domingo, 28 de maio de 2023

Santa Ruah: o sopro que gera vida

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, SJ, como sugestão para rezar o Evangelho da festa de Pentecostes (2023 - Ano A).

“...soprou sobre eles e disse: ‘Recebam o Espírito Santo’” (Jo 20,22) 

Pentecostes é hoje; é sempre! Não foi só naquele distante dia em que um grupo de discípulos e discípulas assustados(as) se sentiram fortes, encorajados(as), movidos(as) por um impulso tal que os levou a romper os espaços fechados e viver o movimento de “saída”. Pentecostes acontece em cada um de nós; não é pomba nem chama ardente e, talvez, não nos lança ao meio da multidão dando gritos. E, no entanto, o Espírito de Deus continua descendo sobre nós, envolvendo-nos em silêncio, seduzindo-nos sem imposições, sussurrando-nos palavras de amor infinito e ensinando-nos a olhar o mundo e a vida com novos olhos.

Somos casa do Espírito!

O relato do evangelho deste domingo nos oferece outra perspectiva do encontro do Ressuscitado com seus discípulos: seus olhos viram as feridas, mas seu coração experimentou que Jesus está vivo. E esta experiência os encheu de alegria. O Espírito os capacitou a ter um novo olhar, muito mais profundo.

O Espírito do Ressuscitado é o gerador de novos equilíbrios, rompedor de todos os medos; por isso, Ele se revela sempre desconcertante, surpreendente, interpelante. Mas é assim que o Espírito Santo nos abre a uma nova sabedoria, a um novo entendimento, a uma nova gestualidade, a uma nova vida.

O Espírito é o sopro que vivifica, anima, restaura e congrega. Somos “filhos(as) do Vento”. O vento impetuoso em Pentecostes faz com que todos nos sintamos cheios de novo alento, de novo sopro de vida. Em outras palavras, sentimo-nos “animados” (= com alma, espírito).

Nosso tempo pede que sejamos homens e mulheres do Vento, que ajudam o mundo a respirar e sentir a vida palpitar; que buscam, na terra, viver o sonho do Reino; que alimentam as chamas da esperança nos corações sonhadores; que se reconhecem humildes ante a misericórdia e o infinito de Deus; que acreditam na força dos pequenos e dos gestos simples; que vibram com as conquistas justas e que se compadecem da miséria do humano; que cuidam de tudo e de todos com ternura e carinho.

O vendaval em Pentecostes varreu o medo e a desconfiança. Todos se encheram de uma força e de um dinamismo jamais experimentado, que fez mover pessoas, corações e mentes. Sentiram-se como que envolvidos pelo Espírito, que os permitiu falar uma linguagem que todos entendiam.

Tal experiência provoca um movimento que rompe fronteiras e barreiras. Assim, o Espírito faz superar o fundamentalismo, a hipocrisia e a apatia. Não há nada de mágico; simplesmente, as pessoas se deixam mover pelo Espírito, que habita o universo e os corações, e se deixam levar pelo sopro divino.

Para captar o sentido profundo da presença e ação do Espírito, em nós e na criação, é preciso retornar à expressão hebraica “Ruah”, muito mais densa de sentido e essência. Foi o que fez o Ressuscitado ao “soprar sua Ruah” sobre os discípulos medrosos e fechados.

Já no relato do Gênesis encontramos o primeiro alento divino que deu vida ao barro inerte.

Com linguagem atual podemos dizer que a Ruah nos faz a “respiração boca a boca”, nos devolve o fôlego quando sentimos que a vida nos escapa, quando estamos desalentados, angustiados...

A “Ruah” é dinamismo, vida, relação, comunhão divina. É alento, vento, água. É unguento, é consolo, é companhia. “Ruah” é invenção, é fonte de criatividade, de autêntica novidade. É fonte de novas possibilidades no mundo, energia inaugural de novas auroras.

É a energia materna de Deus que aquece o coração da Criação, e que tudo sustenta.

Detalhemos as características da “Ruah” do Ressuscitado:

- Ruah é a ação (ou a presença) de Deus que vitaliza o ser do mundo e de uma forma peculiar a história da humanidade. É a expansão de amor do Deus que, ao atuar sem cessar, faz com que a vida nasça e que os seres humanos entrem no mesmo fluxo desse amor.

- Ruah é a profundidade mesma de vida dos seres humanos no mundo. Ela sustenta o cosmos e a história, e se explicita em cada um de forma constante, ilimitada, sempre forte.

- Ruah é força de esperança, de maneira que ultrapassa as atuais condições da vida. Encontramo-nos em Deus e abertos ao futuro; nossa verdadeira identidade não se apoia naquilo que agora somos, mas, antes, no mistério vitalizante do Espírito divino.

- A Santa Ruah não vem para ditar um catálogo de normas, mas para revelar o sentido profundo da nossa vida. Abundante, generosa, sem cor, sem restrições ou fronteiras, assim é o seu dom.

Portanto, celebrar Pentecostes não consiste só em recordar uma experiência de dois mil anos atrás; é tomar consciência que nossa vida – pessoal e comunitária – pode mudar com a mesma intensidade que mudou a vida daquele grupo de homens e mulheres, que estavam cheios de temor.

Que nos move na celebração de Pentecostes? Olhemos em nosso interior tudo aquilo que é obstáculo para crescer como discípulo(a). Coloquemos nomes: medos, pré-juizos, petrificação, rotina, superficialidade, indiferença, ódio, maldade... Estes obstáculos são como travas que nos impedem caminhar como discípulos(as).

É a Ruah que nos purifica a fundo, estabelecendo o “cosmos” em meio ao nosso “caos” interior; é Ela que deixa a descoberto as vivências não integradas, as experiências não pacificadas, as feridas não cicatrizadas...

Existem partes de nós mesmos, talvez alguns dos nossos membros, que estão fechados ao próprio movimento da vida, que estão fechados ao Sopro do Vivente. Cada um de nós, de modo bem particular e pessoal, tem um espaço de abertura e um espaço de fechamento. Qual deles prevalece?

A missão da “Ruah” não é ajudar a nos “livrar” daquilo que imaginamos que torna sombria nossa existência e nos atemoriza (feridas, rejeições, ressentimentos...), senão que sua ação nos conduz, suavemente, a abraçar tudo e tudo recolher para que não se perca nem um só dos fragmentos da vida e, assim, com imensa gratidão, poder saciar-nos de seus dons.

Sua presença não se limita à exterioridade, mas é como a água que penetra na terra para que ela floresça.

Seu trabalho de transformação nos ensina a fazer amizade com as dimensões não integradas de nossa vida, da realidade, dos outros, das quais nos tínhamos distanciado, das quais nos sentíamos separados. Ela nos leva a descalçar-nos, porque já não temos medo de que a terra que pisamos danifique nossos pés. Sua discreta presença nos move a acolher em nós nosso potencial de ternura, de cuidado e de resistência diante de todas aquelas situações e forças que desintegram a vida.

A “Ruah” é a grande multiplicadora do melhor de cada um, a portadora das “células-tronco” de nossa vida interior. Ela nos faz forte em nossa fraqueza e nos faz amadurecer quanto mais nos humanizamos. Seu modo de nos proteger é abrindo-nos; seu modo de nos defender é desarmando-nos e quebrando nossa rigidez.

Falar da “Ruah” e celebrar Pentecostes é celebrar a festa, a vida. Ela é o Sopro último, o Dinamismo vital que pulsa em todas as expressões de vida que podemos ver e que nelas se manifesta.

Não há nada onde não possamos percebê-la, nada que não nos fale d’Ela.

Ela é o “ambiente vital de realização do ser humano”, porque n’Ela a vida adquire profundidade, consistência..., dando a todos, firmeza à vontade, equilíbrio aos sentimentos e iluminação à mente.

Viver uma “vida segundo a Ruah” é deixar-nos recriar, deixar-nos mover, transformar, alargar. Soltar as asas nos momentos mais petrificados e pesados de nossa vida é sinal de sua silenciosa Presença. De imediato, nos sentiremos livres do peso que fomos arrastando durante tanto tempo e, por uns instantes, nos atreveremos a “viver no Vento”.

Texto bíblico: Jo 19,19-23

Na oração:

“Ruah” evoca o sopro de ar fresco que trazia nuvens e chuva, ou seja, a benção. Somos conscientes, cotidianamente, desta benção? Somos o canal de benção para outras pessoas?

- O que o(a) desalenta diariamente? A sensação de fragilidade e impotência? As notícias sobre a situação mundial? A resistência diante de uma mudança, o medo do futuro? A angústia diante dos conflitos, divisões e ódios que imperam na realidade social?

- Entre no fluxo do alento da “Ruah” de Deus; alargue o espaço interior para que Ela transite com liberdade, levando o “ar renovado” às dimensões mais reprimidas e esquecidas de sua vida.

sábado, 20 de maio de 2023

Ascensão: quando “subir” significa “descer”

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, SJ, como sugestão para rezar o Evangelho da festa da  Ascensão do Senhor (2023 - Ano A). 

“Eis que eu estarei convosco todos os dias, até ao fim do mundo” (Mt 28,20) 

Na dinâmica do Tempo Litúrgico, após uma longa e criativa caminhada com Jesus, a liturgia nos faz “desaparecer em Deus”, como o Cristo da Ascensão “desapareceu em Deus”.

“Depois de sua paixão, Jesus mostrou-se vivo a eles, com numerosas provas; apareceu-lhes por um período de quarenta dias, falando do Reino de Deus” (At 1,3).

Tivemos, portanto, 40 dias que nos prepararam para acolher a nova maneira de presença de Jesus, depois que, segundo nos diz o evangelho, Ele “ascendeu” ao céu.

O número 40 aparece com frequência na Bíblia, sempre relacionado com tempos de experiências vitais profundas, cruciais, fundantes. Algumas vezes, tempo de caminho incansável, outras vezes, tempo de espera paciente, mas sempre tempos de busca, preparação, escuta e crescimento pessoal ou comunitário.

Falamos, então, de tempo (40 dias) e espaço (a ascensão ao céu). Tempo e espaço que, de modo claramente pedagógico, são utilizados pelo evangelho como meios de preparação para que possamos amadurecer o nosso processo no seguimento de Jesus Cristo.

Por tudo isso, é importante que estejamos atentos às últimas palavras que Jesus nos diz no evangelho de hoje: “Ide, pois, fazei discípulos entre todas as nações, e batizai-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”. Fica claro que Jesus, ao “subir”, coloca seus seguidores em movimento. “Por que ficais aqui, parados?”, dirá o livro dos Atos.

Portanto, não percamos tempo; já tivemos o tempo suficiente, 40 dias. Já não há desculpas. O Senhor não só nos preparou para esse momento, mas promete continuar ao nosso lado, atuar junto a nós e confirmar a nossa missão de sermos presenças inspiradas e criativas no mundo. Não fiquemos parados!

Mateus culmina seu evangelho relatando a despedida de Jesus. Aqui não aparece nenhuma “subida”; o que há é a promessa de uma permanente presença de Jesus. Mais que uma “subida”, há um “permanecer”, um estar todos os dias, uma contínua solidariedade. Não há ausência de Jesus, mas um novo modo de presença, a “d’Aquele que não tinha deixado o Pai ao descer à terra, nem tinha abandonado os seus discípulos ao subir ao céu” (S. Leão Magno). Por meio do Espírito se realiza este novo modo de presença. O Espírito faz com que Jesus Cristo, que se foi, venha agora e sempre de um modo novo. O Espírito não é uma compensação pela ausência de Jesus, mas o modo como Ele se faz presente. Graças ao Espírito continua a atividade salvífica d’Ele; graças ao Espírito, as palavras de Jesus se fazem novas, atuais, presentes.

Os Onze discípulos retornam à Galileia; são onze, porque um se perdeu, símbolo do perigo que correrá cada discípulo e cada comunidade. Eles voltam ao lugar onde tinham experimentado a sedução do primeiro chamado: “Segui-me e farei de vós pescadores do humano”. Tinham seguido Jesus com entusiasmo, embora lhes tenha custado muito entendê-lo e, sobretudo no final, o quão difícil foi superar o trauma de sua morte na Cruz e reconhecer no Crucificado a plenitude da Vida.

Jesus lhes indica com toda precisão qual deve ser a missão deles. Não é propriamente “ensinar uma doutrina”, não é só “anunciar o Ressuscitado”. Sem dúvida, os discípulos de Jesus deverão cuidar diversos aspectos: “dar testemunho do Ressuscitado, “proclamar o Evangelho”, “implantar comunidades” ..., mas tudo está finalmente orientado a um objetivo: “fazer discípulos de Jesus”.

A festa da Ascensão nos recorda que Jesus não “subiu” fisicamente ao céu. A Ascensão do Senhor é outra coisa; se “subiu” é porque primeiro “desceu”. Porque se “humanizou”, fazendo-se servidor, foi “exaltado por Deus” (Fl 2,9). “Quem se humilha, será exaltado” (Mt 23,12). Só a partir desta atitude é possível compreender a recomendação que Jesus faz a seus seguidores(as): aquele(a) que quer ser o primeiro, que seja o(a) servidor(a) de todos.

Subir, elevar-se, estar acima dos outros, triunfar, conquistar o primeiro lugar... são expressões que se revelam sempre tentadoras. “Subir” é a aspiração de todo ser humano no terreno político, laboral, financeiro, esportivo, relacional… Assim funciona a nossa sociedade competitiva.

Mas, “entre vós não deve ser assim”, nos diz Jesus. Quando buscamos as “subidas”, nossas obras serão de morte (ódio, competição, divisão, indiferença...) e as obras de vida serão esvaziadas; é preciso viver a “mística da descida”, ou seja, acolher o estrangeiro, atender ao enfermo, defender o maltratado, perdoar quem nos ofende... Se entrarmos no “fluxo de descida” de Jesus, nossas obras serão de vida.

Agora, Jesus nos convoca de novo à Galileia, à montanha das bem-aventuranças, para nos confiar outra missão, muito mais exigente: “Ide e fazei discípulos meus todos os povos”. Não temos de voltar à Jerusalém, o centro do poder político e religioso, que havia crucificado o Mestre. O horizonte é agora universal:

“todos os povos”, sem nenhuma discriminação. Encontraremos raças diferentes, línguas desconhecidas, culturas surpreendentes. Não teremos de mudá-las, mas iluminá-las com a verdade e a originalidade do modo de ser e viver de Jesus.

Diremos só uma palavra essencial: “amem-se”. Amem-se com a riqueza de suas próprias tradições, com a originalidade de seus próprios costumes e ritos. Amem-se e conheçam Aquele que nos amou primeiro, que entregou sua vida por amor. Não translademos a outros povos nossa cultura, não imponhamos nossos costumes e nossas leis; não preguemos outra lei a não ser o mandamento do amor, pois muitos a praticam em diferentes formas, iluminados pelo mesmo Espírito que não se deixa prender por uma instituição ou religião.

E batizemos “em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo”: inundemos o mundo do amor da Trindade santa, comunidade de amor que nos faz partícipes de sua vida divina.

Esta é a nossa missão: fazer “seguidores” de Jesus para que conheçam sua mensagem, sintonizem-se com seu projeto, aprendam a viver como Ele e prolonguem hoje a presença d’Ele no mundo. Atividades tão fundamentais como o batismo, compromisso de adesão a Jesus e o ensinamento a observar tudo o que Ele ordenou, são vias para aprender a ser seus discípulos. Jesus nos promete sua presença e ajuda constante. Não estaremos sozinhos nem desamparados.

Assim é a comunidade cristã. A força do Ressuscitado a sustenta com seu Espírito. Tudo está orientado a aprender e ensinar a viver como Jesus e a partir de Jesus. Ele continua vivo em suas comunidades; continua conosco e entre nós curando, perdoando, acolhendo... salvando.

É muito importante a particularidade do ensinamento. Não se trata de ensinar doutrinas, nem ritos, nem normas legais, mas de ativar uma maneira de proceder. Isto está muito de acordo com a insistência dos evangelhos nas obras como manifestação da presença de Deus em Jesus, e como consequência, da adesão a Jesus. Se temos em conta que o núcleo do evangelho é o amor, compreenderemos que na prática, o amor é o primeiro que deve se visibilizar em um cristão.

Parece claro que, na intenção de Jesus, não figurava a ideia de converter todos os povos, nem que todos eles se integrassem na Igreja católica (parece claro também que Ele não pensou em fundar nenhuma instituição religiosa). O que ocupava seu coração era o “Reino de Deus”, um projeto de nova sociedade, caracterizado pela vivência da fraternidade, fundada na experiência prazerosa de perceber Deus como “Abba”. Em certo sentido, poder-se-ia dizer que a mensagem de Jesus é totalmente aberta e inclusiva; nada de suspeitas, moralismos, fundamentalismos ou pretensão de ser “dono da verdade”. O decisivo é o compromisso com a “vida e vida em plenitude”.

Texto bíblicoMt 28,16-20

Na oração:

“Elevar-nos” a Deus implica “descer” ao chão da nossa vida: corpo, razão, sentimentos, afetos, desejos... Nossa interioridade clama por ser “evangelizada”; o apelo de Jesus – “ide e fazei discípulos meus todos os povos” – têm ressonância em nosso próprio interior: somos “habitados” por uma “multidão” que se sente à margem e não foi ainda integrada: perdas, fracassos, crises, vivências não pacificadas, afetos reprimidos, sentimentos feridos, sonhos não realizados...

- Caminhe com o Senhor por esta “terra de missão” do seu coração; abraça espaço para que a boa nova do Evangelho chegue até às raízes mais profundas de sua vida.

sexta-feira, 12 de maio de 2023

Viver na verdade do Espírito de Jesus

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, SJ, como sugestão para rezar o Evangelho do 6º  Domingo da Páscoa (2023 - Ano A). 

“...e Ele vos dará um outro Defensor, para que permaneça sempre convosco: o Espírito da Verdade” 

Jesus está se despedindo de seus discípulos; Ele os vê tristes e abatidos, pois, logo não o terão presente entre eles. Quem poderá preencher este vazio da ausência? Até agora, foi Jesus quem cuidou deles, defendendo-os dos escribas e fariseus, sustentando-os na fé frágil e vacilante deles, ajudando-os a descobrir a verdade de Deus e iniciando-os em seu projeto humanizador.

Nesta conversação Jesus não só verbaliza o que pensa, senão que também expressa o que sente. O grau de auto-revelação e transparência aumenta. Esta longa conversa é uma oportunidade única para os discípulos conhecerem mais profundamente o Mestre; ao mesmo tempo lhes é dado a chance de se conectarem com o significado nem sempre consciente daquilo que Jesus quer dizer.

A conversação deixa, então, transparecer as convicções, os sonhos, os sentimentos... de Jesus. “As palavras me escondem sem cuidado” (Manoel de Barros). Nesta maneira de conversar, Jesus se manifesta tal e como é, verbalizando aspectos de si mesmo muito íntimos e pessoais. A experiência do “nós” revela um significado especial de comunhão e entrega.

Jesus lhes fala apaixonadamente do seu Espírito; não os quer deixar órfãos. Ele mesmo pedirá ao Pai que não os abandone, que lhe dê “outro defensor” para que “esteja sempre com eles”. Jesus o chama “Espírito da verdade”. Que se esconde nestas palavras de Jesus?

Para o quarto evangelho, o Espírito é “outro Paráclito” porque aquelas comunidades do final do século I tem claro que o “primeiro Paráclito” é o próprio Jesus.

O termo grego “Parakletos”, que se costuma traduzir como “Defensor”, significa literalmente “aquele que está ao lado”, para defender, apoiar, consolar, sustentar... Por esse motivo, alguém já insinuou que a tradução mais de acordo seria tanto de “advogado defensor” como de “assistente social”.

Uma coisa é muito clara para o evangelista João. O mundo não vai poder “ver” nem “conhecer” a verdade que se esconde em Jesus. Para muitos, Jesus terá passado por este mundo como se nada tivesse acontecido; não deixará rastro algum em suas vidas. Para conhecer Jesus é preciso ter olhos novos. Só aqueles que o amam poderão experimentar que Ele está vivo, faz viver e chama ao seguimento. “Conhecimento interno para mais amá-lo e segui-lo” (S. Inácio).

Este “Espírito da verdade” não deve ser confundido com doutrina, dogmas... Não se encontra nos livros dos teólogos nem nos documentos do magistério da Igreja. Segundo a promessa de Jesus, “o Espírito permanece junto de nós e está dentro de nós”. Nós o escutamos em nosso interior e resplandece na vida de quem segue os passos de Jesus de maneira humilde, confiada e fiel.

É o “Espírito da verdade” que desperta em nós os sentimentos mais elevados, os desejos mais nobres, os recursos inspiradores... Ele tem a capacidade de fazer sintonizar nosso coração com os sentimentos do coração do próprio Jesus.

Talvez seja esta a conversão que mais precisamos hoje como seguidores (as): passar de uma adesão verbal, rotineira e pouco real a Jesus para a experiência de viver enraizados em seu “Espírito da verdade”. Afinal, somos seguidores de uma Pessoa e não de uma religião ou doutrina.

Este “Espírito da verdade” não nos converte em “proprietários” da verdade; não vem para que imponhamos a outros nossa fé nem para que controlemos sua ortodoxia. Vem para não nos deixar órfãos de Jesus, e nos convida a abrir-nos à sua verdade, escutando, acolhendo e vivendo seu Evangelho.

Este “Espírito da verdade” também não nos faz “guardiães” da verdade, mas testemunhas. Nossa missão não é disputar, combater nem derrotar adversários, mas viver a verdade do Evangelho e “amar a Jesus guardando seus mandamentos”.

O “Espírito da verdade” é Aquele que nos des-vela como verdadeiros; Ele nos sintoniza com a “verdade de Jesus” e faz emergir nossa verdadeira identidade de pessoas originais, únicas, sagradas...

Quem se deixa conduzir pelo “Espírito da verdade” torna-se testemunho da verdade contra todo tipo de calúnias, mentiras, intolerâncias, fanatismos. É extremamente incoerente quem afirma se deixar conduzir pelo Espírito e atua como canal transmissor de “fake-news”, julgamentos preconceituosos...

A “verdade” se expressa assim como “testemunho” de vida interior. Temos ao nosso lado o Grande Testemunho de Deus, que é Jesus. Podemos ser e somos testemunhas de Deus uns para com os outros.

O Deus de Jesus está presente no mais profundo de nosso ser, identificado com nossa essência. Sendo Amor em nós não pode admitir intermediários. Isto não é útil para nenhum poder ou instituição.

Mas esse é o Deus de Jesus. Esse é o Deus que, sendo Espírito, tem como único objetivo conduzir-nos à plenitude da verdade, a sermos verdade, verdadeiros, autênticos. E aqui “Verdade”, ao contrário do que, muitas vezes pensamos, não é conhecimento, mas Vida.

Enquanto haja Espírito há alento e enquanto haja alento há vida. O Espírito é o alento, a respiração do mundo. O Espírito enche a face da terra, penetra até o mais íntimo dos nossos coração.

O Santo Espírito da verdade nos faz respirar, viver, sonhar, amar, criar... O Espírito, no aperto nos dá largueza, na enfermidade nos convida a crer na cura, no caos nos torna criadores.

O Espírito nos foi enviado para que seja o Alento do mundo; Ele é como rios de água viva para que haja vida e vida em abundância; como labaredas de fogo, para que a energia se multiplique e tudo funcione.

“Creio no Espírito Santo, Senhor e doador de vida!”. Esta confissão de fé não é uma mera fórmula teológica. É o testemunho de uma experiência permanente, histórica. Sem o “Espírito de Vida” a trama da história se revela inquietante e deprimente. Sob o olhar do Espírito o diagnóstico é decididamente positivo.

Quando nos deixamos acender com as chamas do Espírito, quando nos deixamos arejar pelo vento impetuoso do Espírito, ou refrescar pelos rios de água viva, experimentamos, em nós e nos demais, um florescimento inusitado de carismas, de dons, que tornam possível o impossível; confiamos mais nos ritmos e tempos de Deus; celebramos a existência de uma fonte de Água Viva que tudo fecunda, um Alento divino que nos faz respirar, um Fogo de Deus que tudo energiza, um Espírito que nos guia para o Paraíso, quando parece que tudo está perdido.

O Espírito Santo é a Respiração do mundo. Tudo vive graças ao Espírito. E quando uma pessoa, cheia do Espírito, morre, não o perde... mas o exala sobre os demais. Jesus ressuscitado exalou o seu Espírito sobre os discípulos. Aqueles(as) que na terra deixaram as marcas do bem, da verdade, da justiça, continuam exalando o Espírito sobre nós.

Queira o Abbá e Jesus conceder-nos, neste dia. a graça de respirar como convém e que, depois de enchermos os pulmões de Espírito, nos tornemos mais verdadeiros e esperançados.


Texto bíblicoJo 14,15-21

Na oração: A Igreja correu o risco de entender a verdade como algo imposto de fora, resolvido e ensinado desde cima. Mas Jesus promete aos seus um magistério interior: os cristãos só conhecem a autoridade do Espírito-Paráclito, que interpreta e atualiza a mensagem do Evangelho.

Corremos o risco do engano, da manipulação de diferentes tipos. Pois bem, se confiarmos no Espírito que vive dentro de nós, teremos a garantia da verdade. Esta é a verdade interna, aquela que ilumina a vida, a partir do interior de Deus, que é nossa luz.

- No silêncio do seu coração, deixe-se ensinar e conduzir pelo Divino Mestre.

quinta-feira, 4 de maio de 2023

CAMINHO-VERDADE-VIDA: três fomes que nos humanizam

 Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, SJ, como sugestão para rezar o Evangelho do 5º  Domingo da Páscoa (2023 - Ano A). 

A conversação de Jesus com os discípulos no evangelho deste domingo faz parte do chamado “discurso de despedida”, antes de sua morte. Quando ela acontece, o clima entre os discípulos era de máxima tensão e de espera incerta do desenlace. No final da última Ceia começam a intuir que Jesus já não estará muito tempo com eles. A saída precipitada de Judas, o anúncio de que Pedro o negará em breve, as palavras de Jesus falando de sua próxima partida, deixaram a todos desconcertados e abatidos.

O que vai acontecer com eles?

Jesus capta a tristeza e a perturbação deles. Seu coração se comove. Esquecendo-se de si mesmo e daquilo que o espera, Jesus procura animá-los: “Que não se perturbe vosso coração; crede em Deus e crede também em mim”. E, no curso dessa conversação, Jesus faz esta confissão: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida. Ninguém vai ao Pai, senão por mim”. Não devem nunca esquecer isso.

É nesse contexto de despedida que Jesus se atreve a dizer “eu sou”, mas não um eu isolado em si (um eu sem Deus, um eu sem os outros), mas um eu aberto ao Pai (um eu-caminho) e dirigido a todos que queiram acolhê-lo (um eu-expansivo, que se faz verdade e vida para todos). O “eu” de Jesus se faz caminho, um caminho para o Pai, um caminho no qual a verdade se revela e a vida se abre.

Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Estamos diante da afirmação mais densa referida à identidade e à essência de Jesus. Não se conhece na história das religiões uma afirmação tão audaz. Jesus se oferece como o caminho que podemos percorrer para entrar no mistério de um Deus Pai. Ele nos faz descobrir o segredo último da existência. Ele pode nos comunicar a vida plena que todo coração humano aspira.

O conceito de “caminho” supõe um destino, o Pai. O conceito de “verdade” pressupõe um conteúdo, o mesmo Jesus. Dos três termos, o único absoluto é “Vida”. Porque possui a Vida, Jesus é verdade e é caminho.

Hoje reina, em quase todos os ambientes, a confusão, a dispersão o medo. Há muitos que buscam um caminho para sobreviver: os imigrantes, os refugiados, os famintos, os que não tem um horizonte de sentido... Outros, em meio a uma solidão de um mundo hiper-conectado, sentem a desorientação da multiplicidade de mensagens portadoras de mentiras e “fake-news”. Outros ainda esvaziam suas vidas investindo no poder, na vaidade, no acúmulo de riquezas...e acabam caindo na maior frustração e vazio interior.

“Eu sou o caminho”. O problema de muitos não é que vivem extraviados ou perdidos. Simplesmente vivem sem direção, envolvidos numa espécie de labirinto: andando e girando por mil caminhos que, a partir de fora, não os levam a lugar nenhum.

E o que pode fazer um homem ou uma mulher quando se encontra sem caminho? A quem dirigir-se? Aonde acudir? Se se aproxima de Jesus o que encontrará não é uma religião, mas um caminho. Às vezes, avançará com fé; outras vezes, encontrará dificuldades; poderá até retroceder, mas está no caminho certo que conduz ao Pai. Esta é a promessa de Jesus.

Jesus não diz “eu sou o templo, o edifício, a plataforma, o porto”. Diz “eu sou o caminho”. É como dizer: “eu sou a maneira de andar, de dirigir-se ao horizonte, de navegar”. Ele não é um ser-refúgio entre nuvens, mas que “se faz caminho ao andar”, vive inserido na realidade do dia a dia, presente nos sonhos, nos problemas e desafios dos seus seguidores.

“Eu sou a verdade”. Estas palavras soam como convite escandaloso aos ouvidos pós-modernos. Nem tudo se reduz à razão. A teoria científica não contém toda a verdade. O mistério último da realidade não se deixa prender pelas análises mais sofisticadas. O ser humano é chamado a viver diante do mistério último da realidade.

“Verdade” que não se reduz a teorias, a dogmas, doutrinas..., mas transparência da nossa essência, do nosso ser verdadeiro. Jesus não diz: “eu tenho a verdade”, mas, “eu sou a verdade”, “sou verdadeiro”, coerente com o seu modo de ser e viver.

“Eu sou a vida”. Jesus pode transformar nossa vida. Não como o mestre distante que deixou um legado de sabedoria admirável à humanidade, mas como alguém vivo que, a partir do mais profundo de nosso ser, nos infunde um germe de vida nova.

Esta ação de Jesus em nós acontece quase sempre de forma discreta e silenciosa. O seguidor d’Ele só intui uma presença imperceptível. Às vezes, no entanto, nos invade a certeza, a alegria transbordante, a confiança total: Deus existe, nos ama, tudo é possível, inclusive a vida eterna.

Nunca entenderemos a fé cristã se não acolhemos Jesus como o Caminho, a Verdade e a Vida.

 

Caminho, Verdade e Vida: três grandes “fomes humanizadoras”; elas apontam para o sentido da nossa existência; expressam as três grandes buscas do ser humano. Três dimensões que nos fazem mais humanos. Não são necessidades periféricas, imediatas. Jesus se apresenta como resposta a estas buscas.

O ser humano é ser de travessia: é peregrino por natureza, busca um horizonte, desloca-se em direção a uma plenitude. Jesus se faz o centro deste Caminho.

Ali onde alguém faz o caminho como Jesus fez (peregrino entre os mais pobres e excluídos) está deixando transparecer em sua vida o rosto do Pai. Por isso, quem o vê, quem vive como Ele (em amor aberto à vida) vê o Pai da vida. Trata-se de “ver a Jesus” (esta é a experiência pascal), de vernos caminhando com Ele, assumindo Sua verdade, vivendo na dinâmica de Sua vida.

Nós somos a verdade, em um nós aberto, como Jesus, aberto a todos os que vão e vem, de um modo especial os mais pobres, os excluídos de todos os sistemas de “verdade” do mundo. Somos “verdade” na medida que somos verdadeiros, transparentes, sem segundas intenções...

O ser humano aspira vida plena; Jesus viveu intensamente; “morreu de tanto viver” – vida expansiva, voltada para os outros, compromisso com a vida. Plenificação de todas as dimensões da vida: corporal, afetiva, social, intelectual, religiosa...

Ser seguidor (a) de Jesus é fixar o olhar n’Ele, pois Ele é o centro do nosso caminho; ao caminhar com Ele, vamos nos revelando e a partir d’Ele vamos descobrindo nosso ser verdadeiro (que nos abre para acolher a verdade presente em cada ser humano – verdade que vai além das verdades religiosas, políticas, racionais).

Quem se descobre verdadeiro e sem máscara, vive profundamente, alarga sua vida a serviço dos sem-vida. Esta é a via da humanização; e quanto mais nos humanizamos, mais nos divinizamos.

Por isso, Jesus, o homem radical, deixa transparecer o rosto do Pai: “quem me vê, vê o Pai”.

Esta nossa busca começa no retorno ao interior, onde o Senhor nos habita e nos move.

Podemos então afirmar que a busca de Deus e o encontro com Ele, a partir de Sua iniciativa, coincidem com a busca e o encontro de nós mesmos; buscar a Deus consiste, de algum modo, em buscar-nos a nós mesmos, isto é, o mais profundo e autêntico de nós, fruto da iniciativa criadora e amorosa do Senhor; trata-se daquele lugar e daquela direção profunda de nossa vida pessoal onde desvelamos a ação do Espírito que atua em nós.

Viver a partir de dentro: Deus habita no mais profundo de nós mesmos e realiza sua obra fazendo-nos nós mesmos, fazendo-nos pessoas únicas, originais, sagradas...

No nosso eu mais profundo habita o Espírito que, como “Senhor e doador da Vida”, configura nossa existência. Aqui se manifesta a ação personalizadora de Deus; este mesmo Deus nos individualiza de maneira totalmente original e irrepetível.

Podemos entrar “em nossa morada interior” porque ali se encontra a dimensão de eternidade que nos faz peregrinos, transparentes de nosso ser verdadeiro e famintos de vida plena.


Texto bíblico
: Jo 14,1-12

Na oração:

Como cristãos, a maior frustração é ter pouco ou nada a oferecer ao mundo de hoje, pouco ou nada que justifique nossa existência como seguidores(as) d’Aquele que se revelou como “Caminho-Verdade-Vida”.

- Estas são as “fomes existenciais” presentes no seu interior?