quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

Casa, lugar da mão estendida - 5º Domingo Comum (B)

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 5º. Domingo do Tempo Comum (Ano B).

“Ele aproximou-se, tomando-a pela mão, levantou-a” (Mc 1,31) 

Continuamos no “primeiro dia” da atuação de Jesus em Cafarnaum, onde o evangelista Marcos procura “pintar” a figura de Jesus com grandes linhas e traços firmes. Trata-se de uma forte descrição para deixar muito clara a maneira habitual que Jesus tinha de desenvolver seu ministério terapêutico.

Não podemos desligar o relato deste domingo com aquele de domingo passado; ambos formam um todo teológico progressivo, que começa com Jesus na sinagoga e termina orando sozinho em um lugar deserto. Assim Ele consegue reavivar a experiência de Deus que lhe permite falar e agir com autoridade.

Marcos dá um destaque especial à passagem imediata da sinagoga à casa; Jesus deu início a um movimento de vida nas casas, pois não encontrou acolhida nos “espaços sagrados” (sinagogas). Da sinagoga onde há “espíritos impuros” Jesus se dirige à casa (oikia), ambiente natural do clã familiar, onde também se encontram pessoas fragilizadas por diferentes tipos de enfermidades.

Jesus passa da sinagoga, lugar oficial da religião judaica, à casa, lugar onde se vive a vida cotidiana junto aos seres mais queridos. Nas casas também vai sendo gestada a nova família de Jesus, espaço onde não há predomínio da Lei, mas um lar onde se aprende a viver de maneira nova em torno a Jesus.

Jesus quer comunicar a salvação a todos os lugares onde se desenrola a vida e a todas as pessoas que têm necessidade de libertação. Com toda naturalidade, o texto de Marcos apresenta a sogra de Pedro; no começo da cena vemos uma mulher prostrada, separada, possuída pela febre. Em seguida, essa mesma mulher, já curada, está integrada à comunidade e servindo aos demais; ela se torna discípula pois entra no fluxo do serviço vivido por Jesus. Jesus cura a mulher para que ela possa servir.

Nas primeiras comunidades cristãs o serviço era a expressão mais clara do seguimento de Jesus. Os cristãos elegeram precisamente a palavra “diakonia” para expressar o novo fundamento das relações humanas na comunidade. O mesmo Jesus dirá que não veio para ser servido, mas para servir.

No centro do texto está a chave do relato: “Jesus, aproximando-se, a tomou pela mão e a fez se levantar”. Não só entra na casa, mas no quarto interior onde encontra-se uma mulher prostrada; na casa, lugar da comunidade cristã há uma mulher sem nome, conhecida como “a sogra”, prostrada. E falaram dela a Jesus, porque sabiam que para Ele as mulheres eram importantes, faziam parte de seu projeto e de sua nova família.

A sogra não pode sair para acolhê-los pois estava prostrada em cama com febre. De novo, Jesus vai romper a lei sabática pela segunda vez no mesmo dia. Para Ele, o importante é a vida sadia das pessoas, não as observâncias religiosas. O relato descreve com todo detalhe os gestos de Jesus com a mulher enferma.

Ele realiza três gestos: aproximou-se, tomou-a pela mão e a levantou. Todos os gestos proibidos: aproxima-se de uma mulher que não é a sua, toca-a e cura em dia de sábado.

“Aproximou-se”: é o primeiro gesto que Jesus sempre faz, ou seja, aproxima-se daqueles que sofrem, olha de perto seus rostos e, compassivamente, acolhe suas dores. Logo, “tomou-a pela mão”: toca a enferma, não teme as regras de impureza que o proíbem fazer isso. Suas mãos prolongam seu coração. Jesus quer que a mulher sinta sua força curadora. Por fim, “levantou-a”, colocou-a de pé, devolveu-lhe a dignidade.

Assim está sempre Jesus em meio aos seus: com uma mão estendida que nos levanta, como um amigo próximo que nos infunde vida, como uma presença que desperta o melhor que há em nós, como uma sensibilidade que desperta nossa identidade e nos põe de pé. Não fomos criados para ficarmos prostrados. Jesus só sabe servir, não ser servido. Por isso, a mulher curada por Ele entra no fluxo do serviço e se põe a “servir” a todos. Ela aprendeu de Jesus. O distintivo dos seus seguidores(as) está em prolongar estes gestos cristificados, acolhendo e cuidando uns dos outros.

Gestos tão escassos hoje na vivência cristã e que Jesus deixou transparecer: próximo, carinhoso, terno. Ele se aproxima da mulher enferma, quebra distâncias, tira os medos e com a mediação do melhor pedagogo, a mão carinhosa, levanta-a da prostração; para a mulher, tal gesto é a que a despertou para uma vida nova.

Seria um erro pensar que a comunidade cristã é uma família que pensa só em seus próprios membros e vive de costas ao sofrimento dos outros. O relato de Marcos nos diz que nesse mesmo dia, “depois do pôr-do-sol”, quando terminou o sábado, levam até Jesus todo tipo de enfermos e possuídos por algum mal.

Como seguidores(as) de Jesus devemos gravar bem este detalhe: ao chegar a obscuridade da noite, a cidade inteira, com seus enfermos, “se ajunta à porta da casa”. Os olhos e as esperanças daqueles que sofrem buscam a “porta” dessa casa onde está Jesus: uma porta sempre aberta, acolhedora.

A Igreja só atrairá de verdade quando for “porta aberta” que recebe a todos, e as pessoas que sofrem puderem descobrir dentro dela a presença de Jesus que cura a vida e alivia o sofrimento. À porta de nossas comunidades há muita gente sofrendo, que pede proximidade para estender a mão carinhosa e levantá-los. 

“A cidade inteira se aglomerou em frente da casa”. E a porta não estava fechada, nem tinha que chamar, nem esperar numa ante-sala..., porque Jesus estava fora, acessível, com tempo, sem pressa. Ao curar os enfermos àquela tarde, ou o leproso no dia seguinte, Ele estava comunicando a todos uma superabundância de vida, mas sem convidá-los a fazer um ato explícito de fé nele nem a fazer parte de seu grupo de discípulos.

Tocava-os com um enorme respeito à liberdade e no que cada um tinha de único, e os enviava simplesmente à verdade de sua existência. Eram homens e mulheres, habitados por um desejo de viver, que se aproximavam dele porque intuíam que Ele possuía o poder de comunicar-lhes essa vida.

O Reino que se aproximou deles abria diante de cada um uma infinita variedade de respostas. Jesus deixava transparecer para eles algo da compaixão d´Aquele que dominava a arte de acolher, de amparar e de oferecer proteção entre seus braços a tantas vidas feridas e a tantos corpos maltratados de homens e mulheres.

Para Jesus, ser “humano” é ser casa aberta e acolhedora. Tal atitude pede “mais portas e janelas e menos espelhos”. No espelho nós nos vemos; e o que vemos não é o que somos, mas o que aparentamos ser. Desta percepção não saímos. O horizonte perceptivo é mínimo. O espelho é incapaz de revelar a verdade de nosso ser e de ampliar nosso mundo afetivo e social.

As portas e janelas, pelo contrário, ampliam nosso horizonte. Através delas renova-se o ar denso e irrespirável do interior da casa que geramos fechados em nós mesmos. As portas e janelas nos situam em comunhão com a natureza e com a sociedade, sem a qual não existe relação humana. Elas servem para apontar aos outros que eles fazem parte de nossa vida e que, abertas, indicam que podem entrar em nossas vidas.

Como seguidores(as) de Jesus, habitando em casas construídas sobre a rocha do Evangelho, deveríamos nos preocupar mais com as portas e janelas e menos com os ornamentos dos espaços interiores. Outros rostos é preciso descobrir e de maneira especial, rostos feridos, machucados e necessitados de abraço.

Contemple essa mão estendida de Jesus. É seu primeiro gesto silencioso no Evangelho de Marcos, e nele se evoca em esboço tudo o que Ele veio a ser para a humanidade decaída: uma mão estendida que nos agarra para nos tirar de nossa prostração, para nos livrar de nossas febres, para nos conduzir rumo ao serviço de seus irmãos menores.

Entre no âmbito dessa força, deixe-se levantar por essa mão, agradeça a força e a libertação que lhe chegam por meio dela. Pergunte-se pelo potencial que há em suas mãos: como flui? rumo a quem? retém ou entrega? derruba ou levanta?...

Texto bíblico:  Evangelho segundo Marcos 1,29-39

Na oração:

A casa “imprime caráter” ou nós imprimimos caráter à casa? Tudo vai depender como se encontra a “casa interior”, o próprio coração.

Nesse sentido a casa torna-se Templo do Espírito pois ela nos ajuda a fazer contato com nossas “moradas interiores”: lugar de intimidade com Deus, espaço de contemplação, ambiente de discernimento e construção de decisões.

- É do “interior habitado por uma Presença” que brota o impulso para a saída de si e viver a “cultura do encontro”.

- Seja “casa cristificada” onde a mão estendida se revela como gesto contínuo, sinal visível de um coração compassivo e acolhedor.

quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

A “Autoridade” Humanizadora de Jesus - 4º Domingo Comum (B)

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 4º. Domingo do Tempo Comum (Ano B).

“...ensinava-lhes com autoridade e não como os escribas” (Mc. 1,22)

No evangelho de Marcos, o começo da atividade pública de Jesus coincide com as primeiras curas. Isso nos sugere que é o início de um caminho ou itinerário pessoal que cada um(a) deve realizar. Trata-se de “ordenar” nossa própria “sinagoga” interior: carregamos pesadas imagens de Deus que herdamos ou foram reforçadas em determinados momentos de nossa vida; um Deus “cansativo” que impõe leis, normas e ritos que acabam travando o acesso à autêntica vivência humana, tecida de dignidade e verdade; um Deus “controlador” que manipula a liberdade de seus filhos(as) e condena aqueles que ousam desobedecê-lo; um Deus que tem prazer em complicar a vida de todos com ameaças e castigos. Tais falsas imagens de Deus impedem viver nossa condição humana com mais plenitude. Deus deixa de ser um aliado para se apresentar como inimigo de tudo o que é humano. Aqui está a fonte primeira das culpas, das angústias, dos sentimentos doentios, dos remorsos... que nos impedem viver com mais alegria e sentido.

As falsas imagens de Deus são nossos próprios “demônios” que devemos desmascarar em nosso interior para poder descobrir e nos abrir a uma experiência d’Aquele que é Presença íntima, Pai-Mãe de misericórdia, Amigo incondicional que nos convida a viver de maneira criativa e livre; é Ele que ativa em nós a capacidade de amar a nós mesmos(as) tal como somos, amar os outros e amar toda a criação.

Quantas crenças tóxicas, normas e leis religiosas estéreis, ritualismos vazios, práticas piedosas alimentadoras de culpabilidades... que as religiões, os mestres da lei, impuseram sobre nós ao longo dos séculos, asfixiando-nos, paralisando nossas vidas e impedindo-nos buscar o bem maior! Tudo isso são os “maus espíritos” que não nos deixam perceber a Luz e a Vida escondidas no interior de cada ser humano.

Foi nesse ambiente “religiosamente carregado” que Jesus marcou sua presença original e provocativa. Ele entrou em conflito com as “autoridades religiosas” que manipulavam a imagem de Deus para controlar as vidas das pessoas. Jesus começou a curar, libertando a todos de um “deus” opressor e dominador. Suas palavras ressoavam radicalmente diferente daquelas dos mestres da lei; e as pessoas, reunidas na sinagoga, ficavam surpresas ao escutá-lo. Jesus falava e agia com autoridade, a partir de sua experiência interior, não daquilo que ouvira; despertou a confiança e não o medo; reacendeu o amor a Deus-Abbá e não a submissão à lei que ignora o ser humano; sua presença ativou a liberdade e não a servidão; e, sobretudo, suscitou o perdão e não o rancor ou o ressentimento sempre presente. Jesus proclamou, com liberdade e valentia, um Deus pura bondade, que reconstrói com compaixão e misericórdia todos os seus filhos e filhas.

Marcos nos apresenta Jesus como o grande Mestre: seu ensinamento é novo, pois, ao mesmo tempo que ensina, liberta. É o início da missão de Jesus; e Ele começa justamente lá onde os “espíritos maus” produzem estragos no ser humano.

Diferentemente dos mestres da Lei e dos escribas, cujo ensinamento está centrado em “decorar” e conservar a Lei, o ensinamento de Jesus parte da realidade humana de sofrimento, exclusão, preconceito...

Aqui estamos numa sinagoga em dia de sábado: lugar e dia de comunhão, de encontro, de festa... No entanto, na mesma sinagoga Jesus encontra alguém preso por “espíritos maus”, impedido de viver sua condição humana de maneira mais digna.

A missão de Jesus é a de aliviar o sofrimento humano; Ele reconstrói o ser humano ferido, fragilizado, privado de sua dignidade, sem poder dar direção à sua própria vida. Os “maus espíritos” podem ser símbolo de tudo o que desumaniza as pessoas. Podem ser os traumas, experiências de rejeição e exclusão, as feridas existenciais, falta de perspectiva frente ao futuro, o peso do legalismo e moralismo, a força de uma religião que oprime e reforça os sentimentos de culpa, as instituições que atrofiam o desejo de viver...

Enfim, tudo aquilo que prejudica as pessoas, provoca miséria, tira a dignidade do homem e da mulher.

Marcos reforça que Jesus fala e atua com “autoridade”, que é diferente de ter “poder”.

Jesus não exerceu poder porque o poder nunca é mediação para a libertação do ser humano (seja poder político, religioso, ou qualquer outra expressão de poder).

Jesus despoja-se do poder; Ele tem autoridade: “ensinava-lhes com autoridade e não como os escribas”

Jesus revela sua autoridade e esta é o caminho para o serviço e a promoção da vida.

Por isso a autoridade de Jesus não tem nada a ver com o poder que se impõe ou a liderança que arrasta.

A palavra “autoridade” vem do verbo latino “augere”, que significa literalmente: aumentar, acrescentar, fazer crescer, dar vigor, robustecer, sustentar, elevar, levantar o outro, colocá-lo de pé, impulsioná-lo para frente... É a qualidade, a virtude e a força que serve para apoiar, para alentar, para ajudar as pessoas a serem elas mesmas, para fazê-las crescer, desenvolvendo suas próprias potencialidades.

“Autoridade” significa também recuperar a autoria, devolver a autonomia àquele que está impedido de optar e de fazer seu caminho. Nesse sentido, a autoridade nunca é perigosa para a pessoa, jamais é imposição ou atentado contra sua legítima autonomia ou liberdade. A autoridade é essencialmente amor.

Jesus tem “autoridade” porque o “centro” está no outro; Ele veio para servir.

Quem tem “poder”, ao contrário, o centro está em si mesmo; por isso é que toda expressão de poder é violenta, exclui, impõe-se sobre o outro...

O “ensinamento” de Jesus, no entanto, é humanizador; parte da realidade humana ferida e liberta a pessoa, colocando-a no centro da sinagoga. Para Jesus, não é a Lei que deve ocupar o centro, mas o ser humano.

As pessoas percebem n’Ele um novo Mestre, cujo ensinamento desperta o assombro e a admiração.

Jesus é tão entranhavelmente humano que nos desconcerta, a ponto de parecer estranho, extravagante e, para muitos, escandaloso. Mas, precisamente dessa maneira, Ele nos revela não só sua profunda humanidade, senão o grau de “desumanização” a que podemos submeter os outros.

Ao entrar na sinagoga, Jesus se volta para quem estava excluído e não recebia atenção; o homem “possuído” é o símbolo de todas as pessoas despersonalizadas às quais lhes foi negado o direito de falar e agir como sujeitos da própria vida, que dependem de “outros” que pensam, falam e agem por elas.

Chama-nos a atenção o fato de que Jesus, quando se aproxima dos endemoniados, não os toca como fará com outros enfermos: leprosos, cegos, paralíticos. Mantém-se à distância e ordena com sua voz para que os “maus espíritos” abandonem a pessoa escravizada. Com um taxativo “cala-te e sai dele!” Jesus provoca a reação pessoal para nos libertar de nossos “egos diabólicos”, algo que ninguém poderá fazer por nós.

Deslocar e afastar esses “egos” e acolher com firmeza e compreensão o “eu profundo” que fará desaparecer qualquer “demônio” que pretenda intrometer-se ou manipular nossa existência. A mesma coisa faremos quando nos encontrarmos diante de pessoas que, até em nome da religião, nos prendem com as amarras do legalismo, do ritualismo e da obediência infantil: “afasta-te de quem pretende desumanizar-te ou separar-te de Deus!”.

É urgente despertar em nós um “eu original”, que seja capaz de desmontar as armadilhas desses “egos” que pululam nossa mente e nosso interior; um “eu fiel” que recebe a Luz e a força de Deus ocultas no mais profundo de todo ser humano. Livra-nos, ó Abbá, dos espíritos que nos desumanizam!

Texto bíblico: Evangelho segundo Marcos 1,21-28

Na oração:

Proliferam os mestres, mas escasseiam os testemunhos de vida; aumentam os especialistas em leis, mas escasseia a vida; multiplicam-se os que discutem ideias, mas escasseiam aqueles que compartilham uma nova vida; cresce o número dos profissionais da religião e até da Palavra de Deus, mas são raros aqueles que, com suas vidas, sejam os melhores “exegetas” da Bíblia.

A Igreja precisa de homens e mulheres que ensinem a arte de abrir os olhos, de maravilhar-se diante da vida e interrogar-se com simplicidade pelo sentido último de tudo. Homens e mulheres que amem a vida, proclamem a vida, façam do prazer de viver a alegria da vida.

- Desça à sua sinagoga interior: quem é o “senhor” que ali atua? Os “maus-espíritos” do legalismo, do moralismo, do preconceito... Ou os “bons espíritos” de vida, de comunhão, de compaixão...?

segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

A vida é feita de tempo - 3º Domingo - Tempo Comum (B)

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 3º. Domingo do Tempo Comum (Ano B).


 “O tempo já se completou e o Reino de Deus está próximo” (Mc 1,15)

O evangelho deste domingo é um texto de transição, pois fecha o prólogo (Mc 1,1-13) e abre a narração propriamente dita do evangelho. João Batista continua sendo pessoa de referência e servirá de contraponto histórico e teológico da história posterior. A prisão dele revela o ambiente de oposição e perseguição onde Jesus atuará, anunciando a Boa-Notícia.

Jesus foi para a Galileia”: o espaço geográfico (e teológico) de João Batista era o deserto com o rio Jordão. O espaço de Jesus, no entanto é a Galileia. Ele não se retira ao lugar da prova, nem se instala à margem da terra prometida; também não busca um lugar de missão junto aos átrios de Jerusalém, santuário nacional. Jesus se encontra vinculado à terra e às pessoas simples da Galileia, junto a um mar simbolicamente aberto às nações vizinhas. Ele se faz “margem” e começa seu ministério junto às margens.

O evangelista Marcos quer desligar a pregação de Jesus de toda conotação oficial: longe das autoridades religiosas, longe do templo e de tudo o que isso implicava. Galileia era região fronteiriça, terra da exclusão e da violência, habitada pelos mais pobres e sofredores.

Se algo chama a atenção em Jesus é sua paixão por um projeto de sentido que Ele denominou como Reino de Deus. Toda sua pessoa está mobilizada e polarizada por esse sonho, por essa utopia carregada de esperança ativa. Jesus é consciente de que com Ele começa uma história nova. A esperança se faz realidade. A consumação do mundo está começando.

Mas, a Galileia em si mesma não basta. A novidade do Evangelho se fundamenta na mensagem de Jesus: “cumpriu-se o tempo e chegou o reino de Deus; convertei-vos e crede no evangelho”. Esta é a afirmação-chave, que consta de duas frases paralelas duplas, cada uma com duas partes, unidas por um “e”. Como é usual em Marcos, a segunda serve para precisar o sentido da primeira: cumpriu-se o tempo “e” chega o reino (o reino define e dá sentido ao tempo); convertei-vos “e” crede no evangelho (a fé dá sentido à conversão).

O progresso temático é claro: passamos do Batista (deserto/rio) à Galileia, descobrindo ali a mensagem de Jesus, aberta a todas as pessoas. Ele não se fecha nas casas, sussurrando ao ouvido um segredo de iniciados; não se instala numa escola, oferecendo cursos longos de ensinamento especializado; não oferece sua palavra à beira do templo sagrado (aos puros), nem à margem do rio/deserto (aos especialistas da penitência). Dirige-se à Galileia, oferecendo seu evangelho a todos; faz isso com claridade (para que seja bem entendido), em voz alta (que o escutem), como arauto ou mensageiro de boas notícias que devem se estender pelos povoados. Por isso, anúncio e chamado estão profundamente unidos; com seu anúncio, Jesus desperta o que há de mais humano em cada um e o chama a entrar no fluxo da Sua nobre missão: “farei de vós pescadores do humano”.

Atento ao “tempo oportuno” Jesus pôs-se a proclamar a “boa notícia” da parte de Deus. Ele não espera, como João, que as pessoas venham ao seu encontro. Faz-se peregrino e dirige-se às pessoas, sobretudo aquelas que estavam à margem, excluídas e sem esperança. Cumpriu-se o “kairós”, ou seja, o tempo oportuno, carregado de sentido e de Presença; um tempo que se abre às surpresas de Deus e que mobiliza cada pessoa a viver de uma maneira diferenciada, rompendo com a vida rotineira e repetitiva.

A fé do povo de Israel sempre se deixou guiar pelo tempo de Deus, por suas intervenções salvíficas.

Esta fé é a que lhe conduz a uma visão histórica do tempo, enquanto se trata do “hoje eterno de Deus” apontando para a Terra Prometida, lugar do destino do povo. Descobre-se o tempo como momento no qual acontece algo qualitativamente novo e não explicável a partir do ritmo cíclico da natureza.

A atividade profética vai significar um passo decisivo na concepção do tempo dentro de Israel.

Os profetas anunciam um novo ato salvífico de Deus que está por chegar e que será decisivo para Israel.

A partir desse momento, o povo vai viver o tempo como expectativa e espera ansiosa de um momento definitivo em sua existência: a realização da Promessa.

E Jesus inicia sua missão pública entrando no fluxo dessa expectativa do povo.

O Filho do Homem vive na espera paciente de seu momento. Sua sabedoria consiste em saber aguardar que o tempo chega à sua colheita, sem cair na tentação de forçar sua maturação.

Nessa perspectiva, não podemos viver o tempo como se este fosse algo meramente plano e indiferente. O Senhor do tempo e da História se faz presente em nossos corações, através do seu Espírito de Amor. E o tempo se faz, simultaneamente, princípio e fim, Alfa e Ômega.

Cada dia e cada momento tem seu matiz, sua cor e sua novidade. Não é o mesmo a primavera que o inverno, ou o sábado que a segunda-feira.

Para Jesus, o tempo que se recebe em graça e que se converte em missão, é que dá sentido à sua vida neste mundo. Ele acolhe de seu Pai o “dom do tempo” e o encarna na história humana de maneira iluminadora. Receber este “dom do tempo” requer uma disposição nova por parte do ser humano.

O sentido do tempo é o grande desafio na condução da nossa vida.

Inconscientemente, muitas vezes resistimos a fazer uso adequado deste bem precioso e insubstituível; outras vezes, usamos o tempo de forma mais contra do que a favor de nossos desejos e objetivos.

Ao irromper no tempo histórico como presença viva de Deus-Amor, Jesus nos convoca a nada mais esperar: “O tempo já se completou”. O apelo de Jesus deve estar encaminhado a descobrir o que estamos fazendo com nosso tempo. Podemos estar desperdiçando ou perdendo aquilo que nos foi dado para vivermos com intensidade e inspiração. Os anos vão se passando e com eles as oportunidades de dar verdadeiro sentido à nossa vida.

Só quando a pessoa recupera o sentido do transcurso do tempo, estará preparada para bem viver.

Afinal, “não temos tempo, somos tempo”. Nós não temos o tempo; o tempo é o que somos, pois quando não somos, já não há tempo que valha a pena; o tempo torna-se “normótico”, pesado, insuportável...

“Somos tempo” e por maiores que sejam os avanços tecnológicos e de pensamento, isso não mudará. É o mais valioso que nós temos; é o maior presente que podemos fazer uns aos outros: nosso tempo.

O que define nossa cultura pós-moderna é o consumo do tempo. Se antes o ter deslocou o ser, agora o fazer está deslocando o ter como prioridade. Acumular ações, ter agenda cheia, ativismo... é o que está de moda. Estão sendo desenvolvidas as estratégias mais sofisticadas para que qualquer pessoa busque ocupar o tempo. Até o descanso foi despojado de sua gratuidade: os fins de semana e os tempos de férias são preenchidos com uma carga excessiva de atividade. “Os domingos estão precisando de feriados” (Bonder).

O tempo está tão medido e amordaçado que não há espaço para a duração, a gratuidade, a criatividade...

O pior, no entanto, não é ter feito do ativismo o “modus vivendi” por excelência, mas é o fato da pessoa estar perdendo a noção da temporalidade, ou seja, a perda do sentido da história.

O ritmo cronológico da vida acaba desembocando na tirania da imediatez. O “carpe diem”, está contribuindo para que o dom do tempo seja objeto de consumo e acabe, portanto, consumido, ou seja, gasto e extinto. Espera-se tudo do presente, e os dias se reduzem a uma soma de instantes sucessivos sem especial conexão. Ao dia de hoje não é necessário saber o que fizemos ontem e nem o que faremos amanhã.

Vivemos numa cultura onde preenchemos nosso tempo de “afazeres” para não nos deixarmos “fazer” pelo Espírito de Deus. “Perdemos” nosso tempo quando não nos conscientizamos, por alienação ou escapismo, de toda a densidade do momento como possibilidade e oportunidade de Vida.

Texto bíblico: Mc 1,14-20

Na oração:

O tempo da oração é o tempo de deixar-se afetar, cativar, entusiasmar..., pela pessoa, pela missão, pelo projeto de Jesus; é o tempo do amadurecimento e da concretização das opções e dos compromissos para segui-Lo pelos caminhos que Ele percorreu.

Mais que “preencher” o tempo, a atitude espiritualmente cristã de conversão é deixar-se “preencher” pela bondade de Deus no tempo; agora é o tempo de deixar-se conduzir, de encontrar-se...

Fé é criar, é deixar passar por nós a energia criadora-libertadora do Deus-providente, Senhor dos “tempos novos”.

Viver o tempo como oportunidade é arriscar-nos a ver o que cremos, a perceber a presença d’Aquele que se “faz tempo” e dá sentido pleno ao nosso tempo. É no tempo que expressamos o louvor, a ação de graças...

terça-feira, 9 de janeiro de 2024

Perguntas que destravam vidas - 2º Domingo - Tempo Comum (B)

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 2º. Domingo do Tempo Comum (Ano B).

“Voltando-se para eles e vendo que o estavam seguindo, Jesus perguntou: o que estais buscando?” 

Nem todas as perguntas são iguais. Às vezes surge uma pergunta, algo nos interessa e logo queremos saber; basta uma simples busca rápida para saciar nossa curiosidade; poucas curiosidades permanecem em nossa mente, pois logo são satisfeitas com muitas informações que não tem nenhuma ressonância em nossas vidas. Tal pergunta superficial revela um perigo: pelo fato de serem respondidas em questão de segundos, nossos desejos mais profundos se acostumam a se mover nessa velocidade.

É preciso situar-nos diante de outro tipo de perguntas, as mais decisivas e essenciais, aquelas que não podem ser respondidas com um “click” e nos movem a uma tomada de decisão. São perguntas que exigem tempo, um ritmo diferente e tem a ver com o núcleo escondido do interior de nossas vidas: que quero fazer de minha vida? Que estou buscando? Por que há algo que sempre me remorde por dentro dizendo que eu poderia investir mais e melhor na minha missão? Que desejos me mobilizam, dando calor e sabor à minha vida?

Estas perguntas são mais difíceis de serem respondidas. Às vezes ficam ali, em um rincão de nossa vida, mas enquanto permanecem vivas são como umas brasas que voltam a se acender cada vez que a vida as sopra. Tais perguntas nos fazem mais humanos e são tão importantes como o ar que respiramos.

Por isso, continuamente deveríamos nos perguntar: sinto vivas em mim as perguntas radicais?

É neste nível que se situa a pergunta de Jesus aos dois discípulos de João. O Mestre propõe a pergunta fundamental, “e vós, o que estais buscando?”; uma pergunta que exige deles um exame sério, que tomem consciência do que pretendem, que explicitem as reais motivações da busca por Ele.

A pergunta de Jesus é desafiadora, e não simples curiosidade e inquietação, e se dirige a todos nós. Cada um tem de dar sua resposta. Ela exige uma tomada de posição, um ato de fé. Por isso, o processo da busca dos dois discípulos se amplia, despertando nos outros igual movimento de busca; um encontro não termina em Quem encontra: a partilha da descoberta faz brotar uma “reação em cadeia”.

Porque buscam, os dois discípulos movem os outros à busca.

“O Evangelho é um itinerário para abrir com profundidade a interioridade humana” (Rovira Belloso), e nele vemos como Jesus provoca nas pessoas o retorno ao interior; sua pedagogia é a da pergunta que des-vela e move a pessoa a entrar no interior de si mesma para encontrar-se com a fonte que mana e corre.

Quando os discípulos de João descobrem a Jesus, este, em vez de dar uma explicação ou uma exortação, lhes dirige uma pergunta que os remete ao centro de seu coração, àquilo que os move: “quê buscais?”

O evangelho de João apresenta diferentes perguntas: no diálogo com a samaritana e com Nicodemos, o Mestre os conduz ao profundo deles mesmos; com Maria Madalena Ele se aproxima como desconhecido e faz a mesma pergunta dirigida aos primeiros discípulos: “Mulher, que buscas?”; com Simão Pedro, após a ressurreição, por três vezes lhe pergunta sobre o amor.

Podemos então afirmar que a busca de Deus e o encontro com Ele, a partir de Sua iniciativa, coincidem com a busca e o encontro de nós mesmos, de modo que buscar a Deus é buscar-nos a nós mesmos, na nossa própria interioridade, onde o Senhor nos habita e nos move.

Encantam-nos as pessoas que têm mais perguntas que respostas. Aquelas que se apresentam com muitas respostas e poucas perguntas nos provocam tédio, nos cansam e acabam provocando afastamento. São encontradas em todos os lugares: nas igrejas, nos partidos políticos, no trabalho, nos meios de comunicação, nas redes sociais... Felizmente, também encontramos, em todos os lugares, muitas pessoas que têm mais perguntas que respostas. Embora tenham visões e crenças diferentes, nos sentimos em profunda comunhão com elas; com suas perguntas, elas nos provocam, nos enriquecem, mobilizam nossos melhores recursos e ativam a criatividade; essas pessoas nos ajudam a buscar, nos fazem perguntas novas que nos movem a sair de nós mesmos. Com elas podemos ver a realidade de maneira diferente, sob outra perspectiva. Suas perguntas despertam em nós outras perguntas e assim nossa vida entra em outro movimento. As perguntas movimentam, as respostas paralisam.

Alguém já afirmou que as perguntas têm uma força que não encontramos nas respostas. Só o fato de nos perguntar ou ouvir alguém que nos pergunta, pulsa em nós uma força, uma curiosidade que não se apaga com uma simples resposta. Perguntar-se na vida é o que nos mantém em busca. Como são nossas perguntas?

Deveríamos agradecer por tantas perguntas que nos foram feitas. Em um diálogo, as perguntas são a ponte entre as vozes, a confluência de corações, a faísca de luz partilhada. Todas e cada uma delas nos fizeram crescer, mesmo aquela mais trivial. Porque cada pergunta vem carregada de matizes: umas de carinho, outras

de atenção ou de interesse, e inclusive, algumas de desafio. Umas foram respondidas, outras ainda não soubemos respondê-las, talvez nunca saibamos respondê-las...

Quantas perguntas deixamos de fazer com frequência! A pergunta verdadeira tem sempre o aroma da humildade: é o reconhecimento de nossa ignorância e o da capacidade de nosso irmão para nos ajudar. A pergunta é uma frase não concluída, um verso que busca palavras de outro para dar cumprimento à sua beleza e à sua mensagem. A pergunta tem a cor do respeito infinito pela liberdade do outro.

Jesus se revelou como um homem das perguntas mobilizadoras. Há uma infinidade de vezes que Jesus se aproxima das pessoas e as interroga. Desde o “que buscais?” inicial em João, à tríplice interpelação a Pedro – “tu me amas?” -, ou o apelo ao cego – “que queres que eu te faça? -, ou a delicadeza com o cego na piscina de Betesda – “queres ficar curado?”.

Aquele que é Verdade, Caminho e Vida também revela sua identidade através de perguntas que despertam o melhor que há em cada pessoa.

Não é fácil responder à pergunta simples, direta, fundamental, a partir do interior de uma cultura “fechada” como a nossa, que se revela como “cultura da superficialidade”, onde a preocupação está centrada só com as aparências, com a vaidade e o prestígio... Que é o que buscamos exatamente?

Para alguns, a vida é um grande supermercado e o único que lhes interessa é adquirir coisas com os quais poder consolar um pouco sua existência. Outros, buscam escapar da enfermidade, da solidão, da tristeza, dos conflitos e do medo. Mas, escapar para onde? Para quem?

Outros já não buscam mais; o que querem é que lhes deixem sozinhos: esquecer os outros e ser esquecidos por todos. Não se preocupam com ninguém e que ninguém se preocupe com eles.

A maioria busca simplesmente cobrir suas necessidades diárias e continuar lutando por ver realizados seus pequenos desejos. Mas, mesmo que todos eles se realizem, ficaria seu coração insatisfeito. Não apaziguaria sua sede de consolo, libertação, felicidade plena...

As verdadeiras perguntas estão empapadas de ternura e delicadeza. É impossível o diálogo sem perguntas; é impossível que uma criança fale com sua mãe ou pai sem perguntas, nem um amigo com outro amigo, nem um esposo com sua esposa. Não é possível o amor sem perguntas. Não é possível a oração sem perguntas. Chegará o “Dia do Senhor”, o dia da Grande Resposta. Mas, até lá, as perguntas farão parte de nosso viver, farão emergir o mais verdadeiro de nosso ser, darão sabor e calor ao nosso peregrinar.

Vive agora as perguntas. Talvez assim, pouco a pouco, sem dar-te conta, possas algum dia viver as respostas” (Rainer Maria Rilke).

Texto bíblico: Evangelho segundo João 1,35-42

Na oração:

Ter os olhos centrados em Jesus deixando-se impactar pelo Seu modo de viver, Sua paixão pelo Reino, Sua missão, Suas perguntas...

- O que você busca ao fixar os olhos em Jesus? O que sente ao perceber os olhos de

  Jesus fixos em você?

- Que consequências tem para sua vida o modo de ser, de viver e de fazer do próprio Jesus?

- Quais são seus sonhos? Quê esperanças você carrega no coração?

- A quê você se anima a gastar sua vida? que medos o(a) paralisam?

domingo, 7 de janeiro de 2024

Epifania: não perca a “estrela” de sua vida!

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho da celebração da Epifania do Senhor (Dia de Santos Reis).

“Nós vimos sua estrela no Oriente e viemos adorá-lo”(Mt 2,2)

Epifania significa “manifestação”. No sentido original significa a primeira luz que aparece no horizonte, antes de sair o sol. Essa luz foi tomada como símbolo da iluminação espiritual em muitas religiões; por isso, a luz vem sempre do Oriente. Toda manifestação de Deus tem a marca da universalidade. Na relação com Deus estão excluídos os privilégios e exclusivismos. “Fora da Igreja há salvação!”

Na Epifania, não estamos celebrando a data de um acontecimento, mas a realidade de quem é Deus e a imensa alegria de poder descobri-Lo presente em tudo e em todos.

Se o Senhor não se manifestasse, sua Encarnação não teria chegado à toda a humanidade. Pois bem, a manifestação de Deus em Jesus tem um alcance universal, está destinada a toda humanidade.

É interessante que a tradição tenha interpretado que os Três Magos procediam dos três continentes até então conhecidos: África, Ásia e Europa. O mago negro aparece sempre. No Reino de Jesus Cristo não há distinção de raça ou de origem, não há diferenças nacionais, nem sociais, nem raciais. Todos somos filhos do mesmo Pai. Jesus Cristo une todos os povos e todas as pessoas, sem perder a riqueza de sua diversidade. A tradição também relacionou os três reis com as três idades da vida do ser humano: a juventude, a idade madura e a velhice. Deste modo, todos podemos nos ver representados nos três magos que vão ao encontro do menino-Deus.

Mateus começa e termina seu evangelho dando a Jesus o título de “rei dos judeus”. Trata-se de um rei que nasce e morre rompendo todos os esquemas das realezas mundanas: nasce em uma gruta que acolhia animais e morre numa cruz. Em seu nascimento, os Magos vão em busca do “rei dos judeus”. Se estamos falando de um rei, compreende-se que eles o buscassem na cidade dos grandes palácios, ou seja, em Jerusalém. Equivocaram-se de caminho e de lugar, porque o rei que tinha nascido era tão diferente e tão novo que só podia nascer entre os pobres. O evangelista Mateus não se refere a nenhuma realeza que não seja a de Jesus. São as tradições populares posteriores que, usando muita imaginação, consideraram os Magos como “reis”. O evangelista só reconhece um rei, que é Jesus. Por isso os magos se prostram diante dele e o adoram.

Os Magos representam todos aqueles que vem dos confins da terra ao encontro do Menino, os estranhos ao povo judeu, os que não são da raça do recém-nascido, os afastados. Também para eles nasceu o filho de Maria. E também a eles deve chegar a boa notícia do Evangelho.

Os Magos representam também a humanidade inteira em busca de paz, verdade e justiça. Representam o desejo profundo do espírito humano, a marcha das religiões, da ciência e da razão humana ao encontro d’Aquele que se “humanizou” plenamente.

À luz do relato de Mateus podemos afirmar: o Reino de Deus não se limita aos contornos de uma religião. O amor, a entrega, a capacidade de sair de si e ir ao encontro do outro, a compaixão... são os melhores recursos e possibilidades presentes no interior de todo ser humano. O que celebramos hoje é a revelação de Deus a todos os homens e mulheres, não a submissão de todos à doutrina ou disciplina de uma determinada religião. Onde se encontra uma pessoa que cresce em humanidade, amando os outros, ali está se manifestando Deus; onde a compaixão, o cuidado e o serviço se revelam como atitudes gratuitas, ali Deus está revelando seu rosto. Não podemos entender a abertura aos pagãos como proposta para que se convertam à religião cristã. O importante é potencializar o que há de mais nobre e humano em cada pessoa, mesmo que não conheça Jesus.

Os Magos, discernindo os sinais da natureza, se depararam com o forte esplendor de uma “estrela”, e puseram-se a caminho. Talvez o relato dos Magos e a estrela tenha suas raízes na bonita tradição judaica que diz: quando uma criança nasce, “acende-se” uma estrela no céu. Por isso no céu há tantas estrelas. Quando nasce uma criança, acende-se uma luz, um mundo de possibilidades, um universo pessoal no espaço da comunidade humana.

Jesus Cristo como “estrela”, é guia da humanidade e por isso desce à terra. De fato, a estrela se deteve no presépio, onde estava Jesus. A estrela, portanto, é Jesus presente no cosmos; logo, o cosmos fala implicitamente de Cristo, embora sua linguagem não seja totalmente decifrável para o ser humano.

A Criação deixa transparecer os atributos do Criador: bondade, compaixão, verdade, justiça... Desperta também a expectativa, mais ainda, a esperança de que um dia este Deus se manifestará plenamente.

A partir de então, as verdadeiras estrelas da humanidade são as pessoas que nos mostram o novo caminho para o Deus encarnado.

Também hoje continuamos necessitados de estrelas que iluminem nossos caminhos e guiem nossos corações, porque a noite é escura, as certezas se debilitam ou se petrificam, os abusos de poder violentam, destroem e marginalizam, a esperança continua sendo um desafio para quem consentiu acreditar.

Essas estrelas são pessoas, gestos, conversações que iluminam nossa vida cotidiana e nos recordam a verdade salvadora que se encarna em Jesus. Mas também são acontecimentos, sinais dos tempos, mudanças que ajudam a crescer e a melhorar, porque guiam para esses lugares que nos fazem mais humanos, que nos ajudam a compreender que nem tudo está dito e nos recordam que Deus continua sendo surpresa e impulso, que sua salvação não é algo do passado ou de um futuro distante e enigmático, mas presente e atuante em cada geração e em cada pessoa.

Como Igreja e como cristãos temos de repensar muitas coisas, mas não a partir do poder (Herodes e Jerusalém), mas a partir da Luz. A revelação, a estrela, estão no fluxo da história da Igreja e da humanidade; precisamos procurar fazer nossa essa luz para que ilumine cada situação humana e eclesial.

A Boa Notícia de Jesus nos levanta, nos convida a caminhar com a certeza de que sempre haverá estrelas que alimentem nossa esperança, orientem nossos projetos, nos sustentem nos momentos vulneráveis, nos abram na obscuridade. Nem sempre é fácil pôr-se de pé, fugir das seguranças do poder e do êxito, começar de novo... Mas, aí está uma multidão de estrelas que continuarão comprometidas em acompanhar-nos em todos os nossos esforços.

Mais uma vez somos convidados(as) a ser “magos/as”, caminhantes e buscadores que sabem seguir a estrela sem medo a que nos leve a lugares desconhecidos, surpreendentes ou inesperados. Magos/as que presenteiem perdão, bondade e solidariedade sem esperar outra coisa em troca a não ser fraternidade e empatia. Magos(as), em definitiva, que coloquem a confiança naquilo que constrói e liberta, e abandonem tudo aquilo que é imposto, violento ou interesseiro. Não é um caminho fácil. Não basta escutar o chamado do coração; é preciso pôr-se em marcha, expor-se, correr riscos.

O gesto final dos magos é sublime. Não matam o menino, mas o adoram. Inclinam-se respeitosamente diante de sua dignidade; descobrem o divi-no no humano. Esta é a mensagem de sua adoração ao Filho de Deus encarnado no menino de Belém.

Texto bíblicoMateus 2,1-11

Na oração:

Como cristãos, devemos nos sentir capazes de acolher todas as expressões religiosas e culturais de todos os povos. Só nesse sentido se pode falar de “epifania”. Não se trata só de ir e levar aos outros o que temos. Trata-se de receber aquilo que os grandes “magos” dos povos também nos oferecem. Epifania não combina com preconceito, fundamentalismo, proselitismo...

- “Fazer memória” das pessoas que foram “estrelas” inspiradoras em sua vida.

- Situações em que você foi “presença iluminante”, apontando horizontes de sentido para muitas pessoas.

Onde está o ‘novo’ do Ano Novo?

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho da Solenidade da Santa Mãe de Deus, em que se celebra também a chegada do Ano Novo e o Dia Mundial da Paz. Desejamos a todos uma inspirada "travessia" em direção ao Novo Tempo: dom do "Senhor dos tempos".

“Os pastores voltaram, glorificando e louvando a Deus por tudo o que tinham visto e ouvido” (lc 2,20)

“Começar de novo...”, diz o refrão de uma conhecida música; pois é exatamente o dom de re-começar, sempre, que nos caracteriza como humanos.

Hoje começamos um Novo Ano. Mas, o que pode ser para nós algo realmente novo? Quem fará nascer em nós uma alegria nova? Quem ativará em nós novos sonhos? Quem ensinará a sermos mais humanos? O decisivo é estar mais atentos ao melhor que se desperta em nós e viver sintonizados com a eternidade de Deus.

Esta união com Deus faz com que o tempo seja pleno. Também para nós o tempo pode ser de plenitude na medida em que vivemos unidos a Deus e nos abrimos aos irmãos pelo amor. Pois o amor é o que faz com que o tempo deixe de ser enfadonho e caduco e se abra a uma plenitude que se renova cada dia.

Neste início de um Novo Ano, somos impelidos a caminhar para algo novo: novo tempo, novas relações, novos desafios, novas experiências...

Não é este o momento de permanecermos imóveis só porque o caminho está obscuro e inexplorado. O que deve impulsionar a vida cristã atual é a espiritualidade da criação, da iniciativa, do momento presente...

Nossa experiência nos diz que todo começo põe em marcha novos recursos, novas atitudes, abre novas possibilidades, amplia nossas expectativas...

Quando celebramos um “Ano Novo”, celebramos precisamente isso, que é “novo”. Somos presenteados com uma nova oportunidade preciosa para superar intrigas, inaugurar tempos de acolhida e perdão, olhar para a frente, despojar-nos de tudo aquilo que não nos faz mais humanos e, se somos cristãos, mais evangélicos, tolerantes e compassivos. Viver em chave de “possibilidade”, “oportunidade” ou “novidade” nos afastam de afirmações estéreis como estas: “sempre foi feito assim”, “eu te disse que não ia funcionar”, não se poderia esperar outra coisa desta pessoa...” Certamente que isso não nos conduz pelo caminho da humildade, de sentir-nos companheiros de caminho, irmãos em missão e, sobretudo, homens e mulheres enraizados na esperança.

A lógica da nossa sociedade de consumo reprime nossa criatividade, nos faz retroceder em nossa humanidade e nos impede de aproximar de toda experiência mais profunda. Marcados por tradições e hábitos caducos, dialogamos com o possível, o já esperado, o já testado, o “sempre fizemos assim”... Por isso, sentimos o desejo do retorno à espontaneidade e de aventurarmos na descoberta de um mundo diferente, ainda que assustador e incerto.  “A princípio, estranha-se. Depois, entranha-se” (Fernando Pessoa).

Porque acreditamos no “novo” é preciso nos afastar de uma ingenuidade alienada, de uma visão pouco perspicaz, de um senso comum que não confia na bondade do ser humano...; caso contrário, nos tornaremos incapazes de ler este “novo tempo” e de oferecer uma proposta criativa, a partir de nossa opção e maneira de viver. Talvez estejamos ainda muito marcados por um clima de ódio e de suspeita, de divisões nos relacionamentos, de identidades pouco éticas, de narcisismos institucional ou pessoal, de incapacidade para alegrar-nos com quem se alegra, de relações doentias que aumentam as distâncias e a frieza diante de quem pensa, sente e ama de maneira diferente.

Tais atitudes insanas escondem algo que é mais triste: a falta de propostas à luz do Evangelho, de liderança humanizadora, de criatividade mobilizadora dos nossos melhores recursos... Quando isso não acontece, mergulhamos na segurança do “costumeiro”, confundimos poder com autoridade, acreditamos estar em posse do monopólio da verdade, provocamos confusão de funções...; tudo isso nos enreda na mediocridade da vida e mata a criatividade.

Sem dúvida, o “Ano Novo” não chega simplesmente pela mudança de alguns dígitos, nem por arrancar uma página do calendário. Talvez o “tempo novo” já esteja começando naquelas pessoas que não negociam valores inegociáveis, não se compactuam para manter uma estrutura social injusta, não se envolvem em “redes sociais” carregadas de “fake News” e mensagens preconceituosos, não fomentam guetos nazifascistas, não estimulam conflitos, mas se abrem à riqueza da pluralidade, respeitam e acolhem o bom que vem dos diferentes, alimentam uma presença que se revela inspiradora, focada na mensagem da Boa Notícia.

Dizer “evangelho” é dizer “terra de oportunidades”, o lugar a visão teológica que nos faz amar e compreender que todos “somos”. Bendito “tempo novo” que nos faz recordar tudo isto!

A sabedoria deste Novo Ano vai, progressivamente, ativando uma luz que nos indica, de novo, que o caminho é de Deus e que Ele nos convida a nos deslocar, a entrar em sintonia com seus sinais surpreendentes, a colocar-nos em caminho como os pastores em direção à Gruta, onde um Menino os espera; ali, ficam assombrados pela Vida que se visibiliza nas margens, abrindo um horizonte de sentido para todos.

Para iniciar este Novo Ano, nada melhor que ativar a atitude contemplativa dos pastores na Gruta em Belém: “viram o Menino”. E isso fez toda a diferença. Tudo se tornou “novo”; voltaram para o cotidiano do pastoreio carregando uma presença na memória. O sentimento de gratidão aflorou: “voltaram glorificando e louvando a Deus”.

Quem contempla a realidade com os olhos simples dos pastores, não faltarão ocasiões para reconhecer a criatividade de Deus em ação, a inovação do Espírito movendo corações, criando cenários novos, mais humanos, com mais profundidade, mais do Reino...

A experiência de colocar-nos a caminho, a abertura ao mistério, o fato de estarmos conectados, despertos e abertos à passagem de Deus, permite que Sua Graça desbloqueie as nossas amarras interiores e nos mobilize a uma presença diferenciada, no deserto da vida.

Por isso, o sentimento dominante que precisa ser ativado neste momento de transição é a da gratidão.

Sabemos que a gratidão autêntica constitui uma unidade íntima com a vida, flui com ela. Nasce e se apoia na compreensão de que, para além dos juízos que nossa mente possa fazer, tudo é graça.

A gratidão, como força que esvazia nosso ego, nos faz tomar distância de nossos pequenos interesses e nos abre à compreensão profunda de que, em último termo, tudo é dom, tudo é dado, tudo é Graça.

 

Texto bíblico: Lucas 2,16-21

Na oração:

Esperança, indignação, coragem. Preciosas atitudes para este novo tempo em que temos o privilégio de viver.

- Você se atreveria assumir tais atitudes?

- Você se arriscaria, por um novo começo?

- Que riscos concretos você se sente chamado a assumir?

Um abençoado Ano Novo feito de promessas, de caminhos... de ternura infantil.

Feliz Ano Ano! Feliz 2024

Prezados leitores e prezadas leitoras,

Depois de um tempo sem as postagens semanais dos textos de reflexão do Evangelho da liturgia dominical escritos pelo Pe. Adroaldo Palaoro, SJ estamos de volta!
Um ano efetivamente novo é resultado de novos olhares, novas perspectivas e novas atitudes. Que tenhamos sabedoria e força para construir o novo.
Desejamos a todas as pessoas de boa vontade um ano fecundo e cheio de bênçãos de vida!