Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho do 8º. Domingo do Tempo Comum (Ano C).
“Por que vês tu o cisco no olho do teu irmão, e não percebes a trave que há no teu próprio olho?”
O evangelho deste
domingo nos situa no mesmo cenário onde Jesus havia proclamado as bem-aventuranças.
O Mestre da Galileia está ensinando a um amplo grupo de seguidores(as),
buscando despertar neles(as) a radicalidade que o Reino de Deus pede, a partir
de uma vida que se sabe sustentada pelas mãos providentes de Deus e aberta à
bondade, ao encontro e à solidariedade.
O ensinamento de Jesus tinha começado um pouco antes com uma afirmação
taxativa: “Não julgueis e não sereis julgados; não
condeneis e não sereis condenados” (Lc 6,37). Depois
da proclamação das bem-aventuranças e os “ais” contra aqueles que buscavam
honras, riqueza e poder, Jesus vai proferindo uma série de afirmações que
orientam o seu discipulado e revelam um “modo de ser e proceder” original e
humano. Ele também adverte das armadilhas nas quais se pode cair quando alguém
se apresenta como “juiz” que quer ser a referência para corrigir as limitações
dos outros, afastando-se do bom caminho.
No discurso, encadeiam-se uma série de sentenças que alertam contra quem vive autorreferenciado e considera que só ele tem a verdade.
*
Por quê somos tão rígidos, tão duros, tão insensíveis, tão julgadores...?
*
O que nos faz ficar petrificados por dentro? Que forças internas nos mobilizam
a ser o centro?
*
Por que temos medo do desconhecido, daquele que pensa e sente de maneira diferente?
Em cada um de nós o
instinto do julgamento está enraizado profundamente. Podemos dizer que todos
nascemos municiados de uma cadeira de juiz. Há muitos que cultivam
ardorosamente esta profissão e encontram ocasiões abundantes para praticá-la,
submetendo-se, inclusive, a um horário esgotador.
Como proliferam os
“tribunais ambulantes e permanentes”!
Tal atitude julgadora nos petrifica em todo o nosso ser, deixando-nos
estagnados: emoção congelada, relações
congeladas, imagem de Deus congelada, visões congeladas...
Somos submetidos ao grande risco de ficarmos
imobilizados, emparedados em nosso corpo, petrificados em nossos pensamentos,
em nosso coração e em nosso espírito.
Podemos estar muito retraídos, auto-centrados, tensos... e isso nos impede viver com maior fluidez.
* Como
passar do coração de pedra para a morada da fonte de água viva?
* Como
libertar o nosso coração dos medos que nos levam a excluir e rejeitar os outros
e fechar-nos numa fria rigidez?
* Como
reencontrar, no nosso cotidiano, a fluidez que habita em nós?
No Evangelho deste
domingo encontramos algumas expressões categóricas que nos movem a abandonar
este ofício julgador, bastante perigoso e rompedor de relações. Há um apelo
forte que nos convida a fazer em pedaços a cadeira de juiz que todos levamos
presa às nossas costas.
No entanto, em
muitos seguidores e seguidoras de Jesus vai amadurecendo, ao longo da vida, a
convicção de que há coisas muito mais importantes a fazer do que se dedicar ao
ofício de juízes.
É preciso “cristificar” nossa visão para que ela não se deixe determinar
pelas aparências ou pelas limitações do outro, mas, consiga vê-lo em
profundidade, percebendo o que há de mais humano e divino em seu interior. A
sabedoria de Jesus recorda algo elementar: o outro é nosso espelho, pois o
cisco que vemos em seu olho nos está falando de uma “trave” que há no nosso; é
preciso estar sempre com
os olhos e ouvidos bem abertos para nos deixar impactar pelos dons, recursos e
potencialidades humanas presentes em cada um.
“Guia cego” é aquele que, centrado na lei, se situa
acima do outro, exigindo dele qualquer tipo de “submissão”. Isso acontece porque
tal “guia” carece de compreensão, fala a partir da fria lei e só busca
alimentar e fortalecer seu próprio ego.
O guia autêntico, pelo contrário, considera-se a si mesmo como
“acompanhante”, fala a partir de sua própria experiência e remete cada pessoa a
si mesma, na certeza de que o único “guia” é sempre o “Guia interior”, ou
“Mestre interior”, que se expressa em cada ser humano.
Assim, enquanto o “guia cego” acaba caindo no buraco, o acompanhante autêntico oferece luz e espaço amplo para que cada qual vá encontrando seu próprio caminho.
Jesus
está sempre nos chamando à autenticidade, ou seja, Ele nos provoca a descer ao
mais profundo de nosso próprio ser e descobrir ali o que está de acordo com o
que na realidade somos. Por isso, Ele está sempre combatendo uma acomodação
externa às normas e preceitos. A única Lei definitiva é a que está escrita em
nosso interior e tem a marca do amor. É preciso descer ao coração e descobri-la,
para que ela inspire nosso ser e nosso proceder.
Como
cristãos temos copiado a atitude dos fariseus, dando mais valor ao cumprimento
de normas que à busca interior das exigências de nosso verdadeiro ser. Esta é a
causa de nosso fracasso na vida espiritual.
A originalidade do Evangelho está na aventura da
descoberta do “mundo interior”, esse mundo desconhecido e surpreendente,
que é o coração, onde acontece o mais importante e decisivo em cada
pessoa. “O
homem bom tira coisas boas do bom tesouro do seu coração” (Lc 6,45).
É preciso ser discípulo(a) da “escola do coração” onde aprendemos a nos acolher como dom totalmente gratuito de Deus e a entregar-nos totalmente ao seu Reino.
No
nosso contexto cultural, a imagem do coração
perdeu muito de sua expressão, tornando-se muito banalizado: corações nas
emoções, nos desenhos, talhados em árvores, nas taças e chaveiros; corações em
canções, rompidos, roubados, feridos, apaixonados, pesados, leves; corações que
sentem, e outros insensíveis. O coração parece como um depósito de sentimentos.
Por
outro lado, vivemos também um contexto de muitos “corações de pedra”,
intransigentes, cheios de ressentimentos e juízos implacáveis, corações
fechados em jaulas de pré-juízos e de suspeitas, que acabam envenenando as
relações e rompendo os laços humanos.
O seguimento de Jesus consiste,
sobretudo, em alcançar a experiência interior que Ele viveu, e deixar que nossa
interioridade cristificada se manifeste. Fazer caminho com Ele nos ajuda a
descobrir as enormes possibilidades em nossos próprios corações. O Coração divino que humaniza nosso
coração, tornando-o aberto e sensível a tudo o que é humano; ao mesmo tempo,
ativa em nós um coração que se faz solidário e comprometido a afastar de nossas
relações tudo o que desumaniza: fechamentos, intolerâncias, julgamentos,
preconceitos, ódios...
“Ter o coração nas mãos” nos capacita a
olhar a realidade, compreender cada pessoa em sua situação e viver
oblativamente, a partir da gratidão e da responsabilidade. Sentir o pulsar de
nosso coração em sintonia com o Coração do Pai nos ajuda a recuperar o
“humanismo” que estamos perdendo.
Humanizar nosso coração para humanizar
as relações.
Por isso Jesus dava tanta importância ao coração: “a boca fala daquilo que está cheio o coração” (Lc 6,45); “Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus” (Mt 5,8).
Texto bíblico: Lc 6,39-45
Na oração:
No silêncio da oração, desça
até o mais profundo de seu coração, até chegar à corrente subterrânea de água
viva; aqui você experimenta a unidade
de seu ser; aqui é o lugar da transcendência,
onde a transformação acontece.
A intimidade não é
fechar-se em si mesmo, mas abertura máxima. A partir do centro do coração, abra-se
ao coração da realidade.
- Você deixa
“transparecer” seu coração na vivência cotidiana? Coração oxidado ou ativado
pela Misericórdia?
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