movimento de “subida” ao céu; é um apelo a “descer”, a retornar à cidade, a deixar as alturas, os montes e as nuvens. É preciso olhar a terra, é preciso mobilizar as mãos em favor da mesma obra de Jesus, verdadeira sinfonia incompleta.

O cristão que tem os olhos fixos em Jesus também saberá olhar o chão, fazendo-se presente, de maneira cristificada, na realidade cotidiana. Esta é a desafiante missão de todo(a) seguidor(a) de Jesus: submergir-se na realidade, fazer-se cidadão(ã), “mundanizar-se”, unir-se a outros, lançar-se a gritar pelas ruas e praças que Jesus tinha razão e que seu projeto de humanização ainda é realizável, que ainda é possível recompor este velho quebra-cabeças da família humana, verdadeira Babel de egoísmo e falta de solidariedade, e acabar com esta onda de desigualdade, violência e miséria.

Construir um mundo de irmãos e não de “soberanos”: este é o desafio e a missão de todo cristão; o movimento despertado pela Ascensão significa um verdadeiro apelo a olhar o chão da vida e descer à realidade até transformá-la por dentro. Assim fez Jesus que, na sua encarnação, vida e morte, desceu, misturou-se com o mundo, fez-se solidário com todos os sofredores da história.

Uma igreja fechada, entrincheirada sobre si mesma, é uma igreja assustada que continua vivendo no cenáculo. Jesus tirou seus seguidores do templo, dos cenáculos e das estruturas eclesiásticas petrificadas: “ide por todo o mundo”. Tal apelo não faz referência somente a uma questão geográfica, mas humana: ide por todas as culturas, raças, crenças, trabalhe pelo diálogo ciência e fé, situações políticas e compromisso evangélico, anúncio da Boa Nova e cultura.

A evangelização implica uma dinâmica missionária de desinstalação, de agilidade e criatividade, de esperança.

A ascensão aos céus passa pela “descida aos infernos” da desumanização. Jesus, na sua encarnação, vida e morte, desceu ao mais profundo da condição humana, da miséria e da dor, da injustiça e da violência...

Nossa Ascensão passa pela descida ao baixo mundo dos empobrecidos, deprimidos, pisoteados, violentados, marginalizados; também é preciso descer às nossas próprias profundezas, marcadas, muitas vezes, por pesadas culpas, angústias, traumas e feridas. É preciso, em primeiro lugar, levar a boa-notícia do evangelho às dimensões esquecidas e excluídas de nossa vida interior.

Texto bíblico: Evangelho segundo Marcos 16,15-20

Na oração:

Para entrar no fluxo da Ascensão de Jesus é preciso, antes, “descer” até às profundezas de seu ser, até sua Galileia interior, abrindo espaço para que, também aí, chegue a luz do Evangelho.

Iluminado(a) pela Boa Notícia, “suba” em direção ao serviço e o compromisso com aqueles que estão à margem.

É preciso construir o “céu” neste chão da vida; sobre esta terra, no menor de nossos atos de amor, no menor de nossos gestos de gratuidade, a eternidade já está presente. Que esta eternidade seja saboreada desde agora.

quinta-feira, 2 de maio de 2024

Amizade Cristificada

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, SJ, como sugestão para rezar o Evangelho do 6º Domingo da Páscoa (2024).

 

“Eu vos chamo amigos, porque vos dei a conhecer tudo o que ouvi de meu Pai” (Jo 15,15) 

Continuamos vivendo o percurso pascal; no relato do evangelho deste domingo, a Páscoa se expressa como o tempo dos três “as”: Amor, Amizade e Alegria.

O evangelista João põe na boca de Jesus um longo discurso de despedida, no qual recolhe aquilo que será a marca distintiva dos seus seguidores, para serem fiéis à Sua pessoa e ao Seu projeto. E a identidade original de quem O segue será a vivência do amor. Fomos criados à imagem do Deus que é amor; por isso, trazemos, no mais profundo do nosso ser, a “chama do amor divino”.

O amor que Jesus nos pede tem de surgir a partir de dentro; trata-se de manifestar o que é Deus no mais profundo de nosso ser. Quando amamos não é preciso dizer que Deus está em nosso coração porque, de uma maneira melhor, estamos no coração de Deus, participamos do próprio dom de seu amor. Encontramo-nos, assim, envolvidos pelo amor de Deus.

Indecifrável como a obra de arte, o Amor nem se define nem se enquadra: é cada vez outro, novo, surpreendente, desconcertante..., embora tão antigo.

São João nos diz que “Deus é Amor (Ágape) e aquele que habita no Amor, habita em Deus e Deus habita nele” (1Jo 4,16). Portanto, é proposto ao ser humano uma experiência. Ele é chamado para exercitar sua capacidade de gratuidade e graça. Em um mundo onde tudo se paga, onde nada é gratuito, ele é chamado a ser presença gratuita, a viver a graça e a gratidão.

O amor que Deus tem por nós é absolutamente desinteressado, ativo e criativo, gratuito e livre. Ama aqueles que não são valorizados, aqueles que são desprezados e excluídos. O seu Amor é que valoriza o outro. A criatura não é amada porque tem valor por si mesma, mas tem valor porque é amada por Deus, que lhe comunica generosamente a sua própria riqueza. Nisso consiste a Criação: Deus, num transbordamento do seu amor intra-trinitário, deu o ser ao que não era nada.

Criados à imagem e semelhança do Deus Amor, somos capazes de Amor-Ágape, de amar aquele que não nos ama e não devemos nos privar dessa liberdade.

Não é porque as pessoas são amáveis que devemos amá-las; é na medida em que as amamos que são (para nós) amáveis.  A caridade é esse amor que não espera ser merecido, esse amor primeiro, gratuito, espontâneo e que, de fato, é a verdade do amor. Uma liberdade de amar o outro em sua diferença, de amar o divino no outro, de amar o outro como a nós mesmos, reconhecendo-nos nele.

Para aprender a amar é preciso sair de nossos hábitos, sair do conhecido; aprender a amar é sempre uma aventura. Se entrarmos nessa aventura, nossa vida será virada pelo avesso e completamente questionada.

Esse amor, ativo e primeiro, suscita em nós a gratidão que nos leva a corresponder com um amor-serviço; o amor sempre se faz serviço, assim como todo serviço é inspirado e sustentado pelo amor. Trata-se da mística do “serviço por puro amor”. Por isso, esse amor é fonte de alegria, ou seja, um estado permanente de plenitude e bem-estar. Sem amor não é possível dar passos em direção a um cristianismo mais aberto, cordial, alegre, simples e amável, onde possamos viver como “amigos” de Jesus.

Da mensagem de Jesus ressoa a surpreendente frase de sua despedida: “Eu vos chamo amigos, porque vos dei a conhecer tudo o que ouvi de meu Pai”.

Quem vive o mandamento do amor é, por isso mesmo, “amigo de Jesus”; e a amizade se mostra em ser introduzidos na intimidade de Jesus com seu Abbá, em ser confidente de Jesus. Jesus não pede a seus discípulos que sejam perfeitos em tudo: só no amor e na misericórdia.

“...se fizerdes o que vos mando”; tradução empobrecida, pois entre amigos não há quem manda, mas acolhida mútua. É como se Jesus dissesse: “sereis meus amigos se entrardes no circuito do amor que flui do Pai, passa por mim e circula entre vocês”; “sereis meus amigos se entrardes em sintonia com o amor ágape que brota do meu coração”. O amor é movimento, circula reforçando os laços, acolhendo... O amor é expansivo e contagiante. O amor une corações.

Quando falamos de amizade estamos falando de gratuidade, de lealdade, de igualdade, de não pedir nada em troca, de partilhar sem passar recibo... A amizade seja talvez a melhor relação humana que existe; é gratuita, livre, simbiótica. Dizer de alguém amigo é um tesouro. Os amigos se conhecem bem, há sinceridade entre eles, desejam sempre o bem do outro, sabem acompanhar as diversas situações da vida, aprendem a escutar e a dizer livremente para o bem do outro. A amizade é um lugar de acolhida contínua, de sentido do humor e de ajuda mútua.

Por isso, um(a) amigo(a) é um tesouro, e aquele(a) que tem um(a) amigo(a) tem uma conexão direta com as mais autênticas essências da vida.

A amizade é caminho compartilhado. Ninguém faz caminho sozinho, fazem juntos, e assim são amigos. A amizade implica neste plano com-corrência (correr juntos, para assim ajudar-se uns aos outros). Amizade é co-laboração (trabalho compartilhado). Frente àqueles que entendem a vida como luta ou competição, frente àqueles que procuram combater ou silenciar-se no processo da vida, frente àqueles que oprimem e dominam os outros, os amigos cooperam, se respeitam e trabalham juntos. Os amigos verdadeiros deixam de lado as opções partidaristas, os egoísmos particulares, e integram-se na busca comum, com a alegria de entar unidos, compartilhando os desafios e as perdas. Quem não sabe ou não quer colaborar na obra comum nunca será verdadeiro amigo.

Amigos são aqueles que se querem por querer-se, sem buscar a amizade por outros interesses. Mas a mesma amizade faz com que eles se ajudem em gesto de benevolência ativa: acolhem-se, perdoam-se, potenciam-se uns aos outros.

Desprovida de interesses mesquinhos, a amizade vale por si mesma, não pelo que faz. Mesmo assim, a autêntica amizade é a mais eficaz, pois sempre se expressa em gestos concretos de ajuda mútua. O que importa mais é uma existência compartilhada: ideais e busca, êxitos, fracassos, vida. 

Por isso, a amizade com a marca cristã se inspira n’Aquele que se revelou Amigo de todos, sobretudo dos mais pobres e excluídos

 

De uma comunidade cristã que deixa transparecer o Amor e prolonga a Amizade de Jesus, nasce a alegria. Só o amor profundo e a amizade sincera é fonte de alegria, de prazer completo. Assim desejava Jesus para sua comunidade: alegre, mensageira, aberta ao diferente... O amor e a amizade fazem de cada cristão um(a) irmão(ã) universal.

Alegria que brota do interior e é um dom do Espírito. “O fruto do Espírito é: amor, alegria” (Gal 5,22). Este dom nos faz filhos(as) de Deus, capazes de viver e saborear sua bondade e misericórdia.

O vocábulo “alegria” está carregado de emoções, sentimentos e aspirações nobres. Vincula-se ao estado de plenitude humana, à criatividade, ao entusiasmo, ao prazer, ao contentamento, à satisfação, ao regozijo, à felicidade. “Bem-aventurados os que sabem rir de si mesmos: nunca cessarão de se divertir”.

Ao nosso cristianismo lhes falta, com frequência, a alegria daquilo que se faz e se vive com amor. Ao nosso seguimento de Jesus Cristo nos falta o entusiasmo da inovação e nos sobra a tristeza daquilo que se repete sem a convicção de estar prolongando o que Jesus queria de nós; predomina, muitas vezes, uma vivência cristã marcada pelo medo, pelo legalismo, pelo ritualismo... e não pelo entusiasmo de sentir-nos colaboradores do Mestre da Galileia.

Não é correto que os cristãos associem com tanta frequência a fé à dor, à renúncia, à mortificação, mas à alegria, à vida em plenitude.

A “perfeita alegria”, como dizia S. Francisco de Assis, é o horizonte da Páscoa que, desde agora, dá sentido e plenifica nossa existência cotidiana. Não fomos destinados a viver em “vale de lágrimas”.

Texto bíblico: Evangelho segundo João 15,9-17

Na oração:

Faça uma leitura das “marcas” do Amor de Deus em sua vida; crie um clima de ação de graças.

- Faça memória dos(as) amigos(as) que foram ou são verdadeiros tesouros para você.

- Sua amizade com os outros está iluminada pela amizade de Jesus: gratuita, com-passiva, aberta, acolhedora...?