Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, SJ, como sugestão para rezar o Evangelho do 6º. Domingo da Páscoa (2022 - Ano C).
“Se alguém me ama, guardará minha palavra, e o meu Pai o amará, e nós viremos e faremos nele nossa morada” (Jo 14,23)
Neste último domingo de Páscoa
a liturgia, mais uma vez, nos faz ter acesso a um trecho do discurso de
despedida de Jesus, no evangelho de S. João. Na realidade, trata-se de um
“discurso pascal”, onde o evangelista recolhe os dons principais revelados pelo
Ressuscitado: vida, amor, paz, fé, Espírito Santo.
A narração deste domingo dá
destaque a uma nova presença do Cristo Ressuscitado entre
os seus seguido-res e seguidoras: junto com o Pai e o Espírito, Ele faz do interior de cada um(a) sua “morada”.
Sabemos que o ser humano
é interioridade;
é sua essência, é a dimensão mais
nobre e sagrada de todos. E essa interioridade é habitada por uma Presença,
sempre inspiradora e iluminadora como o Sol.“O Sol res-plendente
está sempre dentro da alma e nada pode arrebatar sua magnificência” (S. Teresa D’Ávila).
Presença que fala dentro de nós; presença que é Fonte de
paz; presença que, através do seu Espírito, nos inspira, nos sustenta e
desperta as melhores energias e forças mobilizadoras de nossa vida.
Os mestres
espirituais chamam a esta interioridade
também de “Imago Dei” (imagem de Deus), ou a própria presença divina em
nós.
Só descobrindo
o que há de Deus em nós, poderemos cair na conta da nossa verdadeira identidade.
Ele é nosso verdadeiro ser, nosso ser profundo, nossa essência. Somos
templos de Deus, presença constante do Espírito de Deus conosco. Somos seres
habitados; não estamos sozinhos.
É
próprio do ser humano mergulhar e experimentar sua profundidade.
Auscultando a si mesmo, percebe que brotam de seu “eu profundo”
apelos de compaixão, de amorização e de identificação com os outros e com o
grande Outro (Deus). Dá-se conta de uma Presença que sempre o acompanha, de um
Centro ao redor do qual se organiza a vida interior e a partir do qual se
elaboram os grandes sonhos e as significações últimas da vida.
Normalmente
quando falamos de Deus nós o imaginamos bem distante e quase
inacessível. Vemos longe Aquele que está tão perto, Aquele que trazemos dentro
de nós mesmos. Vemos longe Aquele que vive e nos dá vida cada dia. Basta um
simples olhar por dentro para nos encontrar com Ele.
Às vezes,
sentimos como se tivéssemos medo de nosso próprio mistério; temos medo de sentir
que nós somos o céu de Deus; temos medo de pensar que somos a “casa” onde vive
e habita Deus.
Muitas vezes não nos damos
conta dessa Presença, mas ela não nos invade, não nos anula, não se impõe...
Simplesmente se faz habitante, presença, inspiração...
No entanto, esta
é a nobreza de nosso ser: todos somos “morada” divina, porque
nosso verdadeiro ser é o que há de Deus em nós; embora a imensa maioria das
pessoas não tem consciência disso ainda, não podemos deixar de manifestar o que
somos. Deus sempre habita no mais profundo de cada um de nós; podemos ou não
entrar em sintonia com essa presença para nos deixar conduzir por ela.
Deus anda abraçado conosco e sua graça banha suavemente
todas as dobras do nosso ser e agir.
S. Agostinho cunhará a expressão de
que Deus é “intimior intimo meo”, mais íntimo que nossa própria intimidade.
Esta presença é fonte de vida espiritual, uma vida que pulsa dentro de nós e
flui com diferentes “moções” que nos fazem sentir perto d’Aquele
que já está perto.
Em nosso coração há sempre um movimento
profundo que é manifestação da ação de Deus no mais íntimo de cada um.
Quem toma
consciência de sua identidade profunda, descobre-se habitado e
amado pelo Mistério e não pode fazer outra coisa senão amar e experimentar a
comunhão com tudo e com todos. Na linguagem do quarto evangelho, Deus é o “centro”
último do nosso interior, o que constitui nossa identidade mais profunda. A
expressão do pensador Pascal - “o ser humano supera infinitamente o ser
humano” -, resume
bem esta vivência
da Trindade que nos habita, nos move e nos faz transbordar em nossa mesma
intimidade.
É o céu que
vem tocar a terra, é Deus que se aloja no coração humano, é o Reino que se
entrelaça na configuração de nossa convivência, é a fé que se revela como
atitude de confiança inabalável.
Em Deus sempre
vivemos. Em Deus nos movemos. Em Deus somos. A Ele nunca vamos. D’Ele nunca
saímos. N’Ele sempre nos encontramos. Ele está nos gerando a cada momento (“o ser humano é
criado para...). Precisamos
vivenciar a Fonte donde tudo jorra e
onde tudo deságua; precisamos caminhar à luz do Sol primordial, regressar ao seu seio luminoso. Eis a meta
derradeira do ser humano: a auto-transcendência.
Ao fazer morada em nós, Deus acende nosso desejo no desejo d’Ele, ativa a
nossa vontade na Vontade d’Ele, faz pulsar o nosso coração no ritmo do Coração
d’Ele. Ele entra com sua Liberdade nas raizes da nossa liberdade e alarga os
espaços internos para que a Vida divina atravesse todas as dimensões de nosso
ser, tornando nossa vida mais oblativa, aberta e comprometida. Segundo José Saramago “a vida é
breve, mas cabe nela muito mais do que somos capazes de viver”.
Podemos ter
acesso ao mais profundo de nós mesmos porque em nós está a dimensão de
eternidade, a dimensão “divina” que nos situa acima do vai-e-vém das coisas, para
além da superficialidade e da aparência.
Enraizados
nessa Presença divina que nos habita, podemos transitar pela história com mais
sentido e inspiração. Nós nos movemos, pois, entre transcendência e história,
entre contingência e eternidade.
É no “substrato humano” que o mistério da
Trindade marca presença e age. É na “natureza humana” que Deus constrói
a Sua Tenda e, na Sua ternura, abraça a pessoa no seu todo; abrange todas as
áreas da vida.
Deus se serve das mediações humanas para
revelar-se e falar ao coração. Ele quer assumir o humano na sua totalidade. Ele
deseja ser o responsável pela “terra sagrada” da vida humana.
Da parte de cada pessoa, Ele pede, apenas,
para deixá-Lo trabalhar, limpar, semear, fazer crescer e colher os frutos. A
pessoa é solicitada para que deixe espaço aberto e livre ao plano da ação de
Deus.
É nas entranhas
mais profundas do ser que Deus “toca” com a Sua bondade, ternura e
misericórdia.
Esta experiência
gera compromisso de viver a bondade, a ternura e a misericórdia na missão.
Assim é a
Trindade amorosa revelada por Jesus, que se deixa “transparecer”
no interior e na vida de cada um de nós. Se nos sentimos “morada de Deus”, se verdadeiramente Deus está em nós,
devemos necessaria-mente manifestá-lo em
nossa vida. Deus é amor e o melhor de nós é nosso ser amoroso; por isso, também
nós devemos ser “diáfanos”, ou seja, deixar transparecer, em nossa vida e em nossa
ação, o Deus íntimo, fundamento de nosso ser e identificado com cada ser
humano. Quem é “diáfano” também “vê” o
Deus que se deixa transparecer no outro.
Somos presença do amor de Deus no mundo. Os outros descobrirão essa Presença em nossa vida quando manifestemos, através de nossas atitiudes, o que de Deus há em nós: bondade, compaixão, disponibilidade, atitude de serviço aos outros; quando, de verdade, sejamos um ser para o outro, a partir de nosso ser amoroso. Isso significa viver já como seres ressuscitados, uma nova humanidade; isso significa nascer de novo, nascer para a Vida divina, eterna, definitiva. E isto, aqui e agora, sem deixar para mais tarde.
Texto bíblico: Jo 14,23-29
Na
oração:
Na
oração, mergulhamos em Deus e
libertamos em nós profundidades que desconhecemos.
Se a nossa oração for um autêntico face-a-face com Deus, ela deverá fazer emergir à nossa consciência as profundidades
desconhecidas do nosso ser. Descobriremos recursos e dons ainda inexplorados,
que nascerão para a vida sob a ação da Graça de Deus. Ele é a verdadeira fonte do nosso ser, mais próxima
de nós do que nós de nós mesmos.
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