Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 4º. Domingo do Tempo Comum (Ano B).
“...ensinava-lhes com autoridade e não como os escribas” (Mc. 1,22)
No evangelho de Marcos, o começo da atividade
pública de Jesus coincide com as primeiras curas. Isso nos sugere que é o
início de um caminho ou itinerário pessoal que cada um(a) deve realizar.
Trata-se de “ordenar” nossa própria “sinagoga” interior: carregamos pesadas
imagens de Deus que herdamos ou foram reforçadas em determinados momentos de
nossa vida; um Deus “cansativo” que impõe leis, normas e ritos que acabam
travando o acesso à autêntica vivência humana, tecida de dignidade e verdade;
um Deus “controlador” que manipula a liberdade de seus filhos(as) e condena
aqueles que ousam desobedecê-lo; um Deus que tem prazer em complicar a vida de
todos com ameaças e castigos. Tais falsas imagens de Deus impedem viver nossa
condição humana com mais plenitude. Deus deixa de ser um aliado para se
apresentar como inimigo de tudo o que é humano. Aqui está a fonte primeira das
culpas, das angústias, dos sentimentos doentios, dos remorsos... que nos
impedem viver com mais alegria e sentido.
As falsas imagens de Deus são
nossos próprios “demônios” que devemos desmascarar em nosso interior para poder
descobrir e nos abrir a uma experiência d’Aquele que é Presença íntima, Pai-Mãe
de misericórdia, Amigo incondicional que nos convida a viver de maneira
criativa e livre; é Ele que ativa em nós a capacidade de amar a nós mesmos(as)
tal como somos, amar os outros e amar toda a criação.
Quantas crenças
tóxicas, normas e leis religiosas estéreis, ritualismos vazios, práticas
piedosas alimentadoras de culpabilidades... que as religiões, os mestres da lei,
impuseram sobre nós ao longo dos séculos, asfixiando-nos, paralisando nossas
vidas e impedindo-nos buscar o bem maior! Tudo isso são os “maus espíritos” que
não nos deixam perceber a Luz e a Vida escondidas no interior de cada ser
humano.
Foi nesse
ambiente “religiosamente carregado” que Jesus marcou sua presença original e
provocativa. Ele entrou em conflito com as “autoridades religiosas” que
manipulavam a imagem de Deus para controlar as vidas das pessoas. Jesus começou a curar,
libertando a todos de um “deus” opressor e dominador. Suas palavras ressoavam
radicalmente diferente daquelas dos mestres da lei; e as pessoas, reunidas na
sinagoga, ficavam surpresas ao escutá-lo. Jesus falava e agia com autoridade,
a partir de sua experiência interior, não daquilo que ouvira; despertou a
confiança e não o medo; reacendeu o amor a Deus-Abbá e não a submissão à lei
que ignora o ser humano; sua presença ativou a liberdade e não a servidão; e,
sobretudo, suscitou o perdão e não o rancor ou o ressentimento sempre presente.
Jesus proclamou, com liberdade e valentia, um Deus pura bondade, que reconstrói
com compaixão e misericórdia todos os seus filhos e filhas.
Marcos nos
apresenta Jesus como o grande Mestre: seu ensinamento é novo, pois, ao
mesmo tempo que ensina, liberta. É o início da missão de Jesus; e Ele começa
justamente lá onde os “espíritos maus” produzem estragos no ser humano.
Diferentemente
dos mestres da Lei e dos escribas, cujo ensinamento está centrado em “decorar”
e conservar a Lei, o ensinamento de Jesus parte da realidade
humana de sofrimento, exclusão, preconceito...
Aqui estamos
numa sinagoga em dia de sábado: lugar e dia de comunhão, de encontro, de
festa... No entanto, na mesma sinagoga Jesus encontra alguém preso por
“espíritos maus”, impedido de viver sua condição humana de maneira mais digna.
A missão de Jesus é a de aliviar o sofrimento
humano; Ele reconstrói o ser humano ferido, fragilizado, privado de sua
dignidade, sem poder dar direção à sua própria vida. Os “maus espíritos” podem
ser símbolo de tudo o que desumaniza as pessoas. Podem ser os traumas,
experiências de rejeição e exclusão, as feridas existenciais, falta de
perspectiva frente ao futuro, o peso do legalismo e moralismo, a força de uma
religião que oprime e reforça os sentimentos de culpa, as instituições que
atrofiam o desejo de viver...
Enfim, tudo aquilo que prejudica as pessoas,
provoca miséria, tira a dignidade do homem e da mulher.
Marcos
reforça que Jesus fala e atua com “autoridade”, que é diferente de ter “poder”.
Jesus não
exerceu poder porque o poder nunca é mediação para a libertação do ser
humano (seja poder político, religioso, ou qualquer outra expressão de poder).
Jesus
despoja-se do poder; Ele tem autoridade: “ensinava-lhes com autoridade e não como os
escribas”
Jesus revela sua autoridade e esta é o
caminho para o serviço e a promoção da vida.
Por isso a autoridade
de Jesus não tem nada a ver com o poder que se impõe ou a liderança
que arrasta.
A palavra
“autoridade” vem do verbo latino “augere”, que significa
literalmente: aumentar, acrescentar, fazer crescer, dar vigor, robustecer,
sustentar, elevar, levantar o outro, colocá-lo de pé, impulsioná-lo para
frente... É a qualidade, a virtude e a força que serve para apoiar, para
alentar, para ajudar as pessoas a serem elas mesmas, para fazê-las crescer,
desenvolvendo suas próprias potencialidades.
“Autoridade” significa também recuperar a autoria, devolver a
autonomia àquele que está impedido de optar e de fazer seu caminho. Nesse
sentido, a autoridade nunca é perigosa para a pessoa, jamais é imposição
ou atentado contra sua legítima autonomia ou liberdade. A autoridade é
essencialmente amor.
Jesus tem “autoridade”
porque o “centro” está no outro; Ele veio para servir.
Quem tem
“poder”, ao contrário, o centro está em si mesmo; por isso é que toda expressão
de poder é violenta, exclui, impõe-se sobre o outro...
O
“ensinamento” de Jesus, no entanto, é humanizador; parte da
realidade humana ferida e liberta a pessoa, colocando-a no centro da sinagoga.
Para Jesus, não é a Lei que deve ocupar o centro, mas o ser humano.
As pessoas
percebem n’Ele um novo Mestre, cujo ensinamento desperta o assombro e a
admiração.
Jesus é tão entranhavelmente humano que nos
desconcerta, a ponto de parecer estranho, extravagante e, para muitos,
escandaloso. Mas, precisamente dessa maneira, Ele nos revela não só sua
profunda humanidade, senão o grau de “desumanização” a que podemos submeter os
outros.
Ao entrar na sinagoga, Jesus se volta para quem
estava excluído e não recebia atenção; o homem “possuído” é o símbolo de todas
as pessoas despersonalizadas às quais lhes foi negado o direito de falar e agir
como sujeitos da própria vida, que dependem de “outros” que pensam, falam e
agem por elas.
Chama-nos a
atenção o fato de que Jesus, quando se aproxima dos endemoniados, não os toca
como fará com outros enfermos: leprosos, cegos, paralíticos. Mantém-se à
distância e ordena com sua voz para que os “maus espíritos” abandonem a pessoa
escravizada. Com um taxativo “cala-te e
sai dele!” Jesus provoca a reação pessoal para nos libertar de
nossos “egos diabólicos”, algo que ninguém poderá fazer por nós.
Deslocar e afastar esses “egos” e acolher com
firmeza e compreensão o “eu profundo” que fará desaparecer qualquer “demônio”
que pretenda intrometer-se ou manipular nossa existência. A mesma coisa faremos
quando nos encontrarmos diante de pessoas que, até em nome da religião, nos
prendem com as amarras do legalismo, do ritualismo e da obediência infantil: “afasta-te de quem pretende desumanizar-te ou separar-te de Deus!”.
É urgente despertar em nós um “eu original”, que seja capaz de desmontar as armadilhas desses “egos” que pululam nossa mente e nosso interior; um “eu fiel” que recebe a Luz e a força de Deus ocultas no mais profundo de todo ser humano. Livra-nos, ó Abbá, dos espíritos que nos desumanizam!
Texto bíblico: Evangelho segundo Marcos 1,21-28
Na oração:
Proliferam
os mestres, mas escasseiam os testemunhos de vida; aumentam os especialistas em
leis, mas escasseia a vida; multiplicam-se os que discutem ideias, mas
escasseiam aqueles que compartilham uma nova vida; cresce o número dos
profissionais da religião e até da Palavra de Deus, mas são raros aqueles que,
com suas vidas, sejam os melhores “exegetas” da Bíblia.
A
Igreja precisa de homens e mulheres que ensinem a arte de abrir os olhos, de
maravilhar-se diante da vida e interrogar-se com simplicidade pelo sentido
último de tudo.
Homens e mulheres que amem a vida, proclamem a vida, façam do prazer de viver a
alegria da vida.
-
Desça à sua sinagoga interior: quem é o “senhor” que ali atua? Os
“maus-espíritos” do legalismo, do moralismo, do preconceito... Ou os “bons
espíritos” de vida, de comunhão, de compaixão...?
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