sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

ANO NOVO: exercer o “ofício da pacificação”

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj como sugestão para rezar o Evangelho da Solenidade da Santa Mãe de Deus, em que se celebra também a chegada do Ano Novo e o Dia Mundial da Paz.

“O Senhor volte para ti o seu rosto e de dê a paz!” (Nm 6,26)

O relato do Nascimento de Jesus nos desafia a superar a rotina acostumada e romper as estreitezas da vida para poder acolher a admirável profundidade que se esconde e se revela na simplicidade da cena, que em seu nível mais profundo ou espiritual, fala de todos nós. Ali fala-se de alguns pastores, de um presépio, de um recém-nascido, de uma mulher que “guarda” um segredo, de um homem silencioso... Toda a cena quer introduzir-nos em um Silêncio admirado e agradecido, pleno de luz, de paz e de gratidão.

A simplicidade do relato nos convida a mergulhar no Mistério que aí se expressa. Tudo está aí. E, da mesma maneira, tudo é agora. Pastores, presépio, recém-nascido, um casal silencioso...: quando sabemos olhar, descobrimos que tudo está cheio da Presença que pacifica.

A Presença ou o Mistério não é uma realidade separada da nossa vida, nem à margem da realidade e da criação. Por esse motivo, os personagens presentes na Gruta de Belém representam a realidade inteira: somos nós mesmos, é tudo o que nos rodeia neste preciso momento, são todos os seres.

E diante dessa manifestação, o que nos resta? A atitude de Maria: acolher todas as coisas, “guardá-las”, “meditando-as no coração”. Ir mais além dos conceitos e das palavras e, desse modo, descansar – admirados, agradecidos, irmanados, pacificados – no Mistério e deixar-nos conduzir por Ele.

“Meditar as coisas no coração” significa ativar o “olhar contemplativo” que se encontra em todos nós e que se manifesta quando cessamos nosso palavreado crônico. Serenados interiormente, somos presenteados com o dom de permanecer no presente, onde tudo está bem, onde tudo flui mansamente e na santa paz.

Este é o desafio diante do Novo Ano que se inicia: devemos primar por construir “ambientes de paz”: paz que vem do alto, que aquece nossos corações, plenifica nossas relações e se expande, tal como perfume, em todas as direções.

Paz é aspiração congênita do ser humano. Nosso coração humano foi feito para a paz e anseia a convivência harmoniosa com Deus, com o cosmos, com os nossos semelhantes. É processo interminável.

Na raiz bíblica do termo “shalom”, (em latim “pax”) está a ideia de “algo completo, inteiro”.  A paz pertence à plenitude, à completude, enquanto a violência está do lado da falta, da carência, do incompleto.

Paz reflete harmonia consigo, boas relações com os outros, aliança com Deus, enquanto a violência infecciona os relacionamentos, contamina a convivência, rompe os vínculos, exclui os mais fracos...

Paz: há milênios esta palavra ressoa e ecoa na história dos povos. Inúmeros homens e mulheres a cultivam secretamente no coração. Todos a invocam. Muitos dão a vida, defendendo-a...

A paz autêntica contém densidade humana. É paz de consciência inocente dos justos que fazem o bem, dos profetas que se arriscam em favor dos outros. Paz é humanidade alegre, espontânea, confiante.

Paz não é sossego, não é alienação, nem cumplicidade.

Paz requer bravura. Somente o ser humano amante da paz é realmente “perigoso”, não o violento.

Mas, a paz ainda não encontrou espaço para ser a companheira de estrada em nosso cotidiano. O contexto social-político-religioso no qual vivemos está carregado de profundas divisões, ódios, intolerâncias, mentiras, preconceitos, violências... Há um “cheiro de morte” que nos paralisa e nos impede viver relações mais sadias e respeitosas para com os outros.

No entanto, permanece a promessa profética de que ela habitará na nossa terra. Assim, o sonho impossível, que reina desde sempre no coração do Senhor, amante da Paz, se realizará, graças àquelas pessoas revolucionárias, que acreditam, desejam e realizam a paz. Na Gruta de Belém tudo exala paz e o encontro com Aquele que é o “príncipe da paz” nos inspira a sermos presenças pacificadoras.

Paz “solidária” que abraça os excluídos; paz “resistência” que não se acovarda; paz “audácia” que não se amedronta; paz “limpa” que não corrompe a ética; paz “profética” que encarna a justiça; paz “rebelada” que não se dobra; paz “estética” que revela a face bela da nova humanidade... (cf. Juvenal Arduini).

Na carta de S. Paulo aos Efésios, Cristo é chamado “a nossa paz” (Ef 2,14).

A paz é característica do reino messiânico que Jesus inaugurou. Ele revela que a paz é um trabalho muito paciente, de artesanato. Ele era um artesão, um carpinteiro.

Ele sabia que para ser mestre na arte de fazer móveis era preciso saber aplainar muito bem. A paz começa nesta arte de aplainar o que em cada um de nós é áspero e duro; há divisões e conflitos em nosso interior..., Mas nós podemos, pacientemente,  construir a paz do coração.

Quem tem paz irradia luz; quem vive na luz constrói a paz. Paz expansiva, paz que é respiração da vida, paz marcada pela esperança.

               “Que a Paz de Cristo reine em vossos corações (Cl 3,15)

No início deste Novo ano confessamos: apareceu um Menino; fizeram-se visíveis a ternura, a paz e a doçura do Deus que salva.

A ternura pobre do presépio ajuda a dizer “sim” ao que importa e a recuperar nosso centro em Deus.

Por isso, a paz é carregada de ternura. Só a ternura de uma criança pode nos tirar de nossos lugares atrofiados. A ternura de Deus continua fazendo-se alternativa original. Quando expandimos nosso espaço interior e a acolhemos, a ternura nos move a fazer visitas inesperadas a enfermos, presentear tempo e não objetos, investir a “fundo perdido” em quietude, oração e reconciliação e substituir as felicitações impessoais dos celulares por palavras de vida, que ajudem a curar feridas do caminho.

A ternura alternativa acolhe solidões, sofrimentos familiares e enfrenta os contratempos da vida tal como aparecem, anunciando que Deus nasce para todas e cada uma de nossas histórias. Depende de nós abrir-lhe a porta e deixar que ela faça morada em nós.

Na Gruta de Belém todos são acolhidos e a paz brota da hospitalidade. Se queremos a paz, preparemos as boas-vindas, aprendamos a ver os outros não como inimigos, mas como seres humanos, cujos rostos nos convidam a expandir nossas fronteiras para encontrar-nos neles, em diálogo e comunhão com suas necessidades, sorrindo com eles e recebendo-os em nossas casas. A hospitalidade é a chave para construir um mundo humano, sem fronteiras, onde todas as pessoas possam viver juntas e em paz.

A paz, por si mesma, é expansiva; por isso, encontrar-nos com Deus na própria morada interna não é fechar-nos num intimismo estéril; implica ampliar o espaço do coração para acolher o outro que pensa, sente e ama de maneira diferente, porque também ele é morada da Criança de Belém.

Texto bíblico: Lc 2,16-21

Na oração:

A paz é um dos dons que se faz visível no rosto do Deus-Menino e, como seus (suas) seguidores(as), somos desafiados(as) a uma visão mais aprofundada, pessoal e coletiva, sobre o sentido e a força mobilizadora da verdadeira paz.

- Como exercer o “ministério da pacificação” no seu ambiente cotidiano? Como reconstruir os vínculos que foram rompidos por questões políticas, religiosas...?

sábado, 24 de dezembro de 2022

Natal: Deus “é” Encarnação

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, SJ como sugestão para rezar o Evangelho do dia do Natal.

“E o Verbo se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,14)

Nenhuma palavra consegue expressar com profundidade o mistério do Natal que estamos celebrando. Talvez o melhor seria aplicar o provérbio oriental: “Se tua palavra não é melhor que o silêncio, cala-te”. Só em chave de silêncio podemos compreender a Encarnação e o Nascimento de Jesus. O que devemos descobrir não pode vir de fora, mas deve surgir do mais profundo de nós mesmos.

As leituras dos evangelhos indicados pela liturgia para o “tempo do Natal” certamente farão transbordar em nosso interior os sentimentos mais nobres e elevados. Mas isto não basta para nos situar diante do Mistério e vivê-lo com intensidade. Falamos de uma noite surpreendente, mas para a contemplação. Sem esta contemplação, permanecerá um vazio interior, sem nenhum sentido religioso. O valor desta festa depende de nossa atitude. Nada substituirá o itinerário para o centro de nós mesmo. Só ali acontece o mistério; só no mais profundo de nós mesmos descobriremos a presença de Deus.

Celebrar a Encarnação-Nascimento de Jesus pode nos ajudar a encontrar a Deus dentro de nós e no coração dos outros. Jesus nasceu, viveu e morreu em um lugar e um tempo determinado, mas não estamos celebrando um aniversário. Os dados históricos não têm maior relevância: não sabemos onde Jesus nasceu, não sabemos quando, nem em que dia ou mês. Tudo o que digamos d’Ele, a partir do ponto de vista histórico, aponta para o desconcerto. Não se trata de recordar e celebrar o que aconteceu faz dois mil anos, mas de descobrir o que está acontecendo hoje em cada um de nós. Devemos descobrir, celebrar e viver conscientemente essa realidade sublime. Este é o sentido do Natal.

O que celebramos, na noite de Natal, é precisamente isso: o “sublime Mistério da Encarnação de Deus” em cada coração humano e em todo o Universo.

Como costuma ocorrer com os grandes mistérios da fé, acabamos adocicando e esvaziando o conceito original de “Encarnação”. Preferimos dizer “natal ou natividade”, fazendo referência a um termo latino relacionado com o “nascimento”. Por isso, nos fixamos em um nascimento – o de Jesus – e colocamos à margem o que realmente significa “encarnação”. Talvez, no fundo, “essa coisa de carne” não nos convence muito: é como se fosse algo muito “vulgar”, material, prosaico..., que se conecta com nossa dimensão corporal-sexual.

Afirmar que “Deus se fez carne” é quase uma heresia. Segundo a mentalidade que foi se propagando no cristianismo Deus é o Absoluto e não pode ser “contagiado” com a matéria corporal.

No entanto, a partir da Revelação bíblica, a Encarnação é Deus dentro de nós e dentro de toda a Realidade existente, sem se confundir ou desaparecer no que é perecível, no transitório.

Este é o grande “milagre” de Deus. “O Verbo se faz carne” na pessoa de um Menino que, dentro de sua corporeidade e sua realidade como ser humano verdadeiro “interioriza Deus na Humanidade”.

“Tão humano, tão humano... só podia ser Deus” (Leonardo Boff).

Assim, a moral cristã, durante muitos séculos, alimentou uma espiritualidade “desencarnada”, piegas, cheia de culpas, angústias e remorsos. No fundo, negou-se uma dimensão humana tão nobre: o ser humano “é carne”. É da sua essência. O mistério da Encarnação-Nascimento vem iluminar e dignificar esta dimensão “carnal” que foi tão desprezada e gerou tantos conflitos morais. Na Encarnação do Filho, Deus se faz “carne”, se humaniza; assume e plenifica tudo o que é humano. Nada do humano é considerado como suspeita, fonte de pecado... Afinal, somos obras maravilhosas do Criador.

É preciso superar a pobreza do dualismo “corpo-alma” e retornar à visão antropológica bíblica onde o ser humano não “tem” corpo nem “tem” alma. Ele “é” corpo, “é” alma, “é” espírito, “é” sentimento, “é” relação, “é” afeto, “é” razão... Ele “é”, nas suas diferentes expressões.

A partir da Encarnação do Verbo não dá mais para imaginar um ser humano “compartimentado”, desintegrado, dividido nas suas dimensões existenciais. Ele “é” um todo, integrado, unido, pacificado...

Quão distante estamos da essência do Mistério da Encarnação!

Santo Inácio de Loyola, ao propor a “contemplação da Encarnação”, nos Exercícios Espirituais, afirma: “recordar como as Três Pessoas divinas determinam, em sua eternidade, que a Segunda Pessoa se faça homem, para salvar o gênero humano”.

A Encarnação é o mistério fundante de nossa fé a ser vivido e não pensado. A Encarnação não é um evento isolado da história. Toda a Criação foi afetada; todos os fatos da história encontram nela seu sentido. A história humana se faz História de Salvação.

Assim sendo, “Deus não só se encarna; Ele é Encarnação”. A Encarnação não é um ato pontual, mas uma “atitude eterna de Deus”. A Encarnação já começa na criação do mundo: “Tudo foi feito por Ele, e sem Ele nada se fez de tudo que foi feito” (Jo 1,3); tudo é perpassado pela Sua Presença. Estamos falando do Verbo que tem a ousadia de penetrar as categorias de espaço e tempo, as únicas que nós temos para conhecer em plenitude a realidade de tudo.

Deus já veio, está vindo deste sempre; só o esperamos e o celebramos seu Nascimento de um modo simbólico, religioso, fraternal. Por isso, o Natal é tão inspirador e nos enche de paz, por saber que carregamos Deus dentro de nós, embora nem sempre saibamos disso, nem O vejamos. Deus deixa de ser o eterno desconhecido para se tornar “Emanuel”, Deus conosco. Já estamos salvos porque Deus se “encarnou” em nós, em todos: sem distinção de credo religioso, raça, língua, época em que se viva, idade que tenhamos, etc. “Assim novamente encarnado”, nos diz S. Inácio nos EE (n. 109). Encarnação permanente.

E por isso nos felicitamos, porque não somos órfãos, nem estamos perdidos em um Universo imenso, mas porque Deus é nosso cúmplice, o melhor avalista de que nossa vida é já Vida n’Ele.

Eis o “realismo da Encarnação”! Cada vez mais nos conscientizamos, com maior evidência, de que a Encarnação do Filho é isto: tomar a carne concreta da humanidade para viver nela, a partir dela, através dela, para dignificá-la na sua plenitude.

O Verbo não fez uma experiência de homem, mas, antes, “se humanizou”, se fez “carne”, na expressão de João (1,14). Mas é “Carne” que podemos ouvir, que podemos ver com os olhos, que podemos contemplar ou apalpar com as nossas mãos (1Jo. 1,1); “carne” de presépio e de patíbulo, “carne” de ternura e de coragem, “carne” de trabalho e de descanso; “carne” de homem e de mulher, “em tudo semelhante a nós”.

No Natal celebramos precisamente que Deus se fez “pele” e se deixou impactar por tudo aquilo que o rodeava. Tudo isso é Deus na nossa carne quente e mortal. Um Deus que “adentrou” na humanidade e de onde nunca mais saiu; um Deus que agora pode ser buscado em nossa interioridade e em tudo o que é humano. Na pobreza, na humildade da própria história pessoal, inserida na grande história da humanidade, torna-se possível acolher o dom do amor de Deus visível no Menino do Natal.

Texto bíblico: Jo. 1,1-18

Na oração:

No Natal, diante do “Deus Ternura”, nossas reservas de bondade, compaixão, inocência, mansidão... são ativadas para dizer “sim” ao incompreensível Amor...

- Alargue seu interior para acolher a surpresa permanente da Encarnação d’Aquele que, em sua humanidade, iluminou e deu sentido a tudo o que é humano.

- Mergulhe na contemplação do “mistério da Encarnação” e deixe ressoar o chamado a ser “presença encarnada” neste mundo tão carente de vida, de beleza, de humanização...

quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

José do Advento

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana), como sugestão para rezar o Evangelho do 4º  Domingo do Tempo do Advento (Ano A).

“José, Filho de Davi, não tenhas medo de receber Maria como tua esposa...” (Mt 1,20)

A liturgia do quarto domingo do Advento nos motiva a buscar inspiração na pessoa de São José, indicando-o como apoio e guia nos momentos de obscuridade e de dificuldade; ele é o homem do discernimento que, na solidão, no silêncio e na atenção ao seu coração, vai vislumbrando o caminho a assumir e a decisão a ser tomada. Sua presença silenciosa põe em destaque a pessoa de Maria que, por seu “fiat” e sua maternidade se revela a protagonista do Advento.

No contexto do mistério da Encarnação, José se revela como um personagem de “segundo plano”, discreto e silencioso, recordando-nos o protagonismo oculto, mas imprescindível, de todos(as) aqueles(as) que atuam em favor do Reino, aparentemente escondidos(as) ou na “segunda fila”.

O Advento realça o valor de todas essas pessoas que não são como os cata-ventos que brilham no alto, mas vigas que sustentam o edifício no porão, e que tecem o essencial da existência. Pessoas aparentemente anônimas – mães, mestres, avós, amigos – que estão aí ajudando a construir um novo mundo, às vezes sem o reconhecimento por sua atitude sem preço. Assim também foi o caso do próprio Jesus de Nazaré, durante a maior parte de sua vida.

Neste 4º. domingo do Advento, fazemos memória de São José como o referente de todas as pessoas que vivem uma profunda fidelidade a Deus, quase sem serem percebidas, mas com um protagonismo sem igual na história da Boa Notícia. O mundo precisa de homens e mulheres de discreta e humilde presença para sustentar os outros, sobretudo aqueles que carecem dos recursos necessários e vínculos humanos.

A atitude de José, homem de “segunda fila”, revela uma humildade e uma confiança tão cheia de generosidade como de incompreensão. Também foi grande o seu “fiat”. Abandonou-se no mistério de Deus, e isto implicou assumir uma missão incômoda que, certamente, não foi compreendida e aceita entre seus parentes e vizinhos; com plena disponibilidade e fé adulta acolheu os planos de Deus sem exigir maiores explicações. Seu lugar, a partir de então, é de “segunda fila”, cuidando amorosamente de sua família e renunciando todo protagonismo de intenso brilho.

São José é conhecido como o santo do Advento porque neste tempo nos ensina com sua vida a atitude da espera e da confiança total em Deus que sempre cumpre suas promessas, embora, às vezes não coincidam com nossos planos. Com S. José podemos aprender de sua fé e sua humildade a dobrar nosso ego; sua valentia nos inspira a viver com mais disponibilidade; seu despojamento nos ajuda a afastar de nossa vida a busca de ostentação e vanglória... Atitudes estas que certamente acabaram lhe proporcionando uma verdadeira paz interior.

José de Nazaré foi aquele que se abriu ao Deus surpreendente e deixou-se conduzir por Ele. Dele não se diz muito nos evangelhos, mas o que ali se diz nos revela uma presença surpreendente, capaz de ver mais além do cotidiano e estabelecido. Presença que aponta para uma outra presença, a de Jesus.

Lendo o Evangelho com uma sensibilidade mais apurada podemos encontrar, com facilidade, uma descrição muito aproximada de quem era José, da casa de Davi. Em cada gesto de Jesus, revelava-se um ensinamento do Pai e de seu pai José; em cada parábola havia uma expressão da natureza e da terra com o selo de José, e uma mensagem espiritual inspirado a partir do alto. Em cada cura que Jesus realizava havia um modo e uma sensibilidade de tratar o enfermo, o desvalido, herdados da tradição mantida por José; e à hora de orar havia um hábito criado na casa de seu pai, fiel cumpridor da lei mosaica e aberto à novidade e ao mistério que seu filho Jesus deixava transparecer.

Enfim, quem, senão José, juntamente com Maria, pôde ensinar a Jesus a tratar às pessoas, a servir os mais pobres, a olhar, a falar, a sorrir...!

Seria um equívoco considerar José uma espécie de marionete nas mãos de Deus, ou que fosse atropelado na sua liberdade. A mensagem evangélica tem como ponto de partida a convicção de ser possível o ser humano "escutar e praticar" a vontade de Deus, mesmo quando lhe é pedido algo, à primeira vista, superior à capacidade de suportar. José não deu mostras de agir a contragosto, acuado, pressionado ou duvidoso. Agiu com a liberdade de quem sabe o que faz, colocando-se à inteira disposição de Deus, com total generosidade. Ele conhecia as bases em que se fundamenta sua relação com Deus, onde se enraíza sua disposição para viver em profunda sintonia com Aquele que conduz a história para a sua plenitude.

José, na sua vocação paterna, torna-se “diá-fano” de Deus Pai (deixa transparecer a imagem paterna/ materna de Deus). Através do seu modo de ser e de agir, carregado de silêncio inspirador, José, não só revela uma profunda comunhão com Aquele que o chamou a assumir a vocação paterna, mas deixou “fluir”, no cotidiano e na simplicidade de sua vida, os atributos d’Aquele que o conduzia. O coração de José passa a pulsar em acorde com o coração de Deus Pai: a Paternidade divina flui na paternidade humana.

Deus Pai encontrou liberdade para ativar e tornar visível em José as características próprias de um pai:

“Não se nasce pai, torna-se tal... E não se torna pai, apenas porque se colocou no mundo um filho, mas porque se cuida responsavelmente dele. Sempre que alguém assume a responsabilidade pela vida de outrem, em certo sentido exercita a paternidade a seu respeito”.

(Papa Francisco, Patris Corde)

Porque estava presente a Deus, José fez-se presente nos momentos decisivos da Família de Nazaré, bem como fez-se presente na vida das pessoas. Uma presença que faz a diferença: presença solidária, marcada pela atenção, prontidão e sensibilidade, próprias de um pai que acompanha tudo com ternura.

Sua presença não era presença anônima, mas comprometida; presença que é “música calada” nos lugares cotidianos e escondidos, que sabe enternecer-se e escutar as inquietações que procedem desses lugares. Uma presença que descobre o próximo no próximo, que sabe resgatar a solidariedade na vida cotidiana; uma presença que se manifesta na ausência de recompensa ou de interesse próprio.

Em meio à rotina de uma vida simples, José foi fazendo-se perguntas, esperando as respostas, ouvindo o que seu coração lhe dizia e discernindo o que Deus queria dele. Ano após ano, em um pequeno lugar, detrás de uma vida que nada tinha de diferente das outras vidas.

José, em Nazaré, continua sendo luminoso e inspirador para todos nós, num momento em que as transformações são rápidas e exigem de nós maturidade, aprendizado, diálogo, novas expressões de fé...

Como homem, José precisou passar pelo processo do amadurecimento lento, lançando mão de todos os recursos que encontrou em seu próprio interior e ao seu redor.

Cozinhar a fogo lento é bem difícil neste mundo de pressas e imediatismos. E hoje, mais do que nunca, se fazem necessários os “tempos de Nazaré”, esses tempos de aparente rotina nos quais se alimentam os sonhos, onde se forjam as vontades, se domam as impaciências, se aclaram os caminhos, se discerne a Voz, se dissipam as névoas do caminho...  Em definitiva, esse tempo onde nosso canto e o de Deus se afinam juntos para formar uma única melodia e fazê-la ressoar no mundo.

Texto bíblico:  Mt 1,18-24

Na oração: Deus nunca deixa de atuar no meio das nossas noites, dúvidas, provações. Ele conhece nossos pensamentos e temores. E, no momento certo, nos liberta dos  nossos medos e nos dá a conhecer sua Vontade.

- Recordar momentos de dúvidas, incertezas, desolações..., mas que lhe ajudaram a amadurecer na fé e na adesão ao projeto de Deus.

- Diante de pequenas ou grandes decisões: há espaço e tempo de discernimento? de escuta atenta?

sábado, 10 de dezembro de 2022

A surpreendente novidade que vem das “periferias existenciais”

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana), como sugestão para rezar o Evangelho do 3º  Domingo do Tempo do Advento (Ano A).

“Ide contar a João o que estais ouvindo e vendo” (Mt 11,4) 

Na prisão de Maqueronte, onde está confinado por ordem de Herodes, João Batista recebe notícias de Jesus; e o que ele ouve o deixa desconcertado, pois Jesus não corresponde às suas expectativas. João espera um Messias que se imponha pela força terrível do juízo de Deus, salvando àqueles que acolheram seu batismo e condenando àqueles que o rejeitaram. Quem é Jesus?

Nem João, nem os rabinos, nem os sacerdotes, nem os apóstolos estavam capacitados para entender Jesus. Sua presença e atuação não se ajustavam ao que eles esperavam do Messias. Jesus rompe com todas as concepções e esquemas mentais, desmonta todas as expectativas, frustra uma visão...

A novidade de Jesus é muito maior do que aquilo que podiam esperar; além disso, o que Ele traz vai na direção contrária do que esperavam do Messias. Não vem com poder e força; não vem impor nada, senão propor uma dinâmica de serviço e desatar a vida travada. Jesus “tem um caso de amor com a vida”.

Para sair de suas dúvidas João envia dois discípulos que perguntam a Jesus sobre sua verdadeira identidade: “És tu, Aquele que há de vir, ou devemos esperar um outro”?

A resposta de Jesus não é teórica, mas muito concreta e precisa: contai a João o que estais vendo e ouvindo. Eles perguntam a Jesus por sua identidade e este responde através de sua atuação terapêutica (curar e cuidar da vida); Ele se dá a conhecer através de ações concretas em favor da vida: os cegos veem, os coxos andam, os leprosos ficam limpos, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam...

O que o profeta Isaías anunciava como futuro, agora se faz presente em Jesus.

Jesus sabe que sua resposta pode decepcionar àqueles que sonhavam com um Messias poderoso. Por isso acrescenta: “Feliz aquele que não se escandaliza por causa de mim!”. Que ninguém espere outro Messias que realize outro tipo de “obras”; que ninguém invente outro Cristo a seu gosto, pois o Filho foi enviado para tornar a vida mais digna e ditosa para todos, até alcançar a plenitude na festa final do Pai.

Estes são os sinais da presença do Messias: alívio para quem sofre, acolhida para quem é excluído, vida para quem se sente morrer, visão para quem se encontra na penumbra, fortaleza para os joelhos frágeis... Feliz aquele que aceita que este é o Deus da Vida, Aquele que desce, se faz carne humana, para acolher em si a dor e o sofrimento de todos, sobretudo daqueles que são vítimas e estão excluídos.

O modo de agir de Jesus em favor da vida deve também inspirar o nosso modo de agir durante o Advento. Não tem sentido despertar nossa sintonia com Aquele que colocou a vida dos mais pobres e sofredores no centro de sua missão se não ativarmos nossa sensibilidade e nosso compromisso com aqueles que são vítimas das estruturas sociais e políticas injustas. Viver em “estado de Advento” não é se fixar no futuro, aguardando a vinda d’Aquele que já está sempre presente e que se faz visível nos rostos dessas vítimas.

“Ser Advento” implica “descer” junto à humanidade, recompondo vínculos quebrados, superando ódios e intolerâncias, mobilizando energias e criatividade para que a vida de todos possa ser desbloqueada e encontre espaço para se expressar em sua plenitude.

Portanto, Advento sem compromisso com a vida é Advento estéril, com cheiro de morte.

Para conhecer Jesus, o melhor é ver de quem Ele se aproxima e a que Ele se dedica. Para captar bem sua identidade não basta confessar teoricamente que Ele é o Messias, Filho de Deus. É preciso sintonizar-nos com seu modo de ser Messias, que não é outro senão o de aliviar o sofrimento humano, curar a vida ferida e abrir um horizonte de esperança aos pobres.

Os cegos, surdos, coxos, leprosos, pobres e muitos outros coletivos no mundo de hoje, continuam sendo símbolos da marginalização mais radical que afeta muitíssimos seres humanos. O texto do evangelho deste domingo quer ressaltar que a chegada do Reino terá consequências para todos, mas sobretudo para os mais excluídos, que tinham perdido toda esperança e o sentido do viver.

Como podemos perceber, entre os sinais da presença do Messias não há um só sinal “religioso”: nem culto, nem rezas, nem sacrifícios, nem doutrinas, nem leis... Isto nos deveria fazer pensar.

Nós cristãos, com frequência, esquecemos que, para Jesus, primeiramente vem a vida, depois o culto; em primeiro lugar, o compromisso em aliviar a dor humana, depois a religião.

Não são só os cegos, surdos, coxos, doentes que fazem presente o Reino, mas também aqueles que se preocupam com eles. Só as ações em benefício dos outros deixam transparecer a presença de Deus.

Entrar na dinâmica do Advento, significa estar dispostos a aproveitar qualquer ocasião para tornar presente o Reino, não frustrando aqueles que esperam de nós atitudes comprometidas com a vida.

Nas páginas dos Evangelhos não vemos um Jesus fixo no deserto ou no templo, mas caminhando por toda a Galileia; aproxima-se dos últimos e excluídos, vítimas do contexto social e religioso da época.

O centro da sua missão é aliviar todo sofrimento humano, restabelecendo a vida onde ela está ferida.

Quando se luta contra o sofrimento, quando se alivia a dor, quando se abre uma vida mais sadia... ali está atuando o Reino de Deus. O que Jesus fez, fundamentalmente, foi curar a vida.

Pode-se dizer que toda a atuação de Jesus está encaminhada a criar uma sociedade mais saudável, mais humana, mais respirável, mais leve... Recordemos a rebeldia de Jesus frente a tantos comportamentos patológicos de raiz religiosa; como Ele critica o rigorismo, o legalismo, o culto vazio de amor... Jesus quer sanar a religião; seu esforço visa criar uma sociedade mais justa e solidária; sua oferta de perdão gratuito é para todos; sua atitude acolhedora envolve a todos os maltratados pela vida ou pela injustiça dos homens...

Em tempos de fanatismos, intolerâncias e preconceitos, precisamos assumir uma atitude firme a partir do evangelho da Boa Nova de Jesus. Atitude que nos faça ter “os olhos fixos em Jesus” (Hb 12,2) para recriar a história a partir de seu sentir. Precisamos desprender-nos de nossas “catedrais simbólicas” e de nossos rituais estéreis que nos distanciam da realidade escandalosa da exclusão. “Não há cristianismo sem carne” (Pagola), sem vida e paixão pelos últimos e abandonados.

É preciso sair dos limites conhecidos, de nossas seguranças, para adentrar-nos no terreno do incerto; sair dos espaços onde nos sentimos fortes para arriscar-nos a transitar por lugares onde somos frágeis; sair do inquestionável para enfrentarmos o novo...

É decisivo estarmos dispostos a abrir espaços em nossa história a novas pessoas e situações, novos encontros, novas experiências... Porque sempre há algo diferente e inesperado que pode nos enriquecer...

A vida está cheia de possibilidades e surpresas; inumeráveis caminhos que podemos percorrer; pessoas instigantes que aparecem em nossas vidas; desafios, encontros, aprendizagens, motivos para celebrar, lições para aprendermos e que nos farão um pouco mais lúcidos, mais humanos e mais simples...

A periferia passa a ser terra privilegiada onde nasce o “novo”, por obra do Espírito. Ali aparece o broto original do “nunca visto”, que em sua pequenez de fermento profético torna-se um desafio ao imobilismo petrificado e um questionamento à ordem estabelecida.

As fronteiras e as periferias constituem o espaço privilegiado onde nascem e crescem as alternativas, onde brota o emergente como possibilidade de Vida nova, que transcende todo sinal de morte.

Texto bíblico: Mt 11,2-11

Na oração:

Como cristãos, a que Messias seguimos hoje? Somos seguidores(as) de uma Pessoa que fez do compromisso com a vida o centro de sua missão ou seguidores de uma religião só preocupada com ritos, doutrinas, leis...?

Dedicamo-nos a fazer as “obras” que Jesus fazia? Que estamos realizando em meio a este mundo marcado por tantas violências e mortes? O que as pessoas estão “vendo e ouvindo” na Igreja de Jesus? O que elas estão “vendo e ouvindo” em nossas vidas? Deixamos transparecer o “espírito do Advento” no nosso encontro com os outros?

quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

ADVENTO: tempo para cuidar das raízes

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana), como sugestão para rezar o Evangelho do 2º  Domingo do Tempo do Advento (Ano A).

“O machado já está na raiz das árvores” (Mt3,10)

Sentimos indignação quando alguém corta uma árvore e deixa desnudo uma cepa do velho tronco com suas raízes ainda fundadas na terra. Estava já velha, dizem alguns. Era um perigo, comentam outros. Só ocupava lugar, exclamam mais alguns. Todos apresentam justificativas para eliminá-la e jogá-la abaixo. Todos têm razão quando se trata de eliminar o que é visto como inútil ou velho.

No entanto, quando acreditavam que o velho tronco estava condenado a desaparecer, se esqueceram que ainda não tinham arrancado suas raízes. Subitamente, quando menos esperavam, viram como novos rebentos brotavam no tronco velho. O tronco estava para ser cortado, mas as raízes ainda tinham vida. E enquanto há vida nas raízes, a vida é possível. “Do velho tronco de Jessé, brotará o rebento que é Jesus”. A vida é mais forte que a velhice; a vida é mais forte que o robusto tronco; a vida sempre triunfa sobre aquilo que consideramos inútil, estorvo ou perigo.

O problema que nos aflige hoje, talvez, não seja tanto referente aos troncos, mas um problema de raízes. Há demasiadas vidas sem raízes profundas; há demasiadas instituições carentes de raízes, que terminam sendo instituições vazias; há demasiadas vocações sem raízes profundas, que nascem de ideais mais emotivos que evangélicos; há demasiadas decisões sem raízes, porque são tomadas em um momento emocional, mas sem terra que as sustente; há demasiadas convicções ideológicas sem raízes...

Por isso são vidas que morrem facilmente; morrem com a facilidade com a qual morrem os sentimentos que as sustentavam. Suas raízes estão tão na superfície da terra que acabam morrendo antes que o tronco.

Cultivamos os ramos com muito esmero, mas nos esquecemos das raízes. Cultivamos muito o tronco, mas não alimentamos as raízes; cultivamos muito a aparência, mas não nos preocupamos em colocar água nas silenciosas raízes que não se veem.

Quando as raízes têm vida, pode ser que alguns ramos se sequem, mas ainda permanecem outros suficientes para embelezar a árvore. Quando as raízes têm vida, podemos encontrar dificuldades no caminho, mas a vida é mais forte que os obstáculos. Quando as raízes têm vida, podemos passar por momentos de prova, mas a vida que sobe pelo tronco é mais forte. Com frequência, passamos a maior parte do tempo regando os ramos enquanto as raízes morrem de sede.

O evangelho deste domingo nos revela que João Batista é o broto novo no velho tronco. No velho “tronco” de ontem (1º. Testamento), “vem a palavra de Deus sobre João, filho de Zacarias, no deserto”. João não é do AT. Tampouco do NT. Ele é a travessia, a ponte, o broto novo. Ele é o anúncio do novo que está prestes a brotar. O AT é um velho tronco que já não dá fruto, mas em suas raízes ainda permanece uma Vida que no NT será revitalizada.

Porque o que Deus semeou durante séculos são sementes de Vida. Desaparecerá o tronco, mas suas raízes ainda têm vida.

João é o novo rebento que anunciará a nova Árvore e a nova Vida. E ele mesmo começa por lançar água nas velhas raízes, anunciando a conversão do coração. Cultivar as raízes é fazer que, até os velhos troncos renunciem a morrer, mesmo que os cortemos, pois a vida das raízes encontrará novos brotos para continuar crescendo e vivendo. Serão vidas novas; serão troncos novos.

O tempo litúrgico do Advento se revela como um momento privilegiado que nos motiva a “descer” em direção às nossas raízes interiores, para ativá-las, cultivá-las e evangelizá-las. Nosso contexto social-político-religioso está saturado das “palhas” da aparência e da superficialidade, gerando o veneno do ódio, da intolerância e da violência contra quem “pensa-sente-ama” de maneira diferente. É preciso levar as águas vivas do evangelho às profundezas do coração.

Nesse sentido, Advento nos revela um componente de expansão, que alarga nosso ser, que nos dinamiza e nos eleva, ao mesmo tempo que é experiência radical daquilo que é mais humano em cada um. A partir das “raízes interiores” o Advento ilumina e dá sentido ao nosso modo de ser e viver; ao abarcar toda a vida, alcança também a nossa ação transformadora no mundo.

Espiritualidade do Advento é a força vital que sacode nosso mundo interior, alimenta nossas raízes e faz surgir novos brotos que se visibilizam na nossa maneira original e inspirada de ser e viver no mundo de hoje.  Tal força regenerativa procede do Espírito Santo de Deus, que nutre e aquece nossa vida.

Compreendemos, então, que espiritualidade não tem a ver com práticas piedosas alienadas e autocentradas; é uma experiência que deve ter raízes no coração, precisa de interioridade. Se não tem interioridade,

não tem sonhos nem criatividade. No interior de cada um existe uma riqueza acumulada que procura se expressar (sentimentos, atitudes e valores, crenças, motivações, intuições...). O nível profundo é o nível da Graça, da gratuidade, da abundância... onde a pessoa mergulha no silêncio à escuta de todo seu ser.

O Evangelho de Mateus nos apresenta João Batista clamando por conversão, “porque o reinado de Deus está próximo”.

João contempla a realidade de seu povo e sente o impacto da violência e exclusão que tanto o poder religioso como o civil impunham a todos. Sua mensagem se concentra neste grito: “Preparai o caminho do Senhor, endireitar suas veredas!” Também o Papa Francisco grita a mesma mensagem aos cristãos de hoje e nos lança uma pergunta: “Estamos decididos a percorrer os caminhos novos que a novidade de Deus nos apresenta ou nos entrincheiramos em estruturas caducas, que perderam a capacidade de resposta?”.

O Advento nos mobiliza a “descer” ao chão da vida para cultivar e cuidar do nosso ser essencial com o mesmo cuidado que tem o camponês quando trabalha a terra e a plantação. Apenas aquelas pessoas que se mantêm próximas ao chão, às raízes da vida, conseguem manter também esta postura totalmente radical, a “humilitas” que vem de húmus, o chão escuro, úmido e fértil da terra.

 Somos Advento, ou seja, pessoas “radicais”, que vivem a partir das raízes.

“Radicalidade” significa, portanto, ser suportado, carregado e alimentado por uma raiz que está plantada fundo no chão. É como uma árvore que se apoia, se sustenta e se alimenta das suas raízes. Radical é aquele que vive perto da raiz, que se alimenta da raiz, que toma as coisas pela raiz, pelo fundamento.

O sentido que “radicalidade” transmite é esta proximidade do chão, este estar plantado no chão da vida ou estar enraizado na terra, na realidade. Quando dizemos que os homens e as mulheres do Advento costumam ser radicais, queremos mencionar, em primeiro lugar, esta proximidade da terra e do húmus, esse enraizamento profundo que alimenta a vida, que sustenta o tronco e a copa da árvore em todo e qualquer tempo, dando-lhes firmeza e consistência.

Texto bíblico: Mt 3,1-12

Na oração:

Sou pessoa de “raiz” ou me deixo determinar pela superficialidade, aparência? Posso dizer que minha vida está enraizada na pessoa de Jesus e na causa do Reino?

- João foi o oposto da sociedade de seu tempo; ou seja, não se encaixou comodamente à maneira de ser e de pensar de seus contemporâneos. Como eu me comporto no ambiente em que vivo? Há algo de anúncio-denúncia em minha maneira de ser e viver? Minha presença na realidade cotidiana é inspiradora? Faz a diferença?...

terça-feira, 22 de novembro de 2022

Advento: Um Brado de Esperança

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana), como sugestão para rezar o Evangelho do 1º  Domingo do Tempo do Advento (Ano A).

 

“...ficai preparados! Porque na hora em que menos pensais, o Filho do Homem virá” (Mt 24,44) 

Estamos no primeiro dia do Novo Ano litúrgico. Começamos com o Advento, que não é somente um tempo litúrgico, mas um modo de viver. Trata-se de uma atitude vital que precisa atravessar toda nossa existência. Não teremos entendido nada da mensagem de Jesus se ela não nos inspira a viver em constante busca daquilo que já está presente em nosso interior. O importante não é recordar a primeira vinda de Jesus; isso é só o pretexto para descobrir que Ele já está presente em nós e na nossa realidade. Também não se trata de nos preparar para a última vinda, que é só uma grande metáfora. O importante é descobrir que Ele está vindo neste instante.

É preciso re-acender o espírito do Advento, porque estamos adormecidos ou sonhando com conquistas superficiais, e não assumimos a existência com a devida seriedade. Tudo o que esperamos de Deus, já o temos dentro de nós.

“Vigiai”, “estai despertos”, “ficai atentos”: são apelos que ressoarão em nosso interior durante a travessia do Advento. Para ver, é preciso não só ter os olhos abertos, mas também luz. Não se trata de contra-atacar o repentino e nefasto ataque de um ladrão. É preciso estar desperto para assumir a vida com uma consciência lúcida. Trata-se de viver intensamente, para que a vida não transcorra na esterilidade e no vazio.

Se permanecemos adormecidos, não acontecerá nada. Isto é o que pode nos causar medo: transcorrer nossa existência sem desatar as ricas possibilidades de plenitude que nos foram confiadas. A alternativa não é salvação ou condenação. Ninguém vai nos condenar. A alternativa é: viver com mais sentido e sabor ou simplesmente vegetar.

O Advento é tempo para dispor-nos a algo surpreendente. O que estamos esperando é alucinante, imenso, fora do nosso tempo rotineiro. Intuímos que nossos olhos foram criados para uma visão mais profunda, mais humana, mais plena; desejamos ser um pouco mais lúcidos, mais sensíveis, muito mais corajosos para descobrir a profundidade e a riqueza de tudo o que acontece ao nosso redor e dentro de nós.

Eis o mistério: o Esperado traz uma novidade que nos mobiliza e que se revela em cada gesto de humanidade e em cada fragmento de tempo, deste “kairós” colocado em nossas mãos.

Tudo na vida requer preparo, e toda preparação exige empenho e mudança..., envolve uma espera.

Somos feitos disso: desejo, súplica, anseio, busca, esperança... No mais profundo de cada um brota um desejo que nos faz bradar ao Eterno, pedindo ajuda: “Vem, Senhor, nos salvar! Vem sem demora nos dar a paz!” Tudo aponta para o vazio infinito dentro de nós, ressoando uma certeza: Ele vem! Ele está vindo em nossa direção!

O texto do evangelho deste primeiro domingo de Advento pertence ao chamado gênero apocalíptico. Este gênero literário, recorrendo às imagens e palavras que parecem catastróficas, se utiliza delas para falar de um futuro que se revela como novidade radical. Para acolher Aquele que vem ao nosso encontro é preciso romper os espaços estreitos de nossa vida, alargar o coração, expandir os sentimentos...

Para além das imagens utilizadas, a intenção parece clara: é um chamado a “despertar”, “a estar vigilantes”, “a estar preparados”...

Dentro do mal-estar social persistente que estamos vivendo, há algo muito saldável: nosso desejo de viver de uma maneira mais propositiva e menos deprimida, mais digna e menos superficial. O que precisamos é re-orientar nossa vida. Não se trata de corrigir um aspecto ou outro de nossa pessoa. Agora o importante é ir ao essencial, encontrar a fonte de vida e salvação.

Não podemos deixar que o desespero e o desânimo destruam em nós o dinamismo e o desejo de continuar caminhando dia-a-dia, cheios de vida; não podemos deixar que a esperança vá se diluindo em nós quase sempre de maneira silenciosa e imperceptível; não podemos deixar que, sem nos dar conta, nossa vida vá perdendo cor e intensidade; quando parece que tudo começa a ser pesado e cansativo, a verdadeira alegria vai desaparecendo de nosso coração e já não somos mais capazes de saborear o bom, o belo e o verdadeiro que há na nossa vida.

Apesar das sombras e sofrimentos causados pela violência social, política e religiosa que estamos vivendo, o Advento vem “des-velar” (tirar o véu) e ativar os dinamismos de solidariedade, compaixão, gratuidade... presentes no coração de cada um. A bondade nos constitui, é da nossa essência O ser humano é criado à imagem e semelhança de Deus-Amor, amor incondicional e misericórdia sem limites. O bem e o amor em nós, são mais fortes que o mal e o ódio. O que de Deus há em nós é maior que nossa miséria e limites. Nosso verdadeiro ser é bondoso. Fomos feitos de amor e para o amor. Se vivemos isso, de verdade podemos ser sal, luz e força, uns para com os outros, como nos ensina Jesus.

Com a mente bem aberta, atenta, podemos e temos de analisar o que está acontecendo conosco, descobrir e compreender suas causas e comprometer-nos com as mudanças necessárias. Inspirados(as) com a força do Espírito podemos levar adiante as transformações que se fazem necessárias.

Assim, o percurso do Advento vem despertar aquela “virtude teologal” tão ausente no atual contexto social e religioso: a esperança; ela é o recurso secreto do ser humano itinerante. Somos abertura e, portanto, estamos sujeitos à mudança. A esperança é a guia que nos orienta na mudança.

Esperar é ousar re-nascer, advir, vir-de-novo, re-começar... na fulgurante arte de tecer a vida nisso que ela tem de mais íntimo e cotidiano.

Um canto de e de esperança segura: esse é o sentido da existência cristã.

Movidos por essa esperança, podemos dar sabor à nossa vida, muitas vezes modesta e simples. Ter esperança é, essencialmente, busca incessante, luta por aquilo que não tem lugar agora, mas, acredita-se, terá um dia.

A esperança tem suas raízes na eternidade, mas ela se alimenta de pequenas coisas. Nos pequenos gestos ela floresce e aponta para um sentido novo.

É preciso ter a audácia de reinventar o humano; é preciso resgatar a paixão por uma causa irrecusável; paixão pela inconformidade de as coisas serem como são; paixão pela vitória da esperança; paixão pelo sonho de, procurando tornar as pessoas melhores, melhorar a si mesmo; paixão, em suma, pelo futuro.

Texto bíblico: Mt 24,37-44

Na oração:

“é proibido pecar contra a esperança!”

A esperança tem sempre algo em comum com o desejo. Quem não deseja não pode esperar.

Desejar é manter-se maduro(a) para a esperança. Sua ausência paralisa, bloqueia, desumaniza...

- Que esperanças alimentam sua vida neste momento e contexto social tão marcado por divisões, conflitos, ódios?

Um Rei em “más companhias”

Texto do Pe. Adroaldo Palaoro, sj (Centro de Espiritualidade Inaciana), como sugestão para rezar o Evangelho da Solenidade de Cristo Rei, que encerra o ano litúrgico.

“Jesus, lembra-te de mim, quando entrares em teu reinado (Lc 23,42) 

Rei, não há outra palavra menos apropriada para Jesus.

Jesus, rei atípico.  Os reis deste mundo vivem às custas de seus súditos: explorando, dominando...

Jesus, no entanto, reina perdoando, amando e comunicando vida a partir de uma situação de humilhação e impotência extremas. Um rei crucificado é uma contradição e um escândalo. Lucas nos diz onde e como Jesus ganha este título de rei: na entrega de sua vida até à morte. Seu senhorio é de amor incondicional, de compromisso com os pobres e excluídos, de liberdade e justiça, de solidariedade e de misericórdia.

O título de Cristo Rei corre o risco de ser utilizado de uma forma pagã, como uma pura imitação dos reis deste mundo. O triunfalismo religioso e político tem utilizado este título para defender ideias dominadoras, triunfalistas e conservadoras.

Esse é a maior contradição da história humana: o Crucificado é esperança dos pobres, dos pecadores e de todos os sofredores. Jesus é Rei desta forma e não da forma triunfalista como querem os cristãos “gloriosos”. Um rei que toca leprosos, que prefere a companhia dos excluídos e não dos poderosos deste mundo. Um rei que lava os pés dos seus, um rei que não tem dinheiro e que não pode defender-se, que não tem exército... Um rei sem trono, sem palácio, sem pompas, sem poder.

Jesus crucificado é um estranho rei: seu trono é a Cruz, sua coroa é de espinhos. Não tem manto, está desnudo. Até os seus o abandonaram. Pobre rei!

Por isso, para poder aplicar a Jesus o título de “rei”, devemos despojá-lo de toda conotação de poder, força ou dominação. Jesus sempre se manifestou contrário a todo tipo de poder, sobretudo do poder religioso, o mais nefasto. E não só condenou aqueles que dominam como também condenou, com a mesma veemência, aqueles que se deixam dominar.

Jesus quer seres humanos completos, isto é, livres. Ele quer seres humanos ungidos pelo Espírito de Deus, que sejam capazes de manifestar o divino através de sua humanidade. Tanto o que escraviza como o que se deixa escravizar, deixa de ser humano e se afasta do divino.

Jesus quer que todos sejamos “reis” ou “rainhas”, ou seja, que não nos deixemos escravizar por nada nem por ninguém. Quando responde a Pilatos, não diz “sou o rei”, mas “sou rei”; com isso, está demonstrando que não é o único, que qualquer um pode descobrir seu verdadeiro ser e agir segundo esta exigência.

Há uma nobreza presente em nosso interior e que é ativada no encontro com o outro, através da compaixão, do serviço, do amor solidário...

Devemos estar conscientes de que o sentido que queremos dar a esta festa não é aquele dado pelo papa Pio XI, há quase 100 anos, e nem mesmo aquele sentido que é dado pela maioria dos cristãos. Devemos conservar o título, mas mudar a maneira de entendê-lo, ou seja, com o Evangelho na mão podemos continuar falando de “Jesus rei do universo”.

Jesus será “Reino do Universo” quando a paz, o amor e a justiça reinarem em todos os rincões da terra, quando todos forem testemunhas da verdade, quando em todos os ambientes a mesa do Reino se tornar mesa de inclusão e de acolhida... Jesus será Rei quando estivermos dispostos a fazer descer da Cruz aqueles que estão dependurados nela. E são tantos os crucificados no nosso contexto social e religioso!

O Evangelho da festa de hoje faz parte da narração da Paixão de Jesus. Fixemos nosso olhar nos personagens que assistem ao tremendo espetáculo da crucifixão. O povo estava ali olhando. Não é a multidão que habitualmente O segue, mas pessoas que assistem com curiosidade zombadora.

Os chefes, as autoridades religiosas escarneciam de Jesus. Eles conservavam a ideia de um Messias triunfal. Tem um Deus feito à medida de seus interesses. A mensagem de Jesus não os afetou. Julgavam-se em posse da verdade.

Os soldados também lhe zombavam. Aproximavam-se dele para dar-lhe vinagre. Os executores da violência do poder romano não podiam entender um rei que não fazia nada para defender-se.

O letreiro também indicava ironia: “Este é o rei dos judeus”.

Um dos ladrões o insultava: “Tu não és o Cristo? Salva-te a ti mesmo e a nós!”.

Ninguém parece ter entendido Sua vida e Sua mensagem. Ninguém compreendeu seu perdão aos algozes. Ninguém viu em seu rosto o olhar compassivo do Pai. Ninguém percebeu que, pendente da Cruz, Jesus se unia para sempre a todos os crucificados e sofredores da história.

Mas, a grande surpresa está reservada para o final da cena: aquele homem impotente, que agonizava na Cruz, promete o paraíso a outro condenado à morte e que se dirigira a Ele assim: “Jesus, lembra-te de mim, quando entrares em teu reinado”. É o único personagem em todo o Evangelho que se dirige a Jesus chamando-o simplesmente por seu nome, sem acrescentar nenhum outro título como Senhor, Mestre, Filho de Davi ou Messias.

Sem saber, ele estava em profunda sintonia com o sentido da missão daquele Homem crucificado, a quem o invocava: aproximar-se, encurtar distâncias, viver entre nós como um entre tantos, entregar-nos seu nome e sua amizade, compartilhar de nossa fragilidade, estar tão perto a ponto de escutar o sussurro de todos aqueles que, sem alento, morrem ao seu lado...

O “bom ladrão” reconhece a Jesus na cruz como rei, um rei que morre na fidelidade à sua missão de mensageiro de um projeto de vida diferente, de um Reino de misericórdia aberto a todos, também ao pior dos malfeitores, e que oferece sua vida para indicar o caminho da verdadeira vida que vence a morte: o amor até o extremo. E nisso consistiu sua glória, sua realeza e seu triunfo.

Jesus sempre viveu “em más companhias” e agora morre entre dois ladrões. Mais uma vez, não assume o papel de juiz sobre os outros, mas oferece uma nova chance de salvação. Ele é o moribundo que dá vida: presença solidária, que, mesmo em meio ao pior sofrimento, oferece companhia a outros sofredores.

O Justo e o pecador, ambos crucificados, participam da vida definitiva que a morte terrível na cruz não pode vencer. Jesus é o rei, e o primeiro cidadão que ingressa em Reino é esse malfeitor que confiou n’Ele.

Assim, impactado pela serenidade e testemunho de Jesus, “rouba o paraíso”.

No alto da Cruz, Jesus revela uma promessa que muitas pessoas precisam ouvir hoje, sobretudo aqueles que carregam cruzes injustas e pesadas, que vivem realidades atravessadas pela dor, pela solidão, dúvida, incompreensão ou pranto...

Que ressonância têm estas palavras no interior de cada um de nós: “Hoje estarás comigo no Paraíso”.

Hoje: porque as mudanças, a nova criação, a humanidade reconciliada, não tem que esperar mais; hoje, agora, já...; talvez, se esse “hoje” não chega é por causa de tantas pessoas que não decidem, não optam, esperam sentadas... Comigo: a promessa de viver em sua companhia desperta ecos de uma plenitude que não conseguimos entender.

No paraíso: que não é um mítico Eden, mas lugar de plenitude de vida, onde não haverá mais pranto, nem dor; realidade que já se presente entre nós, sobretudo onde habita a justiça, a paz, a compaixão...


Texto bíblico: Lc 23,35-43

Na oração:

Situar-se diante do Rei Crucificado e dos crucificados da história. No nosso atual contexto social, político e religioso são muitos os julgamentos, ódios, mentiras, intolerâncias, preconceitos... que continuam crucificando e fazendo vítimas. E tudo isso em nome da “religião e da moral cristã”. O Crucificado Inocente continua revelando seu rosto nos crucificados de hoje.

- Como tirar das cruzes as vítimas inocentes que estão dependurados nelas?

- Como construir hoje o paraíso? Neste momento histórico, como ativar e despertar a esperança nas vítimas?