terça-feira, 28 de junho de 2022

PEDRO e PAULO: duas colunas e uma Pedra angular

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, SJ como sugestão para rezar o Evangelho da Solenidade de São Pedro e São Paulo, Apóstolos (2022).

“Quem dizem os homens ser o Filho do Homem?” (Mt 16,13) 

O evangelho indicado para a festa de S. Pedro e S. Paulo nos situa diante de uma pergunta provocativa de Jesus: “e vós quem dizeis que eu sou”. Tal pergunta, dirigida aos discípulos e a cada um de nós, não só ajuda a des-velar (tirar o véu) a verdadeira identidade de Jesus como também nossa identidade original.

Pedro, ao responder – “Tu és o Messias...” – no fundo, estava também deixando transparecer sua própria nobreza interior, aquilo que é o fundamento e sobre a qual se pode construir toda uma vida.

E Jesus, como verdadeiro “pedagogo”, explicita o que estava escondido nas profundezas do coração de Pedro. “Tu és “petra” (rocha, base sólida)”. Essa é a verdadeira identidade de Pedro. Ressoa no interior de cada um de nós esta mesma voz: “Tu és rocha...”

O coração de cada um está habitado de sonhos de vida, de futuro, de projetos; sente-se seduzido pelo que é verdadeiro, bom e belo; busca ardentemente a pacificação, a unificação interior, a harmonia com tudo e com todos...; sente ressoar o chamado da verdade, o magnetismo do amor, da plenitude; sente-se atraído por um desejo irreprimível de auto-transcendência, de crescimento, de maturidade.

Só a partir da vivência e da solidez interior poderemos descobrir o que significa Jesus como “Messias, o Filho do Deus vivo”. Só a partir da identificação com Ele é que poderemos também descobrir nossa original filiação, fundamento de nossa vida: “somos filhos e filhas do Deus vivo”.

A filiação é a solidez que nos unifica a todos; ela é a base que sustenta nossa identificação com Jesus Cristo.

Não é fácil tentar responder com sinceridade à pergunta de Jesus: “Quem dizeis que eu sou?”. Na realidade, “quem é Jesus para nós?” Sua pessoa, seu modo original de ser e viver, chega a nós através de vinte séculos de imagens, fórmulas, devoções, experiências, interpretações culturais... que vão desvelando e velando ao mesmo tempo sua riqueza insondável.

Mas, além disso, cada um de nós vai revestindo a Jesus com aquilo que nós somos. E acabamos projetando n’Ele nossos desejos, aspirações, interesses e limitações. E, quase sem nos dar conta, O apequenamos e O desfiguramos, mesmo quando queremos exaltá-lo.

Mas Jesus continua vivo e sua presença, na história da humanidade, sempre se revela provocativa e surpreendente. Na realidade, o que notamos é que grande parte dos cristãos não seguem e não se identificam com a Pessoa de Jesus; seguem doutrinas, ritos, algumas obrigações legais... que não tem impacto no modo de viver de cada um.

Mas Jesus não se deixa etiquetar nem se deixa reduzir a alguns ritos, algumas fórmulas ou alguns costumes. Jesus sempre desconcerta a quem se aproxima d’Ele com atitude aberta e sincera. Ele se revela sempre diferente daquilo que pensamos e esperamos. Sempre abre novas brechas em nossa vida, rompe nossos esquemas e nos atrai a uma vida nova. Quanto mais O conhecemos, mais sabemos que ainda estamos começando a descobri-lo.

Responder à pergunta - “quem dizeis que eu sou?”é “perigoso” porque nos compromete com o modo de viver de Jesus: sua liberdade perante as tradições religiosas, sua relação com os mais pobres, sua opção clara em favor de uma causa humanizadora (Reino), a vivência dos valores presentes nas Bem-aventuranças, a visibilização do mandamento do Amor...

Literalmente falando, Jesus é um “subversivo”, pois sub-verte nosso modo fechado de viver e de nos relacionar com os outros. Percebemos nele uma entrega livre que desmascara nosso egoísmo; Ele revela uma paixão pela justiça que sacode nossas seguranças, privilégios e busca de poder; transparece n’Ele uma ternura que deixa descoberto nossa mesquinhez, uma liberdade que põe às claras nossos apegos e dependências.

E, sobretudo, vemos n’Ele um mistério de abertura, proximidade e intimidade com o Deus da Vida, que nos atrai e nos convida também a abrir nossa existência à intimidade com Ele.

Só iremos conhecendo Jesus na medida em que nos identificamos com Ele e nos revestimos de seus sentimentos, valores, critérios... Só há um caminho para aprofundar em seu mistério: segui-Lo; seguir humildemente seus passos, abrir-nos com Ele ao Pai, prolongar seus gestos de amor e ternura para com todos, olhar a vida com seus olhos, compartilhar sua fidelidade à causa do Reino...

São Pedro e São Paulo viveram, por caminhos diferentes, um original encontro com o Mestre da Galileia. Encontro que des-velou e extraiu o que havia de mais nobre e humano no coração de cada um deles (“tu és rocha” – “tu és Paulo”). Foi esta solidez interior, que se visibilizou na maneira original de cada um seguir Jesus Cristo, que os transformou em colunas da Nova Comunidade dos seguidores do Nazareno.

A eles foi conferida uma “autoridade” como caminho para o serviço e a promoção da vida.

Jesus compartilha com eles sua mesma “autoridade” que não tem nada a ver com o poder que domina ou a liderança que se impõe. Jesus tem “autoridade” porque o “centro” está no outro; Ele veio para servir.

A expressão “autoridade” vem do verbo latino “augere”, que significa literalmente: aumentar, acrescentar, fazer crescer, dar vigor, robustecer, sustentar, elevar, levantar o outro, colocá-lo de pé, impulsioná-lo para frente... É a qualidade, a virtude e a força que serve para apoiar, para alentar, para ajudar as pessoas a serem elas mesmas, para fazê-las crescer, desenvolvendo suas próprias potencialidades.

“Autoridade” significa recuperar a autoria, ativar a autonomia àquele que está impedido de optar e de fazer seu caminho. Nesse sentido, a autoridade nunca é perigosa para a pessoa, jamais é imposição ou atentado contra sua legítima autonomia ou liberdade. A autoridade é essencialmente amor.

Também o exercício da autoridade deve ser medido pela palavra e pela obra de Jesus Cristo. E não pode ser de outra maneira, já que, se a origem da autoridade na Igreja é divina, também deveria ser “divina” o modo de exercê-la. Se toda autoridade provém de Jesus, deveria ser exercida à maneira como Jesus a exerceu, e isto vale tanto para aqueles que detém uma autoridade instituída como para aqueles que, devido às suas qualidades e carismas, exercem, de fato, autoridade de serviço nas comunidades cristãs.

Neste “como” se exerce e deve ser exercida a autoridade na Igreja está o desafio que as comunidades cristãs devem assumir.

O Evangelho de hoje é claro quanto à maneira como se deve exercer a autoridade: a partir do serviço. Aquele que serve não domina, convertendo-se no centro, mas anima e integra o diferente. Aquele que serve, despoja-se de seus interesses privados e investe sua vida em benefício de todos.

Isto significa que todos aqueles que exercem a autoridade hão de voltar sempre ao manancial de onde brota o autêntico ser da Igreja, que é a palavra e a ação de Jesus. Não deve existir autoridade na Igreja que esteja por cima da ação do Espírito; ela não deve buscar outra coisa a não ser a vinculação de todos os membros da Igreja no amor e no serviço mútuo. Uma autoridade que se desvincula do “carisma de autoridade” do Espírito tende sempre a converter a instituição em um fim, esquecendo que só pode ser justificada na medida em que serve à obra do Espírito.

Texto bíblico: Mt 16,13-19

Na oração:

Suplicar a graça “do conhecimento interno de Jesus para mais amá-lo e mais segui-lo” (Santo Inácio de Loyola).

“Conhecimento” que faz emergir aquilo que é o melhor em seu interior, a verdade da sua pessoa, para que você consiga ter uma visão ampla de si mesmo(a) e realizar-se da melhor maneira possível, ativando suas potencialidades. Cada um(a) é diferente, único(a), com saberes, expectativas, medos, ansiedades e desejos, pontos fortes e fraquezas, com seu ritmo e modos próprios de viver...

- Deixe ressoar em seu coração a voz de Jesus: “Tu és rocha firme, sobre a qual quero construir minha morada, em comunhão com o Pai e o Espírito Santo”.

terça-feira, 21 de junho de 2022

A covardia do “meio-termo”

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 13º. Domingo do Tempo Comum (Ano C).

“Quem põe a mão no arado e olha para trás, não está apto para o Reino de Deus” (Lc 9,62)

 

Jesus é muito claro quando se refere à radicalidade no seu seguimento. “Ninguém pode ser meu discípulo se antes não renunciar a tudo o que possui!” (Lc.14,33). Trata-se de uma atitude, uma postura, uma entrega.

E a palavra é “tudo”. O discípulo pela metade não pode ser discípulo. Jesus, ao associar seguidores à sua missão, pede sinceridade na vontade e verdade no coração. Não servem as entregas pela metade. Ele não se contenta com “amor a prestações”, com retalhos de vida.

A entrega parcial não é entrega. O “apego” a algo ou alguém esvazia a afeição à pessoa de Jesus, travando a entrega e tornando impossível que a relação com Ele cresça, se desenvolva e encha nossa vida de sentido. A entrega total, pelo contrário, traz à luz todos os nossos recursos, desperta nossas potencialidades e incendeia nossa fé.

Esta é a atitude genuína e verdadeira diante da vida. Esta determinação é a que abre caminho, avança e ativa a criatividade. Ficar com “alguma coisa” daquilo que Ele pede, fazer as coisas pela “metade”, adiar, regatear, dissimular... é impedir a livre ação da Graça do Pai em nosso interior.

A decisão autêntica é clara, completa e definitiva. Com “meias-tintas” não se escreve bem.

O evangelista Lucas des-vela esse jogo do “meio-termo” no relato deste domingo. Duas pessoas manifestam o desejo de seguir Jesus e uma terceira é chamada pelo próprio Jesus. Mas, há algo em comum entre elas: as três apresentam “condiçõespara fazer o caminho do seguimento.

 Dizer “condição” equivale a dizer “não”, mantendo as aparências; é continuar apegado às “mediações” (bens, família, pai) sem investir afetivamente no Reino. É medo de avançar, de arriscar, de ousar...

A resposta do meio-termo pode, de fato, causar mais prejuízo do que a negativa sincera, porque uma negativa clara pode um dia levar ao arrependimento e à reconciliação; ao passo que o adiamento cortês, apesar de ser negativa absoluta, cria a impressão de ser um gesto aceitável e embota a consciência.

O auto-engano do “SIM”, mas “NÃO” desemboca na mediocridade, no fazer as coisas pela metade... é a funesta arte do regateio. E a mediocridade não tem lugar no caminho do seguimento de Jesus.

“Conheço tua conduta: não és frio nem quente. Oxalá fosses frio ou quente! Assim, porque és morno, nem frio nem quente, estou para te vomitar de minha boca” (Ap 3,l5)

O medo de perder “algo” ou “alguém” no futuro atrapalha viver intensamente o presente. Quantos “pesos mortos” arrastamos em nossa vida, com recordações, lembranças, apegos, afetos desordenados...!

O desejo de possuir confunde nossa vida. E já não se trata mais de uma lição moral sobre o vício ou a virtude, mas do impacto psicológico que produz em nosso comportamento o fato de nos sentirmos apegados a algo ou a alguém, com a consequente perda de liberdade e o perigo da dependência que esse apego causa. O apego às coisas e às pessoas impede-nos de mover com facilidade. Perdemos o “fluxo” da vida, o impulso do movimento, a suavidade do “deslizar pela existência”.

“Diga-me o tamanho dos seus apegos, e eu lhe direi o tamanho do seu sofrimento”.

Para desmascarar nossas justificativas e racionalizações referentes aos nossos apegos, Jesus não contou apenas parábolas; muitas das suas expressões são também enigmáticas e impactantes. Mas é justamente esse modo de falar de Jesus que possui efeito provocativo e surpreendente.

Ao dizer - “deixem que os mortos enterrem os seus mortos” -, Ele nos faz entrar em contato com tudo aquilo que está morto em nós mesmos: tudo que não significa vida, com a rotina repetitiva do nosso dia a dia, com o vazio interior, com as coisas estagnadas da nossa existência.

Com sua linguagem radical, Jesus nos permite chamar as coisas pelo que são e declará-las mortas. Ele convida a nos afastar das coisas que não mais nos dizem respeito e que exigem um alto investimento afetivo. Muitas “aderências afetivas” – bens, posses, pessoas, lugares, poder, vaidade, segurança material – não estão ligadas à nossa vida verdadeira, impedindo-nos de nos concentrar na causa do Reino de Deus e no seu anúncio.

Sabemos que uma das características mais originais do ser humano é a capacidade de assumir compromissos. Comprometer é empenhar-se radicalmente, é arriscar-se num projeto ousado, é envolver-se numa causa inovadora. No compromisso, joga-se a própria vida. Em Jesus Cristo, a pessoa encontra a realização da empresa mais nobre e a garantia de poder entregar-se a ela sem se enganar.

O ato de decidir é o mais nobre e profundo de todos os atos do ser humano, a própria definição da pessoa e a expressão última de sua dignidade. E precisamente porque é nobre e profundo, definindo a identidade de cada pessoa, decidir torna-se difícil e penoso. Por isso sua reação instintiva ao enfrentar uma decisão é tratar de evitá-la, dissimulá-la, adiá-la.

Custa decidir porque lhe custa definir. Muitos pertencem à “confraria do último dia”.

Chegamos à pós-modernidade com enorme carga de medo; medo cruel que alcança todo mundo, medo que afeta os corajosos e agride os ousados: medo de comprometer-se, medo de definir-se, medo de equivocar-se, medo de enfrentar, medo de ter de agir, medo de fazer opções, medo da própria missão...

O medo corrói as fibras humanas, asfixia talentos, esvazia a vida e mata a criatividade.

O medo encolhe o ser humano, inibe a decisão e bloqueia os movimentos em direção ao “mais”.

O medo cega os canais do discernimento, imobiliza o mecanismo das decisões.

Quem teme não pode decidir bem. Sob a influência do medo, o olhar, o pulso, o equilíbrio deixam de ser o que deveriam ser e de agir como deveria agir. O ambiente se turva e a eleição se frustra.

Para desenvolver ao máximo nossas potencialidades, temos de enfrentar dilemas, encruzilhadas, perplexidades e responsabilidades. Isto nos faz descer ao chão da vida, despertar nossas energias, encontrar a nós mesmos.

Seguir Jesus Cristo é aderir a Ele incondicionalmente, é “entrar” no seu caminho, recriá-lo a cada momento e percorrê-lo até o fim. Seguir é deixar-se con-figurar, movimento pelo qual a pessoa vai sendo modelada à imagem de Jesus.

O seguimento de Jesus Cristo pressupõe uma pessoa capaz de sair de si mesma, de des-centrar, com coragem de arriscar. Sem se abrir ao “magis”, que habita o coração humano, não haverá desejos de identificação com o Peregrino da Galileia.

Diante do Cristo que chama, a pessoa sente-se pro-vocada, chamada a superar-se, desafiada a arriscar e a ser “mais”. É preciso sonhar alto, ter ideais, ser uma pessoa corajosa e marcada pela esperança para poder “escutar” o apelo de Cristo; é preciso ser apaixonado, deixar-se empolgar, aceitar correr riscos na vida para saber o que significa o “comigo” de Cristo; é indispensável uma enorme generosidade para se dedicar incondicionalmente a uma grande causa; é preciso forte dose de ousadia e coragem para transcender-se, ir além de si mesmo...


Texto bíblico: Lc 9,51-62

Na oração:

Temos muitas atitudes, posses, ideias, cargos, posições, bens... que consideramos como Vontade de Deus; na realidade é tudo “projeção” de nossos desejos atrofiados; é tudo manifestação de nossos “afetos desordenados”.

- No seguimento de Jesus, o que prevalece em sua vida? Adesão incondicional à pessoa d’Ele ou seguimento sob condições? Que “apegos” travam sua vida, exigindo um alto investimento afetivo?

- Que paixão move sua vida? Seu coração está livre?... 

quarta-feira, 15 de junho de 2022

Fidelidade no Seguimento de Jesus

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 12º. Domingo do Tempo Comum (Ano C).

“...quem perder a sua vida por causa de mim, esse a salvará” (Lc 9,24)

Depois do percurso quaresmal e pascal, a liturgia nos situa novamente no chamado “Tempo Comum”; trata-se de um percurso contemplativo que nos convoca a fazer caminho com Jesus, realizando sua missão e preparando a comunidade dos seus seguidores. Tendo os olhos fixos n’Ele, viveremos uma longa aprendizagem, deixando que o Mestre da Galileia faça emergir o que é mais nobre e humano de nosso interior. Tempo de seguimento e identificação com Aquele que foi “humano” na sua radicalidade.

No evangelho deste domingo, Jesus deixa claro, para todos nós, o preço do seguimento. Responder à pergunta – “quem dizeis que eu sou? – implica identificação com seu modo de ser e viver. Sua proposta de vida, sua liberdade diante das leis e tradições, seu compromisso com os últimos, sua relação com o Pai... vão provocar conflitos com aqueles que estão “petrificados” em seu modo de viver. E aqueles(as) que se identificam com Ele também vão encontrar oposições, incompreensão e perseguições.

Por isso, ao convidar seus discípulos e discipulas a segui-lo, foi taxativo: “Se alguém me quer seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz cada dia, e siga-me”

Que significa “renunciar a si mesmo” - “tomar a cruz de cada dia”? Será que ele veio “complicar” nossa vida com mais peso, mortificação, sofrimento...? Esta afirmação de Jesus parece estar em contradição com outra afirmação encontrada em Mateus: “Vinde a mim, todos vós que estais cansados e carregados de fardos, e eu vos darei descanso”. “Pois o meu jugo é suave e o meu fardo é leve” (Mt 11,28-30).

Na vida e missão de Jesus encontramos duas grandes paixões: a primeira, é a paixão pela vida, pelo Reino, pelo compromisso em favor dos mais pobres e excluídos. Em sintonia com o Pai, esta paixão é expressão de uma opção, assumida fielmente por Jesus até o fim.

A segunda paixão é a da “cruz”, imposta pelos poderes religiosos e civis. É a cruz patíbulo, instrumento de tortura, imposta pelos romanos àqueles que ousavam contrariar seu domínio. Ela não é fruto da opção de Jesus e nem do plano do Pai. É a visibilização da violência, do ódio, do fechamento frente à proposta de vida revelada por Jesus.

No grego, “cruz” é “staurós” e significa: prontidão, estar preparado, mobilizado, firme, sólido, estar de pé, ser fiel até o fim...

Jesus não buscou a cruz do sofrimento, o patíbulo, a morte violenta... Ele buscou o “staurós”, ou seja, a cruz da fidelidade, da vida comprometida. Nesse sentido, a “staurós-cruz” é vida aberta, expansiva, oblativa, vida descentrada em favor dos outros. Ela não é um evento, mas um modo de viver, pois perpassa toda a vida de Jesus. “Cruz-staurós” é vivida a partir de uma causa: o Reino.

Assim entendemos a afirmação de Jesus no evangelho deste domingo: “Se alguém quer vir após mim, renuncie a si mesmo, tome sua ‘cruz-staurós’ cada dia e siga-me” (Lc 9,23). Significa esvaziamento do próprio “ego” para viver em sintonia com os outros, sobretudo com os mais sofredores.

Infelizmente, a história da espiritualidade confundiu “cruz-patíbulo” com “cruz-staurós” e acabou gerando uma espiritualidade do sofrimento, da mortificação, da penitência... como se isso fosse agradável a Deus.

Privilegiou-se a “cruz da dor” desligada da “cruz da vida”, do compromisso com o Reino. Tudo isso desembocou numa vivência cristã intimista, farisaica, descompromissada...

Sabemos que o(a) seguidor(a) de Jesus, quando vive a fidelidade à “cruz-staurós”, por causa do Reino, pode encontrar a perseguição, oposição e morte, como o próprio Jesus. Mas Jesus assumiu também a “cruz-patíbulo” e revelou sua máxima solidariedade com todos os crucificados da história. Por isso, esta “cruz” assumida é também visibilização da salvação.

Nesse sentido, a cruz de Jesus e dos seus seguidores não é um “peso morto”; ela tem sentido porque é consequência de uma opção radical em favor do Reino e da vida. Assim, a cruz não significou passividade e resignação; ela concentrou, radicalizou e condensou o significado de uma vida vivida por Jesus na fidelidade ao Pai, que quer que todos vivam intensamente.  

“Jesus morreu de vida”: de bondade e de esperança lúcida, de solidariedade alegre, de compaixão ousada, de liberdade arriscada, de proximidade curadora...

Tanta radicalidade nos surpreende. De fato, hoje, em nossa sociedade, escutamos expressões totalmente contrárias: “cuide-se”, “seja você mesmo”, “aproveite a vida”, “seja o primeiro” ...

São expressões de uma vida centrada no próprio “ego”, ou, “ego-latria”. Tal idolatria reside no próprio interior. O coração humano é uma fábrica de ídolos; há ídolos internos que emergem e que desumanizam, pois rompem todo vínculo e quebram toda relação.

Jesus, em seu convite ao seguimento, nos pediu a “renúncia” de um ídolo especialmente perigoso e sutil: nosso “ego”. Exigiu-nos esquecer dele, negá-lo, não lhe prestar culto, não nos colocar a seu serviço...

Nosso ídolo interior, nosso “ego”, exige culto, sacrifícios, seguidores que lhe sirvam. Por isso, nos agrada que nos louvem, que nos coloquem num pedestal, que nos incensem.

Mas, quando alguém entra no fluxo desta falsa “liturgia”, brotam, imediatamente o veneno do desprezo, da do ódio, da violência, do autoritarismo...

Quando Jesus propõe “renunciar a si mesmo”, na realidade está dizendo: “renuncie a si mesmo como ídolo!”. Ele desmascara essa tendência diabólica que nos habita. Quantas vezes nos surpreendemos sendo nós mesmos nossa principal preocupação! Frequentemente nos tornamos o centro, fazendo que tudo gire em torno ao nosso próprio “ego”. Habituamos a nos aproximar das pessoas que nos agradam, que nos bajulam, que compartilham nossos apegos desordenados, que nos dão a razão em tudo, que engordam nosso “ego”.

A partir de nossa ego-latria, vamos criando e alimentando muitos outros ídolos externos, que minam as nossas forças, matam nossa criatividade e esvaziam todo espírito solidário: a busca do poder, da riqueza, da fama, da conquista... Tudo isso nos faz entrar no círculo de morte e destruição de nós mesmos.

A destruição dos ídolos começa por nós mesmos, esvaziando o ídolo de nosso ego. “Renunciar a si mesmo” não é renunciar o que é mais belo que temos recebido: uma personalidade com características únicas, uma liberdade admirável com capacidade criativa, um espírito compassivo e solidário, uma capacidade de relação gratuita... O que Jesus pretende é tirar nosso “ego” de seu recinto individualista e nos situar no amplo espaço do Reino de Deus. Podemos expressar isso numa linguagem tomada da ciência ecológica: Jesus nos chama a abandonar nosso “ego-sistema” para transladar-nos ao “eco-sistema” de seu Reino.

A identificação com Jesus no seu seguimento requer assumir um processo de “morte” e levar a “cruz-staurós” até o fim. É preciso que morra em nós aquilo que não tem futuro, que não é vida, que não é felicidade... O “ego” é pura ilusão, é só uma ficção ou, como dizia Einstein, “uma ilusão ótica da consciência”. Quando ele determina nossa vida, caímos no vazio, pois ele não tem em que se sustentar.

A renúncia à “egolatria” não é uma desgraça ou destruição de si mesmo; pelo contrário, é a oportunidade privilegiada para deixar emergir do nosso “eu original” os recursos mais nobres, as potencialidades de vida que não tiveram chance de se expressar, as beatitudes mais profundas que dão sentido e sabor ao nosso viver. Não se trata de massacrar uma dimensão de nosso ser para salvar outra; trata-se de descobrir uma falha na percepção de nós mesmos; ou seja, com frequência cremos ser aquilo que não somos e vivemos enganados. Trata-se de nos libertar de tudo aquilo que nos ata ao caduco e nos impede elevar-nos à plenitude que nosso verdadeiro ser exige. Este é o caminho da vida que se faz doação, presença, compromisso... vida na fidelidade até o fim.

Texto bíblico: Lc 9,18-24

Na oração:

Entendemos por medíocre aquele(a) que renunciou a viver em profundidade; perdeu o elán vital e por isso a capacidade de entusiasmar-se pela vida, de lançar-se, de expandir-se. O realista medíocre fica satisfeito com sua vida, mas “cheira a morte”.

A “mediocridade” não tem lugar no caminho do Reino; o seguimento de Jesus não é para “medíocres”, mas para os(as) ousados(as), aqueles(as) que arriscam, que alimentam a capacidade de criar e inovar.

- Sua vida: determinada pela mediocridade do “ego” ou pela maneira inspirada de Jesus viver?

Oração: Meu corpo é Comida

Meu corpo é Comida
De Dom Pedro Casaldáliga

Minhas mãos, essas mãos, Tuas mãos
fazemos este Gesto, partilhada
a mesa e o destino, como irmãos.
As vidas em Tua morte e em Tua vida.

Unidos no pão os muitos grãos,
iremos aprendendo a ser a unida
Cidade de Deus, Cidade
dos humanos.
Comendo-te, saberemos ser comida.

O vinho de suas veias nos provoca.
O pão que eles não tem nos
convoca
a ser Contigo o pão de cada dia.

Chamados pela luz de tua memória,
marchamos ao Reino fazendo
História.
Fraterna e subversiva Eucaristia.




CORPUS CHRISTI: é mais cômodo adorar a Jesus que segui-lo

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, SJ, como sugestão para rezar o Evangelho da Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo (Corpus Christi).

“Dai-lhes vós mesmos de comer” (Lc 9,13) 

Celebramos o “Corpus Christi”, uma das festas mais ricas por seu conteúdo e simbolismo, mas que nos faz pensar também no “Corpo de Cristo” no meio de tantos outros corpos.

Aceitamos, pela fé, a presença real de Cristo na Eucaristia; isso implica comunhão bem maior com sua vida, seu testemunho de amor, de partilha, solidariedade, dedicação pela transformação de tudo aquilo que não dignifica a vida ou não dignifica os “corpos”. Comungamos o “Corpo de Cristo” para podermos viver o seguimento com mais radicalidade.  

Infelizmente, o que temos observado é que grande parte dos cristãos não seguem uma Pessoa (Jesus Cristo), mas se limitam a cumprir alguns ritos, leis, práticas devocionais e piedosas... que revelam uma espiritualidade intimista, alienante e distante do compromisso com os outros.

Participamos, com muita fé, dedicação e respeito, das celebrações do “Corpo de Cristo”, mas pode ser que, às vezes, façamos uma profunda cisão ou ruptura entre o que celebramos e a realidade que nos cerca, ou seja, o compromisso com os “corpos” explorados, manipulados, usados, escravizados...

Pode ser que, às vezes, tenhamos um profundo amor e respeito ao “Corpo de Cristo vivo e presente na Eucaristia”, e não O vejamos nos “corpos” que estão aí, aqui, ali, lá, por todos os lados...

Certamente, nunca passou pela cabeça de Jesus pedir que os seus(suas) seguidores(as) se pusessem de joelhos diante d’Ele. Ele, sim, se ajoelhou diante de seus discípulos para lhes lavar os pés; e, ao terminar essa tarefa de servos, lhes disse: “Se eu, o Mestre e Senhor, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns aos outros”. Essa lição, ousada e provocativa, parece que nunca nos interessou. É mais cômodo transformá-Lo em objeto de adoração do que seguí-Lo no serviço, na disponibilidade e na entrega aos demais.

Todas as demonstrações de respeito e veneração diante do Corpo de Cristo tem seu sentido e significado. Mas, ajoelhar-nos diante do Santíssimo Sacramento e continuar menosprezando ou ignorando o próximo, é uma ofensa. Se, em nossa vida, não deixamos transparecer a atitude de Jesus, todos os gestos de adoração continuarão sendo “magia barata” para tranquilizar nossas consciências. É preciso descobrir a presença de Jesus em todos os corpos desfigurados, famintos, violentados, desprezados..., e que suplicam por uma presença servidora e solidária. Diante destes corpos desumanizados, morada do Ressuscitado, é que devemos nos ajoelhar para facilitar a ajuda e o serviço. Ninguém pode servir a partir de uma posição elevada; é preciso “descer”, esvaziar-nos de nosso ego prepotente, para prolongar as mãos e o coração do Compassivo.

“Corpus Christi” nos fala, portanto, da “Encarnação continuada”, ou seja, Deus não só se “encarna”, Ele é Encarnação. A Encarnação não é um ato pontual, ou um evento isolado da história, mas uma atitude eterna de Deus. Toda a Criação e toda a Humanidade foram assumidas por este “mistério” fundante de nossa fé. Assim, toda a história humana se faz História da Salvação. E o “assim novamente encarnado” (S. Inácio) se visibiliza em todos os “corpos” humanos. “Todas as vezes que fizestes isso a um destes mais pequeninos, que são meus irmãos, foi a mim que o fizestes!” (Mt 25,40)

Ao comungar o “Corpo de Jesus”, nosso corpo e todo nosso ser tocam algo do mistério da Encarnação. A comunhão é – ou deveria ser – uma sacudida pessoal e comunitária que nos impulsiona a retomar o projeto vital de Jesus, do qual nos afastamos continuamente.

Na Eucaristia se concentra toda a mensagem de Jesus, que é o Amor. O Amor que é Deus manifestado no dom de si mesmo e que Jesus deixou transparecer durante sua vida. Ao dizer, “isto é o meu corpo”, Jesus está afirmando: Isto sou eu: Dom total, Amor total, sem limites.

Ao comer o pão e beber o vinho consagrados, queremos afirmar: fazemos nossa a Sua vida e nos comprometemos a nos identificar com o que foi e fez Jesus. O pão que nos dá a Vida não é apenas o pão que comemos, mas o pão no qual nos transformamos, quando fazemos de nossa vida uma doação contínua. Somos cristãos, não só quando comemos o pão, mas quando nos deixamos consumir, como Ele fez.

Discípulos(as) de Jesus somos quando aprendemos a partir o pão. Reconhecemos os cristãos hoje quando partem o pão e não o retém para si. O pão armazenado, como o maná no deserto, se corrompe, apodrece.

Compartilhar significa não “monopolizar”, não permitir que haja necessitados entre nós.

O pão partido é a vida compartilhada: bens, dons, tempo, qualidades...

O cristão, além disso, compartilha seus ideais, seu entusiasmo, seu ânimo, sua fé, sua esperança.

Também hoje Jesus precisa de nossas mãos para multiplicar os grãos; precisa de nossas mãos para triturar esses grãos, amassar a farinha e fazer o pão. E precisa de nosso coração para que o pão seja repartido.

O pão sem coração é pão “monopolizado”. Pão indigesto, que engorda o egoísmo.

O pão sem coração gera divisões e conflitos. Quantas guerras fraticidas provoca o pão sem coração!

Deus precisa de nosso coração para que o pão leve o sinal da fraternidade, seja vitamina de solidariedade, alimento de comunhão, energia de vida.

Por fim, é preciso enfatizar que, celebrar e venerar o “Corpo de Cristo” nos remete ao nosso corpo e ao corpo dos outros. Nossos corpos estão integrados e dignificados no Grande Corpo Cósmico d’Aquele que se esvaziou dos atributos divinos para se fazer “Corpo” e “divinizar” nossos corpos.

Integrados ao “Corpo do Ressuscitado” somos chamados a superar toda suspeita, medo, julgamentos moralistas e visões dualistas dos nossos corpos. Afinal, não “temos” corpo, “somos corpo”; pensamos, amamos, sentimos e entramos em relação com o Transcendente através de nosso corpo.

Enchemo-nos de assombro diante do mistério que é cada corpo. Nossos esquemas e dualismos de matéria-espírito, espaço-tempo, passado-futuro, longe-perto, parecem diluir-se. Todo corpo está “animado” e toda “alma” está sempre “corporificada”.

No encontro com o “Corpo de Cristo” passamos a ter uma outra visão de nosso corpo; isso implica superar a parcialização, a polarização e a dicotomia e buscar a harmonia e a integração.

Somos nosso corpo animado, com vida e com sentido. Construímos nossa vida com nosso corpo e graças a ele. Com, em e pelo corpo, vivemos nossa história, caminhamos pela vida na contínua aventura de crescimento e de maturação, de amor e de conhecimento, de encontro com os outros e conosco mesmo, com nossos desejos e medos, nossas alegrias e dores, nossas esperanças e desesperos, nossas vitórias e desilusões ... Tudo isso está inscrito em nossa “carne”.

Nosso ser profundo, nosso ser essencial se manifesta, se abre para fora através de nosso corpo.

O corpo deixa transparecer o que há de mais humano e mais divino em seu interior.

Deixemos “transparecer” o “Corpo de Cristo” em nossos corpos!

Texto bíblico: Lc 9,11-17

Na oração: Amiga, amigo, teu corpo que, que és tu mesmo, é habitado pelo Infinito, o Eterno. Tu também, como Jesus, em comunhão com todo o universo em movimento e evolução, és corpo de Deus. O Infinito se manifesta e emerge de ti. Acolhe teu mistério, deixa-te acolher pelo Infinito em ti, deixa que suba, desde o mais profundo de ti, a voz que ora: “meu corpo canta a Ti, Senhor!”

- Deixa Deus ser Deus em ti. Sê corpo, morada de Deus. Celebra, cuida, reza: sê corpo de Deus, epifania carnal da Ternura infinita.

quarta-feira, 8 de junho de 2022

“A Santíssima Trindade é a melhor comunidade”

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, SJ, como sugestão para rezar o Evangelho da festa da Santíssima Trindade (2022 - Ano C). 

A Santíssima Trindade é a melhor comunidade (CEBS Brasil) 

“Tenho ainda muitas coisas a dizer-vos, mas não sois capazes de as compreender agora” (Jo16,12)

 

Neste domingo, a Igreja celebra a Festa da Santíssima Trindade. Parece que celebramos algo estranho e distante de nossa compreensão. No entanto, a festa da Trindade nos mobiliza para uma nova maneira de viver e de nos relacionar com o Deus de Jesus, cuja presença preenche o cosmos, irrompe na nossa vida, habita criativamente no interior de cada um de nós e é vivido em comunidade.

É preciso deixar claro que o Mistério da Trindade não é um enigma a ser decifrado, ou seja, como conjugar três “individualidades” em uma Unidade, mas é a proclamação de que “tudo é Relação”. A Trindade não é uma especulação teórica sobre três pessoas “abstratas” em Deus, mas a maneira de ser de Deus, como Amor que se expande, em si e fora de si, de uma maneira “redentora”, inserindo-se na história da humanidade.

Assim, a Trindade não é uma simples verdade para crer, mas a base de nossa experiência cristã. O dogma trinitário quer expressar o mistério da Vida mesma de Deus que nos é comunicada.

Foi a experiência cristã da ação salvadora de Deus por meio de Jesus Cristo e no Espírito Santo que deu existência à doutrina trinitária.

Deus não é solidão, mas comunhão perfeita, pois “Deus é Amor”. Eis aí a grande revelação que Jesus nos trouxe: a essência de Deus é Amor em estado puro. Então, Deus não poderia fazer outra coisa senão amar. De fato, o amor não existe se não for movimento, reciprocidade, dom, acolhida, relação e comunhão.

Não podemos definir Deus. Só podemos nos aproximar da essência de Deus afirmando que Ele é relação, comunidade, partilha, comunicação, intercâmbio, comunhão....

Santo Agostinho afirmou que no Amor se encontram três realidades: o Amante, o Amado e o mesmo Amor.

“Deus é Amor”, circulação eterna e infinita de amor, na qual o Amante, o Amado e o Amor se relacionam tão intensamente até “transbordar-se” na criação do universo. A Criação é transbordamento do Amor trinitário e o ser humano é “morada” das Três Pessoas Santíssimas.

A Trindade evoca um Deus cuja essência é caracterizada por um movimento eterno em direção a nós, em um amor redentor.

Somente na medida em que formos capazes de amor, poderemos conhecer o Deus comunidade, ou seja, comunhão de Pessoas.

Esta é a essência do Evangelho. A melhor notícia que um ser humano podia receber é que Deus não o afasta de seu Amor. A Trindade nos ensina que só vivemos quando com-vivemos.

A Bíblia nos fala de um Deus amor; amor pessoal, porque ama a cada um de nós; amor total, universal, que não exclui ninguém; amor preferencial, porque se inclina para o frágil; amor comunitário, porque em si mesmo não está só, senão que é comunidade e gera comunidade entre os seres humanos.

Deus é Amor e só amor. Percebemos, então que, incompreensível não é Deus, mas nossa resistente e limitada capacidade de contemplar com profundidade essa Presença que se manifesta, permanentemente, em nossa vida e na Criação inteira.

Deus nos fez amor para o mútuo encontro, para a doação, para a comunhão...

Fomos criados “à imagem e semelhança” do Deus Trindade, comunhão de Pessoas (Pai-Filho-Espírito Santo). Quanto mais unidos somos, por causa do amor que circula entre nós, mais nos parecemos com o Deus Trindade. “Se nos amarmos uns aos outros, Deus permanece em nós e o seu Amor em nós é perfeito” (1Jo. 4,12)

Deus colocou em nossos corações impulsos naturais que nos levam em direção ao convívio, à cooperação, à acolhida, à solidariedade... “Só corações solidários adoram um Deus Trinitário”.

Aqui está a grandeza e a dignidade do ser humano, criado à imagem e semelhança do Deus Trindade. E é fácil intuir isso: sempre que sentimos o dinamismo de amar e ser amados, sempre que sabemos acolher e buscamos ser acolhidos, quando compartilhamos uma amizade que nos faz crescer, quando sabemos doar e receber vida..., estamos saboreando e visibilizando o “amor trinitário” de Deus. Esse amor que brota em nós tem n’Ele sua fonte.

O amor intra-trinitário não é um amor excludente, um “amor egoísta” entre três. É amor em excesso que se difunde e se expande em todas as criaturas. Por isso, quem vive o amor inspirado pela Trindade, aprende a amar a quem não lhe pode corresponder, sabe doar sem esperar recompensa, sente uma grande paixão pelos mais pobres e pequenos, é capaz de entregar sua vida para construir um mundo mais amável e digno.

Por outro lado, quem é incapaz de dar e receber amor, quem não sabe compartilhar nem dialogar, quem só escuta a si mesmo, quem resiste relacionar-se com os outros, quem só busca seu próprio interesse, quem só deseja o poder, a competição e o triunfo, não pode experimentar nada da Trindade amorosa.

 

O ser humano não é feito para viver só; ele é chamado a viver em comunhão com todas as pessoas;

Como homem e como mulher trazemos esta força interior que nos faz “sair de nós mesmos” e criar laços, construir fraternidade, fortalecer a comunhão. Fomos feitos para o encontro e a comunicação.

Não fomos criados para viver sós; necessitamos con-viver, viver-com-os-outros, encontrar-nos; é essencial descobrir o sentido e a vivência do encontro relacional com os outros, na vida familiar, na fraternidade, na sensibilidade social para com o diferente e o excluído.

O sentido da vida em comum com os outros é um dom de Deus; afinal, fomos criados à imagem do Deus “encontro intra-trinitário”.

A fraternidade, a vida em comum se mede pelo amor, por atos e gestos de doação, por vivências de comunhão, por experiências de partilha do mesmo ser, da mesma vida, da entrega mútua gratuita...

O amor é olhar o outro com olhos tão limpos, bondosos, desinteressados, tão profundos... que só desejo que o outro seja o que é... Alegro-me de vê-lo assim, tal como é...

O dogma da Trindade, portanto, não só nos revela como Deus é para nós; é também revelação de quem somos nós, ou seja, portadores do impulso relacional que se manifesta na nossa capacidade de amar.

Se Deus é relacionamento amoroso perfeito e nós somos criados à sua imagem e semelhança, então a doutrina da Trindade está preocupada com a nossa vida também. Somos convidados pela graça divina a entrar neste fluxo de relação que define o próprio ser de Deus.

O Deus de Jesus não é uma verdade para pensar, mas uma Presença a ser vivida. Não é uma ideia para quebrar nossa cabeça, mas a base e fundamento de nossa vida.

Uma profunda vivência da mensagem cristã será sempre uma aproximação ao mistério Trinitário.

Será, em definitiva, a busca de um encontro vivo com Deus. Não se trata de demonstrar a existência da luz, mas de abrir os olhos para vê-la. O verdadeiramente importante foi sempre a necessidade de viver essa presença do Deus, comunhão de Pessoas, no interior de cada ser humano.

Jesus, o Mistério de Deus feito carne no Profeta da Galileia, é o melhor e único ponto de partida para reavivar uma fé simples no Deus Comunidade de Pessoas.

Texto bíblico: Jo 16,12-15

Na oração:

A Trindade não é hóspede; é a essência do ser humano; o modo de viver de uma pessoa é revelador de quem habita seu interior; uma pessoa compassiva, aberta, acolhedora... é sinal de que é habitada pela Trindade amorosa.

- Quem perde o caminho de sua interioridade, distancia-se da Trindade que é Vida e passa a viver a cultura da morte, deixando transparecer o ódio, a violência, o preconceito, a injustiça... como modo petrificado de ser.

- Qual é a Presença que determina sua vida: a Trindade Santa ou os dinamismos diabólicos (forças que dividem)?