“Vede minhas mãos e meus pés; sou eu mesmo!” (Lc 24,39)
“Há feridas que em vez de abrirem nossa pele, abrem
nossos olhos”, afirma o poeta chileno
Pablo Neruda.
Jesus, que nos desconcertou ao curar tantas feridas, na
ressurreição não fechou as suas próprias feridas; Ele as mostrou para que fosse
reconhecida a sua identidade, para que ficasse claro que elas são a marca da entrega
e que nunca se apagarão.
Quando o
Senhor se apresentou diante de seus discípulos, depois de sua morte, não tinha
dinheiro, nem prestígio; não veio sentado em um trono de ouro nem desembainhou
a espada para derrotar os inimigos. Simplesmente mostrou as feridas da
crucifixão, as marcas da doação total. Porque, “Jesus Cristo é o mesmo, ontem, hoje e sempre” (Hb 13,8).
Para despertar a fé dos discípulos, Jesus não lhes
pede que olhem Seu rosto, mas suas mãos e pés. Quer que vejam suas feridas de
crucificado; que tenham sempre diante dos olhos seu amor entregue até a morte.
Não é um fantasma: “Sou eu
mesmo!”. O mesmo
que conheceram, seguiram e amaram pelos caminhos da Galileia.
Olhando as mãos de Jesus, os discípulos faziam
“memória” das mãos que curavam os doentes, cuidavam dos frágeis, elevavam os
caídos, abençoavam e acariciavam as crianças, acolhiam os pecadores e pobres...
Olhando os pés de Jesus, os discípulos faziam
“memória” dos pés peregrinos, que rompiam distâncias, que faziam a travessia em
direção à “margem”, que os aproximavam dos excluídos, que ultrapassavam fronteiras
religiosas e culturais... Contemplando as mãos e pés de Jesus, os discípulos
tomaram consciência que eles estavam com as mãos atrofiadas e os pés
paralisados pelo medo.
A
experiência do encontro com o Ressuscitado destrava as mãos e pés dos
discípulos, arrancando-os do lugar fechado e lançando-os para os outros. Suas
mãos e pés são o prolongamento das mãos e pés de Jesus Ressuscitado. Mãos e pés
marcados com as feridas da doação, da entrega; mãos e pés carregados de vida:
pés que facilitam fazer-se presentes juntos às vidas feridas, excluídas...;
mãos que se fazem vida ao sustentar a vida fragilizada.
A verdadeira identidade do(a) seguidor(a) de Jesus
está nas mãos e pés que se comprometem com a vida, que se humanizam e humanizam
os outros. Mãos e pés que despertam as mãos e pés petrificados e atrofiados dos
outros. Somos chamados a ser testemunhas das mãos e pés do Ressuscitado.
Mãos e pés ressuscitados nos fazem sair de nossos
lugares fechados e estreitos, nos arrancam de nossos preconceitos e de nossos
medos... e nos movem em direção a largos horizontes.
Por isso, Ressurreição é movimento e ação: é
movimento, porque é saída de si; é ação porque é construção, compromisso em
favor da vida.
As cicatrizes
que Jesus mostrou em seu corpo depois da ressurreição, nunca desaparecerão.
Trazia uma mensagem nova registrada em seu próprio corpo: que só permanecerão
em nossa vida as cicatrizes deixadas pela vivência do amor e da doação. Esse é
o “céu” que somos chamados a “antecipar” e a encarnar: a cultura do encontro, a
presença samaritana, o cuidado amoroso, o serviço gratuito, a vida nascida do
amor esculpido à imagem e semelhança d’Aquele que viveu intensamente a Paixão
pelo Reino.
As “marcas” com as quais se revestiu o Filho ao vir
ao mundo são aquelas que perduram, porque são próprias do Ser Divino: pobreza,
transparência, simplicidade, verdade... A mesma humildade que mostrou ao vir ao
mundo nos saudará às portas da vida eterna; a mesma voz que nos convocou
voltará a ressoar em nossos ouvidos; o mesmo corpo, despojado e livre de
artifícios, nos abraçará; Aquele mesmo que se ajoelhou para lavar os pés dos
discípulos nos receberá, convidando-nos a passar adiante.
Quais costumam ser nossas credenciais
quando queremos nos identificar diante dos outros? Normalmente tiramos do bolso
nossa carteira de identidade. E se a coisa é mais séria, apresentamos outros
documentos. Ou seja, nos identificamos com papéis.
Qual deveria ser nossa verdadeira “carteira de
identidade” como seguidores(as) de Jesus? Nossas mãos abertas em sinal de acolhida; nossas mãos estendidas para
levantar a quem está caído; nossas mãos calosas de partir o pão que compartilhamos,
endurecidas no trabalho para ajudar nossos irmãos; nossas mãos feridas de tanto
atender os demais...
Nossa carteira de identidade
deveria ser os pés feridos de tanto
caminhar em busca daqueles que estão longe, de tanto peregrinar saindo ao
encontro do irmão solitário; pés feridos pelos constantes deslocamentos para
ajudar o irmão necessitado, para encontrar nossos irmãos marginalizados nas
periferias das cidades...
Mãos crucificadas; pés
crucificados. Ressuscitar é despertar, levantar-se, pôr-se de pé, renascer à
nova e autêntica vida no Espírito. Ressuscitar é despertar para a Vida,
transformar-nos e viver para sempre...
Portanto, à
luz da ressurreição, o ser humano se define pelas mãos e pés, e não pelo rosto;
não adianta ter um rosto se as mãos e os pés estão petrificados. As mãos e os
pés expressam aquilo que vem do coração: se o coração está cheio de medo,
dúvidas, perturbações, ressentimentos, mágoas... as mãos e os pés revelam-se
atrofiados; se o coração está cheio de compaixão, de acolhida, de espírito
solidário... as mãos e os pés se expressam como serviço, colocando a pessoa em
movimento em direção aos outros.
As mãos e os
pés são os membros que nos alargam, nos ampliam para o encontro; eles nos tiram
de nossa estreiteza de atitudes, de ideias... Por isso são membros que mais nos
“humanizam”, ou seja, nos fazem “descer” ao “húmus” de nossa existência, ao
chão da vida, abrindo-nos aos outros.
Fazer a experiência da Ressurreição é ter mãos e
pés do Ressuscitado: membros a favor da vida.
- em
direção de quem nos levam os pés?
- em
favor de quem usamos nossas mãos? A serviço de quem?...
Sempre que
pretendemos fundamentar a fé no Ressuscitado com nossas vazias reflexões, nós o
transformamos num “fantasma”. Infelizmente, muitos cristãos só
estão preocupados em seguir um “fantasma”, pois não se identificam com o Jesus
histórico, comprometido com a causa dos mais pobres e excluídos; seguem uma
“religião fantasma”, feita de ritualismos e devocionismos vazios, sem
compromisso com a transformação da realidade injusta, geradora de crucificados;
vivem uma “espiritualidade fantasma”, constituída de discursos moralistas e
fixações legalistas que alimentam culpa e angústia.
Quem vive
focado nos “fantasmas” não tem “feridas” a apresentar, não têm consistência
humana e sua história desaparecerá como fumaça.
Para encontrar-nos com Jesus, temos de percorrer o
relato dos Evangelhos: descobrir as mãos que abençoavam os enfermos e
acariciavam as crianças, os pés cansados de caminhar ao encontro dos mais
esquecidos; descobrir suas feridas e sua paixão. Esse é Jesus o que agora vive ressuscitado
pelo Pai.
Os relatos das aparições do Ressuscitado são especialmente clarificadores e confirmadores sobre o que Ele viveu neste mundo e que permanecerá para sempre. Isso tem um significado fundamental, pois não podemos gastar energias com “fantasmas” que não deixam marcas em nossa vida e em nossa história. Só permanecem as feridas da doação, da entrega, do serviço...
Texto bíblico: Evangelho segundo Lucas 24,35-48
Na oração:
Na
vivência pascal tomamos consciência de que nossas “feridas”, com seus incômodos
e adversidades, são a mediação através da qual Deus “entra” em nossa vida e nos
conduz a um conhecimento mais real, mais vivo e profundo do sentido de nossa
própria existência. É através da integração das feridas que recebemos uma
iluminação nova que nos capacita a “ordenar” a Deus todas as coisas e
re-orientar para Ele toda nossa vida. Então, cresce a consciência que o mesmo
Deus encontra mais facilidade de “entrar” em nossa vida através dos fracassos,
feridas, fragilidades...
- Ser
capaz de “celebrar os fracassos” e “dar graças pelas feridas” é sinal de
maturidade espiritual.
- Por
isso, a memória agradecida é o húmus natural de onde brota a gratidão, que ativa em cada um o ânimo
e a generosidade diante do futuro de sua vida e missão.
Gratidão por esse texto maravilhoso Padre Adroaldo.
ResponderExcluirGratidão pelo texto. Rezando pelas feridas e me fazem ser de Cristo!
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