Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 7º. Domingo do Tempo Comum (Ano C).
“Sede misericordiosos, como também o vosso Pai é misericordioso” (Lc 6,36)
O Evangelho deste domingo nos situa diante desta
convicção: Deus é Misericórdia e
nossa vocação cristã é viver misericordiosamente.
Em sua misericórdia, Deus
sempre nos surpreende, sempre excede nossas estreitas expectativas, para abrir
caminho a partir de nossas fragilidades. Só o amor misericordioso
de Deus nos reconstrói por dentro, destrava nosso coração e nos move em direção
a horizontes maiores de busca, responsabilidade e compromisso.
Duas razões que deveriam estar
presentes em quem se diz cristão, algo tão natural no seguimento de Jesus
Cristo: alegria pela experiência de
que Deus nos ama com um coração misericordioso e misericórdia como conduta libertadora que nasce de tal experiência.
Aqui nos encontramos envolvidos por uma mensagem que é essencial e decisiva no
nosso “ser cristão”.
Ser misericordiosos e compassivos é a vocação à qual todos nós, seres humanos, fomos chamados, inclusive aqueles que ainda não experimentaram o dom da fé ou mesmo a esvaziaram. É o caminho para conseguir uma convivência leve, acolhedora e aberta. As Bem-aventuranças vão nesta direção, abrindo espaço para que o Amor misericordioso de Deus se transforme em motor da história.
Misericórdia. É a primeira, a última,
a única verdade na Igreja, em todas as suas doutrinas, cânones e ritos. É o “atributo
primeiro” de Deus proclamado por todas as religiões e que deve inspirar o modo
de proceder de todo ser humano. E, - por que não dizer? -, também no campo da
política ou da gestão da vida pública com todas as suas instituições, partidos,
programas e conferências climáticas. Ai das políticas sem entranhas, sem alma,
sem misericórdia!
A misericórdia é a luz e a chave de nossa vida, tão preciosa e
frágil, de nosso pequeno planeta tão vulnerável, do universo imenso e
interrelacionado e do qual fazemos parte.
Misericórdia, segundo sua etimologia, significa “entranha”, coração, ternura diante da fragilidade e miséria do outro. Por isso é um dos nomes mais belos de Deus; é o mesmo que dizer “coração da Vida” e de tudo quanto existe.
A força criativa da misericórdi de Deus põe em movimento os grandes dinamismos de nossa vida; debaixo do
modo paralisado e petrificado de viver, existe uma possibilidade de vida nova nunca ativada.
Se recuperarmos as atitudes de misericórdia e
compaixão, teremos entrado na vivência essencial do Evangelho. O decisivo é que
a Igreja toda se deixe reger pelo “Princípio-Misericórdia”, sem ficar
reduzida simplesmente a somar “obras de misericórdia”.
A misericórdia é para os audazes e criativos, capazes de revolucionar
a existência com atitudes maduras de amor profético, alargando espaços onde
imperam somente a doutrina, os esquemas rígidos e as retóricas de poder e de
juízo daqueles que não se deixam conduzir pela força humanizadora da mesma
Misericórdia.
À imagem do Deus de Misericórdia fomos
criados, e somos seres capazes e necessitados de misericórdia. Uma faísca da
misericórdia Deus está presente no interior de cada ser humano, pálido reflexo
dessa “forma suprema de ternura” que é o Amor de Deus, que rompe as distâncias
e se aproxima da realidade humana como Ternura amorosa. Ou seja, se Deus não se
revelasse como “misericórdia”, não
poderia ser amado pela pessoa humana como se ama o pai ou a mãe.
Deus misericordioso nos educa e nos impulsiona a viver misericordiosamente. Sua misericórdia penetra até o mais profundo de nosso ser, individual e comunitário, para que pensemos, falemos, escutemos e atuemos misericordiosamente. “Oxalá vos sintais sempre misericordiados, para serdes, por sua vez, misericordiosos” (Papa Francisco).
No
princípio era a Misericórdia. Por
ela fomos criados. Foi um ato de Misericórdia que nos deu vida. A Misericórdia é sempre
geradora de vida. A
Misericórdia é o Amor que vai além da justiça, e vir à vida foi fruto de Amor em excesso, não um ato de justiça.
Fomos criados por um coração
misericordioso, fomos feitos por mãos misericordiosas,
pensados por uma mente misericordiosa. Vivemos imersos na Misericórdia.
Se Deus não fosse
misericordioso, não teríamos jamais existido; e se essa Misericórdia existe desde o princípio do nosso viver, ela ainda
agora é fonte de vida, graça da qual
temos continuamente necessidade e
que constantemente está agindo em
nós para alimentar o impulso da reconciliação com tudo e todos.
A misericórdia constitui a resposta de Deus à indigência do ser humano: ela destrava a vida, potencializa o dinamismo do “mais” e o coloca em movimento em direção a um amplo horizonte de sentido.
O teólogo Jon Sobrino formulou a
expressão “princípio-misericórdia”, porque a misericórdia foi a que moveu
toda a ação de Deus no AT e de Jesus no NT.
Jesus realizou muitas coisas e em muitos lugares (ensinou, curou, denunciou, alimentou, dialogou, etc.), mas a misericórdia foi a que inspirou e moveu tudo em sua vida e ação. Sentiu profundamente o sofrimento das pessoas, preocupando-se sempre em aliviar sua dor. Mas é preciso destacar, no entanto, que Jesus não se limitou à esfera do privado, mas estendeu a misericórdia a dimensões coletivas e públicas: repartiu o alimento a uma multidão, interpelou os ricos, pregou às massas e as alentou, denunciou os abusos das autoridades religiosas e políticas, entrou em conflito com os manipuladores da religião do Templo...
De acordo com o Evangelho
deste domingo, só quem entra no fluxo do “princípio Misericórdia”, será capaz
de amar até os inimigos, de quebrar o círculo de toda violência, de bem-dizer
quem amaldiçoa e rezar pelos que caluniam. Assim, a misericórdia,
recebida e experimentada, é a base da atitude compassiva, não como ato
ocasional mas como estilo de vida evangélico. Torna-se o fundamento e a perene
inspiração de uma existência de partilha e solidariedade.
“Ser humano” é,
para Jesus, agir com misericórdia; do contrário, fica viciada na raiz a
essência do humano, como acontece com aqueles que fazem da lei e da doutrina o
centro de suas vidas, “passando do outro lado” da dor e da exclusão do outro.
A misericórdia, como estilo-de-vida
cristã, é força oblativa que rompe distâncias e faz “morada no outro”.
Ela se
constitui como uma “caridade-em-ação” perante o sofrimento alheio, numa atitude fundamental de solidariedade. É a ternura que se traduz em atos em favor da vida e não da morte.
Ela
nos descentraliza
e nos coloca no caminho do co-irmão, sobretudo daquele mais fragilizado e
excluído.
É a
misericórdia que desperta em nós uma nova sensibilidade a partir do outro,
almejando com todas as forças aquilo que é o melhor para ele.
Trata-se
de uma “escuta existencial” feita de profundo respeito pela alteridade
do irmão. Não pretende que o outro se amolde à nossa maneira de ver ou sentir, mas deixa o outro ser profundamente ele mesmo.
Assim lançamos a base para um autêntico encontro fraterno, inspirando-nos na própria atitude de Jesus para com as pessoas. Abrimo-nos por dentro para captar o diferente do outro e acolhê-lo com o coração.
Texto bíblico: Lc 6,27-38
Na
oração:
A
experiência da oração implica escancarar as portas de nossa interioridade,
abrindo passagem para que a Misericórdia divina transite com liberdade pelos
recantos escondidos e sombrios, ativando e despertando dinamismos e recursos
que ainda não tiveram oportunidade de se expressar.
-
O atual contexto social-político-cultural-religioso revela sua terrível face
desumanizadora, através da cultura do ódio, da intolerância, das mentiras...
Como você, seguidor(a) de Jesus, tem reagido diante disso? Sua presença tem a
marca da misericórdia ou da indiferença? Está a serviço da vida ou da morte?...
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