Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 11º. Domingo do Tempo Comum (Ano A).
“Vendo Jesus
as multidões, compadeceu-se delas...” (Mt 9,36)
O atributo primeiro do Deus de Jesus não é o
poder, a majestade, o senhorio..., mas a compaixão. Ele não vem para
impor-se e dominar o ser humano. Aproxima-se para tornar nossa vida mais digna
e ditosa.
Esta é a experiência que Jesus comunica em suas
parábolas mais comovedoras e a que inspira toda sua trajetória a serviço do
Reino de Deus. De fato, na sua vida pública, Jesus deixa transparecer o rosto
do Pai compassivo na sua relação com a humanidade, sobretudo com os sofredores,
vítimas de violência e exclusão. A imagem do Deus revelado por Ele não está
acima ou à margem do sofrimento humano.
Jesus é a primeira testemunha da
compaixão do Pai; Ele foi o primeiro a viver totalmente a partir deste
sentimento tão divino e tão humano, desafiando claramente o sistema de
santidade e pureza que predominava naquela sociedade. Ele quer que, a partir de
então, os enfermos, os famintos, os excluídos..., experimentem em sua própria vida
a compaixão de Deus.
A atuação de Jesus era diferente das
autoridades religiosas, pois Ele via tudo a partir da compaixão de Deus. O que
lhe preocupava, antes de mais nada, era o sofrimento que destruía, humilhava e
marginalizava tantas pessoas. Jesus não caminhava pela Galileia buscando
pecadores para convertê-los de seus pecados, mas aproximava-se dos enfermos,
famintos e endemoninhados para libertá-los de seu sofrimento.
É precisamente esta compaixão de Deus que
faz Jesus tão sensível ao sofrimento e à humilhação das pessoas, que o atrai
para as vítimas inocentes: os maltratados pela vida ou pelas injustiças dos
poderosos.
Sua paixão pelo Deus do Reino se traduz em
compaixão pelo ser humano. O Deus do templo, o Deus da lei e da ordem, do culto
e do sábado, não poderia alimentar sua entrega a todos os sofredores.
Por isso, a compaixão,
é a opção e atitude fundamental de Jesus diante dos sofredores, famintos e
excluídos.
Diante deles, Ele não permanece impassível, mas
sente remover suas entranhas.
A palavra hebraica que se traduz
por compaixão é “rahamim”, derivada de “rahem”, ventre,
entranhas.
Na antropologia bíblica, ventre é o
lugar da compaixão e é aplicado a Deus, pois só Ele é capaz de atuar compassivamente
a partir de suas entranhas. A tradição bíblica do Êxodo apresenta Javé movido pela
compaixão diante dos sofrimentos do povo hebreu; Ele escuta os gritos que
chegam ao céu e compromete-se com a libertação da escravidão do Egito (Ex
3,7-12).
A compaixão também está na base da
legislação hebraica que defende os direitos dos órfãos, das viúvas e dos
estrangeiros, os mais vulneráveis entre o povo. É o centro da mensagem e a
prática dos profetas de Israel, para quem a religião verdadeira não consiste em
oferecer sacrifícios, mas em fazer o bem, estabelecer o direito e praticar a
justiça.
A compaixão expressa, portanto, uma
reação visceral, o estremecimento mais íntimo e humana que uma pessoa pode
experimentar. Nesse sentido, a compaixão é o motor da
vida e da conduta do ser humano.
A partir de sua experiência radical da compaixão,
Jesus introduz na história um princípio decisivo de ação: “Sede
compassivos como vosso Pai é compassivo” (Lc 6,36). A compaixão é a força que pode mover
a história para um futuro mais humano. A compaixão ativa e solidária é a grande
lei da dinâmica do Reino, aquela que faz reagir diante do clamor daqueles que
sofrem e mobiliza a todos para construir um mundo mais justo e fraterno. Esta é
a grande herança que os cristãos precisam mantê-la sempre ativa. Afinal, eles
são seguidores do Compassivo.
A compaixão é a virtude por
excelência proclamada no Sermão da Montanha: “Bem-aventurados os compassivos...”. Felicidade e compaixão são
inseparáveis. Uma pessoa é feliz partilhando e aliviando
a dor das pessoas que
sofrem. A falta de entranhas de misericórdia torna infelizes aqueles que não
praticam tal virtude e aqueles que sofrem.
Por isso, pode-se dizer que se
trata de um princípio ético universal, que transcende todas as
culturas e religiões, de maneira que, precisamente por isso, está presente onde
há humanidade.
A compaixão é comum a todos
e é anterior a toda instituição religiosa. Ela está inscrita no mais profundo
de todo ser humano, independentemente de sua opção religiosa.
Fomos criados à imagem e semelhança do Deus
Compassivo e trazemos “tatuado” em nossas entranhas a marca da compaixão,
que é continuamente ativada diante dos dramas da vida humana. Este sentimento,
tão humano e tão divino, constitui a essência do nosso “eu” verdadeiro e
revelador da nossa identidade mais original e profunda. No entanto, quando nos
deixamos seduzir pelo “ego inflado”, a compaixão se atrofia, a sensibilidade se
petrifica, os afetos se esvaziam... Consequências: agravamento da cultura do
ódio, da intolerância, do preconceito e da indiferença frente à realidade
marcada pela violência, miséria e exploração.
Compaixão bloqueada dá margem ao processo de
desumanização.
O eu entrincheirado em seu “bunker”
necessita passar por um processo de higiene e saúde, respirar novos ares, não
viciados ou contaminados; precisa abrir suas portas e janelas ao outro, sair às
ruas, fazer-se presente junto às situações desumanizadoras.
Viver fechado em si e para si
termina por afogar-se nas águas poluídas do narcisismo. Só a compaixão vem a
ser o melhor antídoto contra o egoísmo tão enraizado no ser humano.
Impulsionado pelo sentimento da compaixão ele quebra as paredes de seu “bunker”,
sai ao encontro do outro e se compromete com ele. Escreve E. Levinás: “a partir do
momento em que o outro me olha, eu sou responsável por ele”.
No
evangelho deste domingo, Mateus nos deixa claro que foi no contexto da compaixão
de Jesus diante da multidão faminta e sem pastor que o “chamado e o envio”
acontecem. O chamado de Jesus emerge no calor da compaixão; só este sentimento
tão nobre dará inspiração e sentido ao seu seguimento.
Sem deixar-se guiar pela compaixão,
o seguimento de Jesus “passa pelo outro lado” diante do sofrimento humano e se
torna cúmplice dele. A alternativa é o seguimento como vivência do amor, da
justiça e do cuidado, que faz sua a dor das vítimas; um seguimento carregado de
com-paixão, que denuncia os geradores de vítimas e toma partido pelas pessoas,
os coletivos e a natureza, sofredores que gritam aos céus.
Seguir Jesus sem compaixão é ser
“burocrata” do Reino; é viver uma religião sem afeição pelo Mestre da Galileia.
Sem compaixão não há identificação com o Compassivo; só quando inspirado pela
compaixão é que o(a) seguidor(a) poderá anunciar a Boa Notícia do Reino, “curar os doentes, ressuscitar os mortos, purificar os
leprosos, expulsar os demônios”. Igualmente,
só a compaixão desperta outro sentimento tão nobre, o da
gratidão:
“de graça recebestes, de graça deveis
dar”.
Num mundo “sem-compaixão”, a primeira coisa que
devemos fazer, como cristãos, é resgatar a compaixão de uma concepção
sentimental e moralizante. Não podemos reduzi-la à assistência caritativa ou a
um sentimento eventual. “Ser compassivo” é modo permanente de
viver e proceder.
Inspirados(as) pela mensagem e pela atuação
profética de Jesus a compaixão se expressa como um grito de indignação
absoluta: o sofrimento dos inocentes deve ser levado a sério, não pode ser
aceito como algo normal, pois é inaceitável para Deus.
O apelo de Jesus a sermos compassivos como o Pai implica uma maneira nova de nos relacionar com o sofrimento injusto que há no mundo. Para além de chamamentos morais e religiosos, Ele está pedindo que a compaixão, ativa e solidária, penetre mais e mais nos fundamentos da convivência humana, erradicando todo tipo de sofrimento e suas causas. Só assim, o Reinado do Pai se faz presente em nossa história.
Texto bíblico: Mt 9,36-10,8
Na oração:
A grande novidade e
originalidade de Jesus (sua subversão) começou em sua maneira de olhar a realidade e de deixar-se afetar
por ela. A “subversão” da vida começa pela subversão do olhar e vice-versa. O
coração sente de acordo com o que os olhos veem, mas os olhos veem de acordo
com o que sente o coração. A realidade subverte o olhar, e o olhar subverte a
realidade. Olhos que não veem, coração que não sente. Mas os olhos não veem
quando o coração não sente.
- Sua vivência do
Seguimento de Jesus é marcada pelo “olhar compassivo e comprometido” ou por
práticas piedosas alienadas, que não o(a) projetam em direção aos mais
sofredores?
Interessante, pois é um questionamento me faço constantemente. (Mãe carioca 😘
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